O fim do Museu-espetáculo-cibernético
O Museu da Língua Portuguesa (MLP) surge em meio às questões neoliberais, da sociedade do espetáculo, da gentrificação, dos “novos museus” e da vontade política em cristalizar hegemonias culturais. A existência de um equipamento cultural deveria ser comemorada por si só? Este é o melhor que poderíamos fazer?Susan Ritschel e Olegário A. Filho
Algumas horas após o incêndio no Museu da Língua Portuguesa, a Secretaria da Cultura de São Paulo, em sua página no Facebook, anunciou que “felizmente, o acervo do Museu da Língua Portuguesa é tecnológico e poderá ser reproduzido. Não havia peças originais na exposição de Câmara Cascudo” (SECRETARIA). Se “felizmente” os conteúdos não foram perdidos, o que podemos dizer, no entanto, sobre todas as pessoas que passaram por ali desde a abertura do museu e não tiveram nenhum contato com obras de arte?
O Museu da Língua Portuguesa (MLP) surge em meio às questões neoliberais, da sociedade do espetáculo, da gentrificação, dos “novos museus” e da vontade política em cristalizar hegemonias culturais. A existência de um equipamento cultural deveria ser comemorada por si só? Este é o melhor que poderíamos fazer?
Se olharmos para o passado, conseguimos compreender um pouco melhor o que o MLP representa. Aqui mesmo por estas terras, tivemos um exemplo que talvez tenha sido menos problemático: o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, criado em 1948. É importante destacar que ele carregava um projeto de emancipação cultural e política encabeçado por intelectuais como Sérgio Milliet e Mário Pedrosa. A Bienal de Artes estava dentro do projeto do museu e foi importantíssima para que as pessoas tivessem contato com obras do mundo todo. Se a matéria prima do artista é o caos mundano, posteriormente organizado em uma obra, e que procura refletir e problematizar o mundo, podemos imaginar o impacto deste evento. Talvez maior que a Semana de 22. Mesmo para os artistas foi algo descomunal, pois tiveram a possibilidade de ver como seus colegas resolviam problemas formais em suas obras. Era um incentivo para a criação no Brasil e para a circulação de importantes trabalhos. Não é menos emblemático lembrar que Guernica esteve por aqui passando maus bocados. Sempre um grande esforço para colocar o público em contato direto com a obra de arte para que pudessem dialogar.
Mas muita coisa mudou de lá pra cá. A trajetória do MAM e, posteriormente, da Bienal emancipada ajudam a compreender as mudanças na concepção de museu e de seu papel na sociedade, as quais permitiram a criação de um museu sem obras, como o Museu da Língua Portuguesa.
Se antes eles eram pensados para abrigar (ou estocar) objetos, agora inventa-se motes e depois tenta-se resolver como preenchê-los. O importante é a animação cultural e os fluxos gerados.
Mostrando que obtemos o resultado inverso do imaginado por Walter Benjamin em sua teoria da distração, pensada para uma arte de massa (não para o que se compreendia por museu), Otilia Arantes conclui que a “massificação da experiência de recepção coletiva da obra de arte, onde a relação distraída não é mais do que apreensão superficial e maximamente interessada da obra enquanto bem de consumo” (ARANTES). Isto em lugares que ainda abrigam e expõem obras de arte, nos quais ainda poderíamos ter alguma esperança de que, apesar de tudo, as obras não fossem completamente cooptadas e oferecidas para consumo. E quando elas não estão mais presentes?
Em seu texto publicado em 1991, Otília acredita que este processo de animação cultural teria começado a partir do Beaubourg e explica como os Estados centrais do capitalismo, por meio de suas politicas culturais, mobilizavam ícones da arquitetura mundial para a criação destes novos museus, onde o edifício em si é um dos elementos mais importantes, muitas vezes mais do que suas obras, “no intuito de criar grandes monumentos que sirvam ao mesmo tempo como suporte e lugar de criação da cultura e reanimação da vida pública” (n. ARANTES). E muitas voltas depois, o Brasil parece ter uma participação mais ativa neste sistema.
A região do bairro da Luz, onde encontra-se o conjunto da Estação de mesmo nome, vem sofrendo há muitos anos intervenções do Estado (de diversas esferas) para a valorização da área.
Muitas no plano cultural. E a reforma da Estação, aliada à necessidade de comportar mais pessoas que passam pelo sistema de transportes, também foi uma delas. Restaurar o prédio administrativo e colocar o que lá dentro? Continuaria sendo apenas um edifício administrativo da companhia de trens? A imprensa veiculou, anos antes da inauguração, os primeiros rumores sobre algo como um “centro de estudos da língua portuguesa”. O que teria vindo primeiro: a reforma ou o museu?
