O futuro da internet (e de nossas relações na web) é seguro?
Escritor e roteirista gaúcho reflete sobre como as relações são afetadas pela tecnologia e a importância do debate sobre questões de autonomia e segurança dentro do contexto de disseminação de discursos de ódio e redesenho da ordem política
Em 2019, ao comentar os trinta anos de sua criação, o inventor da world wide web, Tim Berners-Lee dividiu em três categorias as fontes de disfunção no ambiente da rede:
1) Intenções deliberadamente maliciosas (ataques organizados e comportamento criminoso);
2) Estrutura do sistema que cria incentivos à perversão (a exemplo do modelo comercial em que websites lucram por anúncios, o que estimula a prática do caça-cliques e a disseminação de informações falsas);
3) Consequências negativas imprevistas de um projeto benevolente (como, por exemplo, a democratização do acesso ter levado à degradação do debate online, cada vez mais polarizado e centrado em manifestações de raiva).
Numa entrevista concedida à revista Time, Berners-Lee classificou o ambiente da eleição de Trump e da votação do Brexit como um “ponto de virada” na maneira como enxergava sua própria criação. A desilusão de Berners-Lee com o estado da web é equilibrada com a esperança de que um dia esses problemas possam ser resolvidos e de que a web retome seu propósito de servir à humanidade como um ambiente livre, aberto e democrático para a circulação de informações.
A desconfiança com que Berners-Lee fala da própria criação nos lembra o arrependimento sentido por Victor Frankenstein ao ser confrontado pelas consequências monstruosas de seu experimento. A relação entre a humanidade e suas tecnologias é, afinal, uma história contínua de fascínio e horror. Cada inovação tecnológica guarda em si um potencial destrutivo que só é percebido a posteriori, a partir do momento que seu uso é disseminado. A invenção do carro, afinal de contas, também inventou o acidente automobilístico. Assim como a criança testando os limites da própria curiosidade, somos surpreendidos ao enfiar um garfo na tomada e levar um eletrochoque.
A perversão do caráter da rede é um fenômeno global que sobrepõe as três categorias elencadas por Berners-Lee. Ainda assim, adquire cores típicas em suas manifestações locais. No Brasil, possibilitou a organização de grupos outrora marginalizados (com razão) no debate público e a disseminação dos discursos de ódio, culminando num redesenho da ordem política. Mais recentemente, causa preocupação que esses discursos nocivos sejam disseminados com tamanha facilidade em websites e aplicativos comuns, de uso cotidiano. Em casos mais extremos, são essas teses conspiratórias, ideias preconceituosas e informações mentirosas que servem de combustível a atos de violência (como, por exemplo, os ataques em escolas). Mais do que isso, esse tipo de ambiente parece inspirar em seus usuários a vontade de pertencimento a uma realidade paralela, o desejo de fazer algo significativo para a comunidade e suas crenças.
Não há dúvidas de que a internet estabeleceu condições para inúmeros avanços em diferentes dimensões da experiência humana. Do comércio à cultura, testemunhamos em três décadas a proliferação de novas maneiras de interagir com o mundo. Agora, porém, torna-se ainda mais evidente o caráter perigoso da centralização de poder na mão das big techs. Não podemos esperar que essas empresas, responsáveis pela estruturação problemática da rede, também ofereçam uma solução adequada.
É necessário às instituições, em nível mundial, pensar em novas maneiras de garantir ao usuário sua autonomia e sua segurança. É um debate que precisa ser feito com a maior transparência possível. Ao tentar solucionar o problema, é inevitável esbarrarmos no dilema entre liberdade e controle. Importante lembrar, porém, que uma parcela significativa de nossas vidas já se encontra sob insidioso controle daqueles que administram os rastros gerados por nossos cliques e scrolls.
Matheus Borges (@matheusmedeborg) é escritor e roteirista gaúcho, atualmente mestrando no programa de pós-graduação em letras da UFRGS. O romance “Mil Placebos” (Uboro Lopes, 192 pág.), seu livro de estreia, traça uma investigação psíquica do capitalismo tardio ao analisar os impactos da internet e da tecnologia nas relações afetivas.