O filho do dono
O rapper Oruam coleciona músicas de sucesso, milhões de seguidores e inúmeras polêmicas. Agora, ele se vê em uma encruzilhada política que ganhou força com o projeto de uma vereadora de São Paulo que quer proibir a contratação de seus shows com dinheiro público
De personalidade marcante, quase sempre ostentando correntes de ouro maciço no pescoço e com cortes de cabelo chamativos e ousados, Mauro Davi dos Santos Nepomuceno conquistou rapidamente uma posição de destaque no cenário musical brasileiro. A batida agitada e a parceria com os cantores Zé Felipe, MC Tuto e Rodrigo do CN renderam ao cantor um dos hits mais escutados de 2025: “Oh garota eu quero você só pra mim”. A canção furou a bolha do trap e já soma mais de 90 milhões de reproduções no YouTube. Em seus perfis oficiais, o artista também acumula uma multidão de seguidores: 9 milhões no Instagram e 13,5 milhões de ouvintes mensais no Spotify. Seja por meio de suas letras ou nos stories do Instagram, o jovem consegue encontrar uma brecha para divulgar plataformas de apostas de Fortune Tiger, o “tigrinho”, como ele mesmo se refere na canção, que se popularizou no Brasil. Toda essa influência vem incomodando parte da sociedade.

A carreira de Oruam – Mauro ao contrário, seu nome artístico – foi alavancada na tarde do dia 24 de março de 2024, durante sua apresentação de estreia no Lollapalooza. O show relativamente curto e que tinha tudo para ser discreto atraiu os holofotes dos principais veículos jornalísticos que cobriam o festival. O rosto parcialmente pintado com maquiagem em alusão ao protagonista do filme Coringa não chamou mais atenção do que uma camiseta branca escrita “liberdade”, em letras pretas, todas maiúsculas. Em destaque, acima da mensagem de ordem, uma foto de seu pai: Márcio dos Santos Nepomuceno, mais conhecido como Marcinho VP, apontado pelo Ministério Público como um dos chefes do Comando Vermelho.
Mauro e Márcio nunca conviveram fora da cadeia. A inevitável relação familiar, no entanto, garantiu a Oruam o apelido de “filho do dono”, como ele exibe, orgulhosamente, no título de uma de suas músicas de maior sucesso. Nascido na Zona Norte do Rio de Janeiro, Marcinho VP começou a assaltar aos 13 anos para comprar roupas de marca e em poucos anos alcançou o topo da hierarquia do Comando Vermelho, como conta em sua autobiografia “O Direito Penal do Inimigo: Verdades e Posições” publicada em novembro de 2017. Da prisão, onde cumpre pena desde 1996, o líder do CV recebeu o jornalista Domingos Meirelles e a equipe do Domingo Espetacular, da TV Record, para uma entrevista inédita em 2018. Na reportagem, Marcinho revela os detalhes dos assaltos que fazia, e nega comandar a organização criminosa: “Eu nunca fui traficante na minha vida. No passado eu fui integrante. Um mero soldado”, justifica.
“Eu não escolho o pai que tenho”, respondeu Oruam em um vídeo que circulou nas redes sociais. Por outro lado, ele escolhe suas próprias atitudes, suas palavras, e, essencialmente, as letras de suas músicas.
As declarações e as letras de Oruam enfeitiçam seu público-alvo na mesma medida em que entram como um zumbido persistente no ouvido de quem desaprova suas atitudes. Não à toa. Durante um show, o artista cantou um dos “hinos” da facção carioca, enquanto a “Tropa do 22”, como são chamados seus fãs, gravava vídeos e entoava o coro sem nenhum senso crítico. Sem camisa, ele também exibia um corpo parcialmente repleto de tatuagens, com homenagens ao pai, Márcio, e ao tio de consideração, Elias “Maluco”, apontado como responsável pelo assassinato do jornalista Tim Lopes, em 2002. Lopes morreu torturado enquanto produzia uma reportagem investigativa sobre a exploração sexual e o envolvimento com o tráfico de menores nos bailes funk no Complexo do Alemão. No TVZ Ao Vivo, programa da Multishow (que pertence ao Grupo Globo, onde Lopes trabalhou durante anos), Oruam, em tom de brincadeira, revelou que se não fosse cantor seria “herdeiro”.
