“O funk é democrático e, por isso, perigoso”
Para MC Leonardo, que luta para restabelecer o funk como um patrimônio cultural do Rio de Janeiro, o preconceito e a perseguição ligados a esse ritmo decorrem de racismo e de uma questão de classe. “O filho do rico vai esquiar, pegar onda de 15 metros e andar a 320 por hora. E filho do pobre, não pode ter adrenalina?Marcelo Salles
Leonardo Pereira Mota, o MC Leonardo, 35 anos, é um dos ícones do funk carioca. Nascido e criado na Rocinha, uma das maiores favelas da América Latina, começou a cantar com 17 anos, ao lado do irmão, MC Júnior. Venceu diversos concursos em bailes e compôs alguns clássicos, como “Rap do Centenário”, homenagem ao Flamengo, seu time do coração, e “Endereço dos Bailes”, o primeiro do gênero a sair do horário restrito ao funk e a ocupar toda a programação da rádio.
A sua carreira teve altos e baixos. Num dia era contratado da Sony Music, no outro trabalhava como taxista ou jornaleiro para sobreviver. Hoje Leonardo vive de seus shows, enfrenta o boicote das gravadoras e lidera um dos movimentos políticos mais interessantes que o Rio de Janeiro viu nos últimos anos. À frente da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), que fundou em 2007, o MC tem como objetivo unir a massa funkeira para lutar por seus direitos trabalhistas.
Na maioria das vezes, o funk lida com gente pobre. Tanto os artistas quanto o público são favelados. A esse respeito, Leonardo tem uma posição bem clara: “A perseguição ao funk não tem nada a ver com o que o funk fala, e sim de onde ele vem”. Sim, mas e os cantores que foram presos às vésperas do Natal não estavam fazendo apologia à violência?, poderíamos objetar. Ele fala de bate-pronto: “Nós vivemos num país onde um apresentador de televisão faz apologia à tortura, mandando a polícia ‘fazer um carinho no preso pra ele falar’. Nós vivemos num país onde o capitão Nascimento, em apenas uma cena do filme, comete uns quatro ou cinco crimes e as pessoas aplaudem”. E por que então só o funkeiro vai pro xilindró? Essa é outra das perguntas que MC Leonardo tenta responder ao longo desta entrevista para Le Monde Diplomatique Brasil, em que conta a história do funk e a sua história, numa versão sem censura.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Como tudo começou?
MC Leonardo – No início, haviam os chamados “bailes black”, festas totalmente negras, onde os negros podiam expor sua vestimenta, seu cabelo, suas bijuterias, sua raça. Em meados dos anos 1980 começou a ter muitos adeptos, pesquisadores e tudo mais. Os bailes tocavam coisa diferente do soul e do funk. As pessoas estavam procurando uma batida que realmente contagiasse. Tanto é que o baile funk tocou rock e “disco”, como embalos de sábado à noite.
No final dos anos 1980, essas músicas começaram a ser cantadas dentro dos bailes de maneira que as pessoas entendiam. Então, tinha a melô do tomate, a melô disso, a melô daquilo, porque as pessoas não tinham músicas nacionais para cantar e, então, faziam refrões a partir de palavras que elas nem entendiam. Então o Cidinho Cambalhota, o Dj Marlboro e o Ademir Lemos começaram a compor músicas inteiras. Ali, teve início a nacionalização do funk. Isso em 1988. No começo dos anos 1990, a gente tinha mais de cem equipes de som, hoje reduzidas a cinco ou dez.
DIPLOMATIQUE – Esse baque ocorreu depois dos arrastões nas praias, que a todo tempo quiseram associá-los ao funk?
MC Leonardo – Isso foi em 1992, mas até hoje não se conseguiu ligar os arrastões aos produtores de funk. Quer dizer que se dois nordestinos meterem a peixeira, eu vou proibir o forró? Porra! Mas a mídia estava jogando com aquilo ali.
DIPLOMATIQUE – Essa também foi a década em que os festivais vieram com força, não?
MC Leonardo – Sim, no início dos anos 1990 começaram os festivais. Lá na Rocinha, meu irmão e eu amávamos a Rádio Tropical, onde tocava o programa Big Mix, Top Mix. Tinha alguma coisa ainda na Rádio Imprensa, que não funcionava muito bem, mas a gente adorava aquela comunicação: “Alô galera, se liga na programação…”, que fugia daqueles padrões “ZY4, Antena 1…”.
