O fim da pandemia da Aids?
Para o fim da pandemia da Aids, é preciso acabar com desigualdades de gênero, raça e classe, além de implementar ações equânimes considerando países de baixa e média renda, para que esse “fim” não seja apenas mais uma metáfora ficcional
E a vida continua (1993), filme de Roger Spottiswoode, retrata os primeiros anos da epidemia de Aids nos Estados Unidos, período marcado por mortes de homossexuais em São Francisco, pela descoberta de uma doença até então desconhecida, por disputas políticas, mobilizações sociais, discriminações e pela identificação laboratorial do vírus da imunodeficiência humana (HIV). Naquele momento, início da década de 1980, tudo parecia perdido, e uma doença letal, incurável e sem tratamento ceifava a vida de grandes contingentes populacionais, espalhando-se rapidamente pelos demais países. Era o início da pandemia da Aids.
Susan Sontag aponta que, desde a descoberta da doença, as metáforas discriminatórias atribuídas à Aids conformaram o imaginário social e a experiência das pessoas que viviam com o vírus. Elas se viam merecedoras de castigos divinos, cujos pecados decorrentes dos atos transgressores deviam ser penalizados com a morte, que se concretizava próxima e real, merecida em razão do modo de vida que causou a infecção. As metáforas ameaçavam a integralidade física, psicológica e social, produzindo nas pessoas o medo do abandono, do julgamento e da revelação de sua identidade social; a culpa pelo adoecimento; a impotência, a fuga, a clandestinidade e a exclusão, construídas por sociedades permeadas por estigmas e preconceitos. Conformou-se, assim, uma pandemia marcada por vulnerabilidades individuais, sociais e programáticas.
A Aids, desde sua descoberta, constituiu-se como um importante problema de saúde pública. Estima-se que 75,7 milhões de pessoas tenham sido infectadas com o HIV e que aproximadamente 32,7 milhões morreram desde o início da epidemia no mundo. Atualmente, há 39 milhões de pessoas vivendo com a doença, e, em 2022, a cada minuto, uma pessoa morreu em decorrência da Aids. Ainda, 9,2 milhões não têm acesso ao tratamento, incluindo 660 mil crianças.
Mulheres e meninas ainda são desproporcionalmente mais afetadas, especialmente na África subsaariana. Elas enfrentam riscos extraordinariamente altos de infecção pelo HIV em decorrência das desigualdades de gênero, violência, estigma e discriminação, incluindo legislações e práticas prejudiciais à saúde. Na região, mulheres e meninas de todas as idades representaram 63% das novas infecções. Ainda, as populações jovens, pobres, negras e LGBTQIA+ também sofrem dificuldades no acesso a serviços de saúde, diagnóstico precoce e tratamento, o que intensifica as vulnerabilidades e conformam barreiras de prevenção à doença em muitos países.
A UNAIDS, apesar desse cenário, publicou, em 2023, o relatório intitulado “O caminho que põe fim à Aids”, propondo metas para acabar com a pandemia provocada pelo HIV até 2030. O documento apresenta que alguns países como Botsuana, Essuatíni, Ruanda, República Unida da Tanzânia e Zimbábue adotaram ações e, com isso, alcançaram as metas de 95-95-95, e pelo menos outros 16 países (incluindo oito na África Subsaariana) estão próximos de fazê-lo. Os esforços propostos para pôr fim à Aids incluem forte liderança política que segue evidências científicas; enfrentamento das desigualdades que impedem o progresso; fortalecimento de comunidades e organizações da sociedade civil; e garantia de financiamento suficiente e sustentável.
Antonio Flores, especialista sênior para HIV e tuberculose de Médicos Sem Fronteiras (MSF), aponta que, de fato, há pesquisas sólidas com resultados satisfatórios em relação à combinação de estratégias de prevenção, tratamento, engajamento comunitário e acesso a medicações e tecnologias de saúde. No entanto, não parece factível alcançar essa meta em 2030. “É preciso explicar que não estamos falando, necessariamente, de acabar com a doença, mas acabar com a pandemia provocada pelo HIV, o que significa diminuir a carga viral globalmente e, consequentemente, a circulação do vírus entre as populações. Ainda assim, essa não é uma tarefa fácil”, explica.