Apesar da pouca idade e da recente projeção nacional, Oruam já coleciona rivalidade com grupos políticos. Recém-eleita vereadora de São Paulo, Amanda Vettorazzo (União) apresentou na Câmara Municipal de São Paulo a Lei Anti-Oruam, que rapidamente ganhou destaque nas redes sociais. O projeto de apenas quatro páginas – que propõe “proibir a contratação de shows, artistas e eventos abertos ao público infantojuvenil que envolvam, no decorrer da apresentação, expressão de apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas” –se transformou na principal agenda do Movimento Brasil Livre em 2025.
A vereadora, que recebeu pouco mais de 40 mil votos na última eleição, não é uma exceção no que diz respeito às críticas feitas ao cantor dentro da bolha a que ela pertence. A ideia foi rapidamente defendida por vereadores e deputados, inclusive do Rio de Janeiro, cidade natal do músico. Em Brasília, o deputado federal Kim Kataguiri (União) protocolou uma proposta de alcance nacional. Cassado em 2022 por quebra de decoro parlamentar, Arthur Moledo do Val (MamãeFalei), também do MBL, encontrou no YouTube uma alternativa para mobilizar seu público e se manter ativo na cruzada contra o rapper. No mês de fevereiro foram gravados ao menos cinco vídeos sobre Oruam em seu canal de 2,6 milhões de inscritos. “A Amanda em nenhum momento pretendeu dizer o que é ou não crime. […] A lei de apologia ao crime já existe. Se alguém infringir essa lei, não poderá ser contratado com dinheiro público. O projeto é esse”, explica, em um vídeo em que enumera motivos, segundo o título do vídeo, para seu público odiar o cantor. O conteúdo conta com mais de 200 mil visualizações e 18 mil likes.
No Brasil, a manifestação pública incitando, enaltecendo ou defendendo a prática de crimes ou de autor criminoso já é considerada um delito previsto no artigo 287 do Código Penal, com detenção prevista de três a seis meses, ou multa. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também define restrições sobre conteúdos inadequados para menores. Para os fãs de Oruam, porém, as letras do cantor não romantizam o crime, mas sim, retratam uma realidade marginalizada.
A maior ressalva de opositores ao projeto é a de que, ao condicionar o artista a ser denunciado por qualquer pessoa, entidade ou órgão da Administração Pública, por meio da Ouvidoria do Município, e por não estabelecer um critério objetivo do que seria essa “apologia”, a lei abriria a prerrogativa para a censura prévia da produção cultural da periferia. Em audiência na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP), proposta pela deputada estadual Ediane Maria (PSOL), foi discutido o impacto da Lei Anti-Oruam e as consequências que poderia causar nas culturas negras e periféricas. O evento contou com a participação de pesquisadores, representantes de movimentos sociais e artistas, como o cantor Edi Rock.
Edi Rock integra o grupo de rap mais emblemático e atemporal do rap nacional, ao lado dos também conhecidos Mano Brown, Ice Blue e KL Jay. Com fortes denúncias sociais sobre racismo, desigualdade e violência urbana, as músicas dos Racionais MC’s retratam a dura realidade das favelas de São Paulo. As composições do grupo não enaltecem o crime, analisa o estudante João Vitor Costa, 20, que escuta a discografia dos Racionais desde os 14 anos. Na música “Eu sou 157”, por exemplo, são narrados em primeira pessoa os acontecimentos da vida de um indivíduo que se identifica como ladrão, descrevendo não apenas sua atuação criminosa, como o modo pelo qual a sociedade reage a um criminoso. Ao longo da história, um dos comparsas no ato é morto, após um mal sucedido roubo a banco. “As músicas dos Racionais são como uma fábula, que contam uma moral no final. Elas trazem a narrativa do crime e a perspectiva glamourizada do personagem inserido nesse mundo, mas, no final, tudo isso é interrompido com um fim trágico que sempre acontece. Sempre é passado nas letras que esse é o único destino de quem entra nessa vida”, comenta. Costa também relembra a última estrofe da canção, em que Brown destaca a importância dos estudos como uma alternativa de transformação e ascensão social.