Eu estava com a rima do Jackson do Pandeiro e com a realidade do Nordeste na minha cabeça, sem nunca ter ido para lá. O protesto de Luiz Gonzaga e o pandeiro do Jackson. Tinha também o cordel, o próprio Dominguinhos. Resisti muito a ir a um baile funk, era muito barulhento, achava que não ia entender as letras. Até que uma namoradinha conseguiu me levar. Quando fui ao baile pela primeira vez, vi um escurinho beiçudo, com um boné na cabeça: era o MC Galo, que cantava um plágio do Rap do Pirão – que já era o plágio do plágio. Na segunda vez que entrei num baile funk, me inscrevi num concurso de Rap e acabei vencendo, junto com meu irmão. Tinha 17 anos.
DIPLOMATIQUE – E o que veio depois?
MC Leonardo – Em 1995, a gente foi para a [equipe de som, produtora e gravadora] Furacão 2000. A gente já era primeiro lugar na rádio. Das dez músicas mais tocadas no programa do Marlboro, a gente tinha quatro. O “Endereço dos Bailes” foi o primeiro rap a sair da programação do horário específico para ir para a programação normal da rádio. Disso eu tenho orgulho! Foi como romper uma barreira!
Em 1995, foi o boom. Rompemos todas as barreiras mesmo. O Cananga no Recreio. Em São Conrado, tinha a Circus. No Leblon, a Dipsy. Em Botafogo, o Mourisco. No Jardim Botânico, tinha o Carioca. Na Tijuca, o Tijuca Tênis Clube e o América. No Méier, o Mackenzie e o Imperator. No Rocha, o Magnatas. Em Irajá, o Atlético Clube. Em Cascadura, o Sargentos, o Tem Tudo em Madureira. E, na Baixada Fluminense, era geral. E, de repente, começamos a ter dificuldade para trabalhar com o ritmo. Não aconteceu o que a Constituição diz, ou seja, que toda cultura tem de ser incentivada. Diziam que funk não era cultura brasileira. E ninguém queria ligar sua marca àquela coisa que a mídia estava criminalizando.
DIPLOMATIQUE – Você critica muito os empresários Marlboro e Rômulo Costa, acusando-os de monopolizar o mercado no Rio de Janeiro e explorar os compositores. Mas ao mesmo tempo reconhece a importância deles para o funk. Como é isso?
MC Leonardo – Eles montaram um mercado que explora, que engana, que suga o que a favela produz. Mas eu não nego a importância que eles tiveram para o funk. Eles também são difusores, vão atrás dos talentos e dão oportunidades. Comigo mesmo: o Marlboro foi me buscar dentro da banca de jornal onde eu trabalhava, mandou um cara me acompanhar até o shopping com um cartão de crédito na mão e comprar o que eu quisesse. Claro que eu sei que ali era a cabeça do empresário pensando numa oportunidade, mas eu não tenho como deixar de ser grato por isso.
DIPLOMATIQUE – A forma de compor mudou muito com o passar do tempo?
MC Leonardo – Lá atrás tinha uma maneira certa de fazer funk, que era: “eu moro na favela tal e minha favela é a melhor favela que tem. E aí mandava um alô para favela tal e para favela tal. No final ele falava sou o MC fulano e o MC cicrano e acabava o rap”. Meu irmão e eu rompemos com isso. O “Rap do Centenário” foi diferente. O “Endereço dos Bailes”, levamos 25 dias pra produzir. Eram seis pessoas empenhadas em fazer um bom trabalho. Não é à toa que logo depois fomos chamados para ir para a Sony Music. De repente as pessoas estavam pagando para gente estar ali. Quando o “Endereço dos Bailes” estourou, em 1994, eu ganhava na banca R$ 1.000 por mês, e a gente passou a receber R$ 800 por noite. Não teve mais como segurar a banca.
DIPLOMATIQUE – E a ida para a Sony?
MC Leonardo – Eu estava no Méier, a gente tinha acabado de pedir um arroz à Piamontese, quando toca o telefone do Marlboro. Ele atende, fica pálido e olha para mim e para o meu irmão. “Vocês estão na Sony Music”! Para qualquer artista, era uma maravilha assinar contrato com uma multinacional na década de 1990. Foi um dos momentos mais felizes da minha vida. Mas não durou muito. Em menos de dois anos, todas as gravadoras que tinham artistas do funk fizeram um acordão para todo mundo sair das companhias. Eu vendi 80 mil discos, hoje seria disco de ouro. Artistas como Angélica e Maurício Mattar, juntos, não venderam nem 20 mil cópias.
DIPLOMATIQUE – O que aconteceu?