“Em 2014, surgiu a meta ‘90, 90 e 90’, cujo prazo era o ano de 2020, que almejava testar 90% das pessoas, tratar 90% daquelas com teste positivo e ter 90% destas em tratamento com a infecção controlada, ou seja, com a carga viral suprimida. Isso obviamente não foi alcançado”, explica Antonio Flores. Também há uma meta atual que almeja atingir 95-95-95 até 2025. “Não alçamos em 2020 e nem alcançaremos em 2025 globalmente, ainda que alguns países tenham atingido metas. Esse progresso até existe, mas é heterogêneo ao redor do mundo”.
Richard Parker aponta que a promessa do “fim da Aids” e a mobilização por esperança iniciou ainda na década de 2010. O assunto esteve presente, por exemplo, na 20ª Conferência Internacional de Aids em Melbourne, na Austrália, no ano de 2014, e na 8ª Conferência sobre a Patogênese do HIV, em Vancouver, no Canadá, em 2015. Esse discurso foi mencionado por lideranças e instituições responsáveis por coordenar a resposta global e adotado como meta pela ONU até 2016, tendo sido importante para inspirar organizações multilaterais, mas também iniciativas bilaterais, como o PEPFAR estadunidense sob o mote de uma “geração livre da Aids”. Contudo, ativistas e pesquisadores questionam esse otimismo.
O discurso do “fim da Aids” encobre realidades permeadas por desigualdades, estigma e dificuldade de acesso a serviços de saúde. Em meados da década de 2010, pouco mais da metade das pessoas vivendo com HIV/Aids tinham acesso a medicamentos. Outra parcela, composta por países pobres, só tinha acesso a “medicamentos de segunda classe”, ou seja, antirretrovirais antigos e baratos, mas que possuem efeitos colaterais mais numerosos e sérios do que as novas gerações de antirretrovirais. Mesmo países com suposto acesso universal aos medicamentos, como o Brasil, tinham altas taxas de mortalidade nessa década. Além disso, havia falta de acesso à prevenção em todos os países, pelo menos se considerada como direito de todos, e não privilégio de alguns. Insumos como a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), que surgiu nessa década, têm acesso restrito a alguns segmentos populacionais, e é limitado mesmo no conjunto desses grupos.
A Covid-19 configurou-se, ainda, como um dos obstáculos para a pandemia de Aids, pois teve impacto no sistema de saúde global. Sobrecarregados com o quantitativo de pessoas infectadas pelo coronavírus, os serviços de saúde apresentaram dificuldades para realizar testagem e diagnóstico de HIV, e parte das pessoas que viviam com o vírus tiveram o tratamento interrompido, principalmente em países de baixa e média renda.
Nas últimas décadas, é inegável os avanços no enfrentamento da pandemia da Aids. A inovação mais recente no combate à doença funciona como forma de PrEP, constituindo-se como um aliado no enfrentamento à pandemia, já que ainda não há vacina ou cura disponível. Primeiro a PrEP foi lançada em forma de comprimidos e exigia a utilização diária do medicamento. Recentemente, a indústria farmacêutica lançou uma versão injetável – o medicamento cabotegravir, de ação prolongada, cuja principal vantagem é o aumento da adesão ao tratamento e a comodidade de tomar uma dose do remédio que faz efeito a médio e longo prazo. Desde 2022, a Organização Mundial da Saúde passou a recomendar seu uso para a prevenção contra infecções causadas pelo vírus.
Antonio Flores é otimista em relação ao uso do PrEP injetável. Segundo ele, a estratégia, associada à testagem da população, acesso ao tratamento para suprimir a carga viral e a programas de engajamento comunitário pode ter impacto positivo no combate à pandemia da Aids. “A PrEP é uma tecnologia de saúde que vai mudar o jogo em relação ao enfrentamento da doença, assim como a versão oral já mostrou benefícios na prevenção ao HIV/Aids”, avalia. E completa: “desde a década de 1980, quando a doença surgiu, a vacina sempre foi algo aguardado, mas, até hoje, não temos um imunizante. E nem estamos perto de descobri-lo. Com a PrEP injetável, temos uma forma de prevenção de longa duração, já que só é preciso usar de dois em dois meses. Esse fator aumenta o engajamento das pessoas que antes, na versão oral, precisavam tomar comprimidos diariamente. Pensando em diferentes realidades, onde os serviços de saúde são difíceis de chegar ou que o estigma é grande, o uso da PrEP a cada dois meses pode derrubar barreiras de acesso”.