Segundo Antônio Risério, “o trabalho de recuperação do prédio da Estação da Luz, feito por Paulo e Pedro Mendes da Rocha, ia às mil maravilhas, mas não se tinha ideia do que seria colocado lá dentro”. As obras, que ao final, ficaram nas cifras dos 37 milhões de reais, eram formadas em grande parte por dinheiro público, oriundos da Lei Rouanet. (N. RISERIO)
No dia seguinte ao incêndio, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha se adiantou, respondendo ao jornal Estado de São Paulo que “A princípio, é possível restaurar uma boa parte [do que foi atingido pelo fogo em 2015]” (n LEITE). Mas talvez a pergunta, mesmo que dez anos atrasada, devesse girar em torno do que aconteceu no restauro. Segundo Beatriz Kühl, o projeto dos arquitetos previa a “demolição total do interior da ala leste e a transformação completa do sistema de circulação vertical do edifício.” (Kühl, 2008). Essas violentas e injustificáveis intervenções serviram por puro capricho visual: a criação de uma gigantesca tela de televisão.
A presença de um arquiteto de renome (principalmente na área cultural) serviu tanto para conquistar a opinião pública e promover o próprio museu (agregar valor), como para justificar os vultuosos gastos públicos e as decisões sobre o “restauro”.
As arbitrariedades do Museu da Língua Portuguesa foram inúmeras. A proposta da “estação da luz na nossa língua” não tinha projeto definido de ocupação e a questão não estava sendo tratada com o mínimo de seriedade, como relata Kühl (2008, p.187): não foi formulado o conteúdo e o programa de utilização do projeto, ou seja, apresentava-se um projeto que implicava mudanças substanciais [no edifício], com um uso nominal de centro de referência da língua portuguesa, mas o programa detalhado não existia.
Tratando-se de um edifício centenário, havia uma incongruência com a proposta “inovadora”, “tecnológica” e (pós?) “moderna” baseada em projeções, vídeos etc. Por que realizar tais intervenções em um dos poucos (e mais importantes) exemplares da arquitetura do ferro que temos no Brasil? O quadro fica mais absurdo quando percebe-se que são raros os momentos nos quais o fruidor conseguia notar que estava em um exemplar da virada do século XIX para o XX. As empenas cegas exigidas pela museografia para que as projeções pudessem ser exibidas sem a interferência da luz externa são as grandes responsáveis por isso. Mas não apenas: “o anteprojeto inicialmente apresentado desconsiderava amplamente os elementos do interior do edifício, eliminando-os em sua quase totalidade, e alterava a volumetria do edifício” (KÜHL, 2008, p. 187). Sendo assim, é como se o público estivesse em qualquer outro prédio do Brasil. Então, por quê fazê-lo justamente ali?
A fachada do edifício parece ser um dos pontos centrais nas indagações que surgem (KÜHL, 2008, p. 188): O fato de desconsiderar ostensivamente o interior do edifício [Estação da Luz] configura-se como repercussão de uma onda de “fachadismo” — intervenções que conservam apenas as fachadas — algo que esteve em voga num passado não tão distante na Europa, e um pouco por todas as partes, que suscitou duras reações pelas deformações e descaracterizações que provocou, e continua provocando, pois esse tipo de ação nunca foi completamente abolido.
Em outras palavras, a embalagem parecia ser mais importante — ou mais impactante — do que o conteúdo. Mas apenas parecia, porque este grande volume de dinheiro público também foi mobilizado para que a Fundação Roberto Marinho criasse sua grande tela, onde eram exibidos os mesmos vídeos há anos, formados por imagens das Organizações Globo. Impossível não recordar as palavras de Arantes, ainda de 1991, sobre os “novos museus”: Enquanto vão atendendo às demandas de bens não-materiais nas sociedade afluentes, também vão disseminando imagens mais persuasivas do que convincentes de uma identidade cultural e política da nação, e política porque cultural. Alguns governos, acossados pela crise e pela voga neo-conservadora, não temem, em alguns casos, ao mesmo tempo restringir o orçamento do sistema previdenciário e investir no campo do culturel em expansão (de retorno seguro e rápido), fundindo publicidade e “animação cultural” — algo que o Beaubourg e satélites colocaram em cena em escala industrial. São iniciativas oficiais que alegam estar “animando” o combalido corpo social moderno (ou pós-moderno), graças à indução num público polimorfo de situações de fluidez, comunicação e souplesse — nos termos de um ideólogo do Ministério francês da Cultura. Daí o paradoxo: o Welfare State questionado se manifesta menos na renovação do aparato de proteção social do que, por exemplo, numa política de reciclagem do Patrimônio, associada à prática de apropriação cultural, centrada na autonomia dos cidadãos.
Se os museus em algum momento deram brecha a uma fruição libertadora, no MLP a libertação parece ser a mesma dada pela TV. Leal Filho contou, em 2005, como William Boner, editor do Jornal Nacional, principal telejornal da Rede Globo, se referia à parte de seus espectadores: como sendo iguais à obtusa personagem de desenho animado norte-americano Homer Simpson. Ora, um museu que não exija nada de seu visitante, que seja raso, que trate tudo como espetáculo, que subestime a inteligência do fruidor, só pode considerá-lo, da mesma maneira, um Homer Simpson.