MC Leonardo – Eu não posso provar, mas dizem que um grupo de executivos ligados ao mercado fonográfico não via com bons olhos o funk para o Rock in Rio. Lá já tocou axé, forró, lambada, gaúcho da fronteira, já foi tudo menos funk. No último Rock in Rio, começou a tocar Tati Quebra Barraco numa tenda e mandaram parar na mesma hora. É um processo, cara!
DIPLOMATIQUE – Como assim?
MC Leonardo – Lá atrás, nos bailes black, era o polícia da esquina que não gostava de funk. O governo Marcello Alencar (1995-1998) começou, então, a dificultar os alvarás das casas que tocavam funk. Não colocavam policiamento nem transporte público em festa com 3 mil pessoas e não queriam que tivesse confusão? O ritmo é jovem, a batida é eletrizante, tem álcool. Vai fazer o que numa noite em que não tem como voltar para casa? Vai quebrar tudo. Onde falta alguma coisa sempre vai ter o caos. Não foi feita uma política para preservar o baile funk. Se o governo quisesse fazer alguma coisa pelas classes menos favorecidas, teria entupido de informação secretários de Educação, para saber que tipo de linguagem era aquela e, principalmente, a Secretaria de Cultura, para começar uma aproximação. Mas não. Eles preferiram proibir. O filho do rico vai esquiar, vai pegar onda de 15 metros, vai andar a 320 por hora. É adrenalina. E o filho do pobre não pode ter adrenalina? E ainda dá uma televisão a ele para dizer que tem que ter um celular de R$ 3 mil. Ele vai botar um revólver na cintura.
DIPLOMATIQUE – Essa criminalização também serviu para que as classes média e alta se apropriassem do funk.
MC Leonardo – Hoje, vai lá ver quem é que tá na prateleira. É o Caldeirão do Huck. Cadê o MC Dolores? Cadê o Júnior e Leonardo? Cadê o MC Galo?
DIPLOMATIQUE – Como foi a história do Tim Lopes?
MC Leonardo – A gente já tinha a parada do arrastão na nossa conta, que não foi barato. Ela é a segunda maior punhalada que o funk levou até hoje. A maior foi o caso Tim Lopes. Essa foi sinistra. Os jornais publicavam textos dizendo que ele tinha ido fazer uma matéria a partir de uma denúncia de prostituição de menores num baile funk. Esse fato foi desmentido pelo investigador de polícia Daniel Gomes, que já tinha desvendado dezenas de casos no Rio de Janeiro. Ele me disse que não estava defendendo o funk, mas sim a verdade. Tim Lopes tinha uma câmera com bateria para duas horas. Então, se às oito horas da noite esse aparelho estava ligado, às dez já iria acabar. O inspetor Daniel tinha derrubado a hipótese de baile funk já no primeiro depoimento, que foi do motorista do Tim Lopes. Todo mundo sabe que baile em favela não começa antes da meia-noite nos fins de semana. E nenhuma das imagens que Tim Lopes fez tinha a ver com funk. A Central Globo de Jornalismo entrou na 22ª DP e disse que Tim Lopes estava desaparecido após fazer matéria na favela. Ou seja, a Globo, para não se responsabilizar por ter mandado o repórter para uma boca de fumo novamente, afirma que ele foi para a favela filmar um baile funk. Essa declaração acelerou o processo de criminalização do funk. Foi nesse momento que as equipes de som tiveram a maior baixa, justamente quando o funk estava tentando se reerguer com o Bonde do Tigrão e essa rapaziada nova. No relatório final, o inspetor Daniel Gomes não desqualifica o trabalho do Tim Lopes, mas responsabiliza a empresa que o enviou para lá. Isso prejudicou a vida dele, que foi exonerado e até hoje não se recuperou. Sete pessoas foram julgadas. Foram julgamentos longos, em que palavra funk não entrava. Só apareceu quando o inspetor falou que o Tim Lopes não foi filmar nenhum baile funk. E a Globo ignorou a investigação policial e a decisão da Justiça.
DIPLOMATIQUE – Como esse processo afetou sua vida?
MC Leonardo – Em 1997 e 1998 os bailes já estavam acabando por causa da perseguição, principalmente dos comandantes de batalhão. Teve jornal que acusou o funk de causar Aids, de engravidar. Diziam que meninas iam para os bailes sem calcinha! E desde quando isso é crime? O pior é que as pessoas compram essas coisas. Em 1999, eu fui dirigir um táxi.
DIPLOMATIQUE – Também teve uma lei que dificultava os bailes funks, certo? Como foi a luta para derrubá-la?
