O fim de uma era
A política neoliberal em relação às ONGs não pode continuar, tem de existir um financiamento público associado à garantia de um trabalho independente.
Ainda está para ser mais bem avaliada a enorme importância que teve – e continua tendo – a contribuição dos grupos de cidadãos e cidadãs que se organizam e se mobilizam em defesa de direitos para o processo de democratização brasileiro.
Esses grupos de cidadãos e cidadãs fazem parte de um campo político que reúne múltiplos atores – associações, sindicatos, movimentos sociais, ONGs, redes e fóruns de defesa de direitos, organizações de base da Igreja Católica, entre outros. O elemento comum que une toda essa gente é uma utopia, um projeto de futuro, o compromisso ético e político com a transformação do Brasil em um país mais justo, superando a desigualdade e a pobreza que penalizam a grande maioria da população.
Foi esse conjunto de atores que empurrou a nossa tímida democracia para o processo de elaboração da Constituição de 1988, para a afirmação de direitos como os das crianças e adolescentes, das mulheres, dos negros, dos quilombolas, a defesa do meio ambiente etc. O protagonismo desses atores era evidente, entre eles destacando-se as ONGs, que ganhavam cada vez maior visibilidade e importância, passando a fazer parte da cena política brasileira e ocupando um espaço de destaque com iniciativas que vão desde a Rio 92 até às múltiplas edições do Fórum Social Mundial.
Na contramão da afirmação de direitos, os governos Collor e FHC adotaram políticas neoliberais e promoveram uma reforma do Estado onde o papel desenhado para as ONGs não era mais o de defesa dos direitos, mas de prestadoras de serviços definidos e controlados pelo Estado. E a partir daí surge uma nova geração de ONGs, agora concebidas como empresas sociais que atuam de maneira complementar, na área social, às políticas de Estado. Essa iniciativa tem também o sentido ideológico de identificar as ONGs em geral com esse novo papel, esvaziando o caráter político e independente, de luta pela transformação social, que antes caracterizava essas entidades. Foi um duro golpe nesses atores, que se somaram a outros e garantiram a democracia, ainda que precária, que temos hoje.
Com o governo Lula essa situação não foi revertida. O tratamento dessas ONGs de defesa de direitos não se alterou. A lógica do governo as vê como instrumentais, servindo aos seus propósitos, longe de reconhecê-las como importantes atores de um processo de democratização que está longe de ser satisfatório. Quem perde é o povo brasileiro, quem perde é a democracia.
A recente crise financeira que abalou o mundo provocou uma aceleração nas mudanças das políticas de cooperação, nas prioridades das agências internacionais de cooperação, que estão saindo do Brasil, porque consideram que podemos resolver nossos problemas por conta própria. Esse argumento não deixa de ser verdade, mas para isso a política neoliberal em relação às ONGs não pode continuar, tem de existir um financiamento público associado à garantia de um trabalho independente. Uma pretensão que não é nenhum absurdo. Na Suécia as ONGs são 100% financiadas com fundos públicos. Na Índia há um percentual do orçamento nacional destinado a financiar projetos de ONGs. Pode-se dizer até que o financiamento do trabalho dessas ONGs depende de quão democrático o país é. Por que o Brasil precisa de grupos de cidadãos que lutam pela efetivação de direitos?
O fato é que chegamos ao final de uma era. A era da cooperação internacional financiando a defesa de direitos. Ainda que tenhamos instituições internacionais que compreendam a importância desse trabalho, se considerarmos o seu conjunto, elas estão indo embora.
As implicações dessas mudanças na conjuntura são drásticas. O campo político da luta democrática se fragmenta, o papel dessas ONGs, de animadoras de redes e fóruns de cidadania, vai desaparecendo e a capacidade de a cidadania influir sobre as políticas de Estado vai se tornando cada vez mais débil.
Seria lamentável ver o governo Lula terminar sem que o Estado assuma responsabilidades, como em outros países democráticos, de garantir que todo esse acúmulo político, toda essa riqueza expressa na diversidade dos atores da luta democrática, continue existindo. O fato é que, uma a uma, as ONGs de luta por direitos estão fechando.
As inúmeras reuniões da Associação Brasileira de ONGs (Abong) com o atual governo, para tratar da questão do financiamento das ONGs, só receberam promessas que nunca foram para a frente. E promessas não cumpridas não ajudam a manter vivas e atuantes entidades que são parte do capital humano e democrático que o Brasil vem construindo nas últimas décadas.
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.