Como já apontava Baudrillard (1997, p. 166) em 1977, sobre o Centro Georges Pompidou, o Beaubourg: “Nunca foi tão claro que o conteúdo — aqui a cultura, em outro lugar a informação ou a mercadoria — é apenas suporte fantasma da operação do próprio medium, cuja função é sempre induzir as massas, produzir um fluxo humano e mental homogêneo.”
Se a “solução arcaica das escadas rolantes nos cilindros de plástico” não dá conta de sugar o fluído humano dentro do Beaubourg, parece também não condizer com a proposta “moderna” e “tecnológica” do MLP a necessidade de funcionários induzirem o público, após a exibição do filme principal, a sair de suas poltronas e “atravessar” a tela para a “Praça da Língua”. Enquanto um museu propõe-se a ter um espaço tão lúdico como uma danceteria, precisa não só autorizar a entrada de seu público no recinto, como também ordená-los nas arquibancadas e mantê-los imóveis durante outros vinte minutos num ambiente de dança. Nada mais arcaico e autoritário.
A “Praça da Língua” fazia uma clara alusão a um sarau, mas era executado por uma máquina. Por estes vinte minutos o público era bombardeado por pirotécnicas recitações de trechos de textos (resquícios do que sobrou das obras de arte ali dentro), acopladas umas às outras como em um Potpourri. Um sarau imóvel, um sarau congelado.
Talvez seja a hora de trocar os lamentos pela destruição do Museu por um olhar atento ao processo que ocorre há anos nas periferias de São Paulo: os saraus. Esses espaços de encontro assumem um importante instrumento de luta e resistência na construção de uma identidade periférica, quando compreendemos a literatura como colocado por Cândido (2004, p. 174): “da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até formas mais complexas e difíceis da produção escritas das grandes civilizações.”
Em 2012, o grupo Racionais MC’s lançou o videoclipe para a música “Marighella Mil faces de um homem leal”. O local escolhido para parte das filmagens foi a Ocupação Mauá que, nas palavras de Mano Brown, “[…] é como se fosse a unha encravada da cidade […]” (BROWN, 2012).
O que nos interessa no videoclipe é uma passagem que registra uma roda de capoeira no alto do edifício. O último giro da câmera, como se estivesse jogando capoeira, termina com a imagem da Estação da Luz.
Pouco importa se os artistas tinham plena consciência desta tomada. O que importa é que ela encaixa-se perfeitamente na questão. A Capoeira foi notoriamente um instrumento de resistência dos escravos desde os tempos coloniais. Fazer a câmera “jogar capoeira” e posicioná-la no mesmo local da resistência é situar-se, a partir do processo de formação deste país e, posteriormente, de suas cidades excludentes, no tempo e no espaço com total clareza da matéria histórica. Direcionar um golpe no ar com a câmera em direção à Estação da Luz, emblemático edifício do poder paulista já no início do século XX, — resquícios da Casa Grande — é entender que estas questões não estão resolvidas.
E quando não destruímos a paisagem e seus documentos históricos que ajudam a trazer nossos passos e a refletir, reformulamos ícones e damos um uso mais legal, mais aprazível, menos questionável, como um museu.
Isso tudo acontecendo praticamente na porta daquele que se diz Museu da Língua Portuguesa, sem pronunciar-se, estudar, refletir o conteúdo e as discussões levantadas só pode ser visto como um claro posicionamento político na linha do “do que eu não falo, eu esqueço”. Um posicionamento de classe. Mesmo que isto não seja arquitetado pela direção do Museu, por seus criadores, mesmo que eles, realmente, nem saibam da existência das questões nas quais estão inseridos, ter uma instituição completamente engessada e apática, que declara-se museu de uma língua viva, é, no mínimo, patético.
Sem falar que o português é uma língua em expansão, e não está em perigo precisando de proteção, como deu a entender o então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, na inauguração do MLP (GIL). Quem precisa de proteção são as centenas de línguas ainda faladas em território brasileiro, mas que estão longe de serem brasileiras, atropeladas pelo idioma oficial, pelo “museu oficial”.
Nem o fogo e nem as pessoas tiveram um verdadeiro contato com obras de arte naquele museu. Se existe algo para se lamentar é a perda da vida do bombeiro Ricardo Pereira da Cruz, e a destruição do prédio em 2005.
Mas também não há nada a comemorar. Além de, mais uma vez, um grande volume de dinheiro público ser gasto em um equipamento duvidoso, tudo o que foi destruído é perfeitamente replicável. Viva a era da reprodutibilidade técnica!
Olegário A. Filho é jornalista, mestrando em literatura brasileira e apresentou o trabalho de conclusão de curso “Museu da Língua Portuguesa: um parque de diversões tropical” apresentado à ECAUSP em 2013; e Susan Ritschel é jornalista, estudante de arquitetura da FAUUSP e colaborou ativamente no trabalho citado.