Estudos demonstram que a utilização da PrEP associada a outras medidas de saúde tiveram impactos positivos. Em Amsterdã, na Holanda, a utilização de PrEP, associada ao tratamento de infecções agudas causadas pelo HIV e à implementação de estratégias para alcançar pessoas, provocou declínio de 95% nas novas infecções. Por três anos, uma clínica em Londres registou queda de 90% nas infecções recentes por HIV entre homens gays e bissexuais que utilizam os serviços. A unidade associou diversas estratégias, como a oferta de PrEP, melhoria nas taxas de diagnóstico de HIV e aumento no número de pessoas em tratamento. Além disso, médicos foram encorajados a construir parcerias com populações-chave. Os resultados mostram que a estratégia foi bem-sucedida.
MSF irá implementar, até o final de 2024, o uso de PrEP injetável em projetos na África, onde a doença ainda é um grave problema de saúde pública. Atualmente, a organização humanitária oferta a versão oral aos seus pacientes em diversos locais, nos quais a população também encontra serviços de testagem, atendimento médico e tratamento para a doença. Só em 2022, MSF atendeu mais de 31.500 pessoas em terapia antirretroviral de primeira linha, além de 6.570 de segunda linha, pois esses pacientes haviam apresentado falência terapêutica aos medicamentos de primeira.
MSF aponta que, embora a PrEP tenha potencial para transformar a prevenção ao HIV, as práticas abusivas da farmacêutica ViiV, que produz o cabotegravir, cria barreiras de acesso ao injetável, especialmente em países de baixa e média renda. E essa não é uma novidade. Desde o início da pandemia provocada pelo HIV, MSF tem se posicionado contra a exclusão dos países de média e baixa renda ao tratamento da doença. “Entramos na discussão dizendo: os medicamentos são caros e há um monopólio por parte dos laboratórios, que produzem a medicação e têm as patentes. Logo, eles controlam a distribuição e o preço, que é muito alto. Na África, a epidemia era uma questão séria de saúde pública que não podia ser negligenciada. Era e ainda é preciso discutir as questões voltadas ao acesso às tecnologias de saúde. As pessoas em situação de maior vulnerabilidade não podem ser deixadas de lado”, explica Flores.
Mais de 40 anos depois, o mesmo ainda acontece com o cabotegravir de ação prolongada para a prevenção do HIV. A organização cobrou publicamente que a farmacêutica divulgasse de maneira transparente as informações sobre o volume disponível da medicação, os preços praticados e a distribuição geográfica planejada para ela. Até o momento, sem grande sucesso. Para MSF, a empresa precisa redefinir a prioridade da distribuição global às pessoas com maior risco de contrair HIV, especialmente em países pobres, assim como garantir preços acessíveis para que os governos possam disponibilizá-los de forma sustentável para quem mais precisa.
Herbert de Sousa, o Betinho, importante ativista dos direitos humanos no Brasil, ensinou que a cura da Aids é uma possibilidade real, justamente porque essa ideia nos mobiliza. Entretanto, para muitos países, o fim da pandemia da Aids parece estar longe, porque é preciso mais que tecnologias biomédicas, metas e slogans. Concordo com Parker de que, para isso, a solidariedade é fundamental, representada pela capacidade de compreender a dor e o sofrimento das pessoas.
Na história da Aids, a solidariedade surgiu quando não havia nenhum recurso técnico, preventivo ou medicamentoso. Nada que a medicina pudesse ofertar. Diante disso, a solidariedade emergiu no pensamento de pessoas como Herbert Daniel e Betinho, que falava da solidariedade como a única “vacina” disponível para o HIV, e isso vale para os tempos atuais. Hoje, existem mais recursos técnicos do que antes, mas a exclusão e o estigma persistem, sem remédio farmacológico, mas que podem ser atenuados com práticas ético-políticas concretas. Para o fim da pandemia da Aids, é preciso combater os determinantes políticos, sociais, econômicos e culturais da opressão e do preconceito que ainda assolam populações que vivem com a doença.
A solidariedade foi o ponto de partida desde a descoberta da Aids, e precisa continuar sendo. Para o fim da pandemia, é preciso também acabar com desigualdades de gênero, raça e classe social, além de implementar ações equânimes considerando países de baixa e média renda, para que esse “fim” não seja apenas mais uma metáfora ficcional e cinematográfica. Porque, como no filme, a vida continua.
Roger Flores Ceccon é Professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.