“E aí, molecadinha, tô de olho em vocês, hein?
Não vai pra grupo, não, a cena é triste
Vamos estudar, respeitar o pai e a mãe e viver, viver!
Essa é a cena, muito amor”.
Na audiência na Alesp, Edi Rock saiu em defesa de Oruam: “A gente está falando de um artista sendo censurado, como os Racionais foram várias vezes”, comentou. Procurada, Amanda Vettorazzo, por meio de sua assessoria de imprensa, respondeu que “as acusações sobre censura vêm de pessoas que não leram ou não entenderam o projeto”. Ela afirma ainda que caso Oruam se comprometa a alterar a letra das músicas ou a cantar outras sem apologia ao crime, ele poderá se apresentar. Questionada sobre se artistas e grupos, como os Racionais MC’s, sofreriam retaliações, caso seu projeto entrasse em vigor, ela respondeu que há uma lei com muitas decisões judiciais sobre o tema, e como vereadora, não será ela quem irá definir se alguma produção tem apologia ou não. À exceção de Oruam, o PL também não menciona o nome de nenhum outro artista.
Em fevereiro, Oruam foi levado à delegacia duas vezes. Na primeira, no dia 20, por dar um “cavalo-de-pau” e parar virado na contramão, em frente a um carro da Polícia Militar. Seis dias depois, foi preso novamente, por abrigar um foragido da justiça. As autoridades encontraram o homem, procurado por prática de organização criminosa, ao cumprir mandado de busca e apreensão na mansão do rapper, na zona oeste do Rio. Nos dois casos ele foi solto pouquíssimas horas depois, após o pagamento de fiança.
Rennan Dias, de 22 anos, leva em média 4 horas para ir ao trabalho e voltar para casa todo o dia. No transporte, durante o percurso, ele é um entre os milhões de jovens que escutam Oruam. O jovem estabelece um paralelo entre as canções do artista com uma novela: “A gente vê várias cenas, mas aquilo não tem influência em nada”, argumenta. A comparação salta aos olhos. Afinal, qual é a diferença entre essa justificativa e o antigo debate de que jogos de “Battle Royale” (batalha da realeza, em tradução livre) devem ser proibidos porque fomentam uma cultura de violência, contra a qual a direita se posiciona tão veementemente contra?
Segundo Dias, os acontecimentos narrados nas músicas acabam sendo fictícios, como se Oruam fosse um “personagem” (ou melhor, o alter ego) do Mauro: “O Oruam se expressa assim porque ele sempre teve contato com operação policial e com o pai dele preso. Então ele está relatando o que ele realmente vive. Ele retrata o crime, que infelizmente é presente, mas ele mostra os carros de luxos, as mansões e tudo o que a favela pretende conquistar”. Morador de Guaianases, bairro periférico do extremo leste de São Paulo, Dias conhece de perto a realidade da comunidade e a riqueza cultural que emerge desse contexto: “A favela é isso, tem seu jeito de se expressar. Ela tem uma maneira única de se comunicar e de se comportar”, defende.
Ao ser questionado sobre a Lei Anti-Oruam, Dias diz ser contra. Para ele, “se o objetivo do poder público é se aproximar da favela, então artistas da favela devem prevalecer”. João Vitor Costa, fã dos Racionais MCs, embora não seja ouvinte de Oruam e desaprove muitas de suas atitudes, também se opõe ao projeto de Vettorazzo. Para ele, há o risco de que, no futuro, novas iniciativas possam ser criadas para silenciar outros artistas e grupos, o que comprometeria a liberdade de expressão dentro da cena musical.
Poucos dias antes de completar 24 anos, no intervalo entre as suas duas detenções, Oruam lançou “Liberdade”, o primeiro álbum de sua carreira (na foto de capa do trabalho, ele aparece com sua família. Todos vestem uma camiseta branca com a foto de Marcinho VP, a mesma que ele usou no Lollapalooza). Uma das quinze faixas do projeto é uma resposta ao PL que leva seu nome. Em uma música repleta de palavrões, em que se identifica como “terror do Estado”, ele afirma à la Racionais: “Mas o que falta é educação”. Ao menos nesse ponto, ele está coberto de razão.