MC Leonardo – Era uma lei de autoria do ex-deputado Álvaro Lins, que foi cassado sob acusação de evasão de divisas, facilitação de contrabando e formação de quadrilha. Uma lei que misturou a festa mais cara, a rave, onde tinha morrido um garoto em Itaboraí, com a festa mais barata, o baile funk. E ela passou em tempo recorde, sem divulgação.
DIPLOMATIQUE – É nesse contexto que se insere a formação da Apafunk (Associação dos Profissionais e Amigos do Funk)?
MC Leonardo – Eu estava em casa, em maio de 2007, e encontrei a antropóloga Adriana Facina, professora da UFF (Universidade Federal Fluminense). Tudo isso que eu te falei contei para ela, que me disse que eu tinha um potencial que estava sendo desperdiçado. Então, entrei para a política já sabendo o que eu queria. Conheci o Guilherme Pimentel, advogado, que hoje é meu braço direito, e a Adriana colocou na minha cabeça que tinha que fazer rodas de funk. A primeira foi na UFF e a segunda foi na casa dela. Nessa, estavam o deputado federal Chico Alencar e o deputado estadual Marcelo Freixo. Quando eu terminei de falar, o Freixo me chamou no canto e disse: “Olha Leonardo, vamos fazer a lei juntos. Vamos fazer a lei que vai tratar o funk como cultura”.
DIPLOMATIQUE – A partir daí, foi trabalho de formiguinha.
MC Leonardo – Botei a lei do Álvaro debaixo do braço e batia na porta de cada deputado. “Olha, eu preciso fazer com que o funk se torne atividade cultural no Rio de Janeiro”. Aí, ele respondia dizendo que nenhuma atividade cultural precisa de lei. E eu retrucava: “Mas nenhuma foi tão criminalizada e perseguida quanto o funk. Quando o senhor assinou essa lei aqui, deputado, o senhor dificultou a vida de muita gente.” Aí, gerava um debate entre as duas leis. E com a moral rara que o Freixo tem até entre seus opositores, foi possível defender uma cultura de pobre como o funk.
DIPLOMATIQUE – Aí a Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) revogou a lei do Álvaro e aprovou a de vocês.
MC Leonardo – É, mas a lei é um pedaço de papel. É um instrumento de mudança e precisa ser usada, mas sozinha não garante nada. A primeira coisa apreendida no morro Santa Marta quando a UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] chegou lá, em 2008, foi uma equipe de som.
DIPLOMATIQUE – E essas prisões recentes de funkeiros por apologia ao tráfico de drogas, às vésperas do Natal, se encaixam na perseguição ao funk?
MC Leonardo – Sim. A linguagem dos garotos está certa? Não. Mas a realidade dos garotos dentro da favela também não é correta. A maneira de os garotos falar agride a sociedade? Sim. Porque eles falam gírias, não observam as crianças que estão ouvindo. O funk tem que pensar em sua maneira de se comunicar, porque tem crianças como adeptas e consumidores futuros. É preciso ter essa responsabilidade. Só que nós vivemos num país onde um apresentador de televisão faz apologia à tortura, mandando a polícia fazer “um carinho no preso para ele falar”. Nós vivemos num país onde o capitão Nascimento, em uma cena só do filme, comete uns quatro ou cinco crimes, as pessoas aplaudem e ninguém manda prender o diretor. Nós vivemos num mundo onde o GTA, que é o jogo de violência mais jogado do planeta, não tem a opção de ser o policial, só bandido. A missão do boneco do GTA é matar, roubar, traficar.
Se eu fizer uma música falando que a polícia tem que meter o pé na porta dos outros, vou estar fazendo apologia ao crime. Mas não vou ser censurado. Porque esse crime é o que o governo está cometendo, e o crime do governo todo mundo pode aplaudir. Eu até aceito o argumento de apologia ao crime, mas a delegada enquadrou os garotos também como traficantes de drogas, formação de quadrilha, incitação à violência e associação ao tráfico. Isso porque ela sabe que só apologia ao crime não vai prender os garotos. A prisão deles fere a Constituição do país.
DIPLOMATIQUE – É por isso que você fala que a perseguição ao funk não tem a ver com o que ele fala, mas de onde ele vem?
MC Leonardo – Exatamente! A história da senzala e de seus batuques, seus barulhos. O violão não, o piano não, mas o atabaque sim. Até hoje está dentro do coração de muita gente ruim, que não entende história e tem um “pré-conceito” em relação às pessoas. A questão do funk é classista e, pior, racista. O funk é perseguido por racismo. O funk é preto! Tem em sua histeoria a negritude dos bailes black do passado. O funk é democrático e, por isso, perigoso.
Marcelo Salles é jornalista