O “genocídio”:
Nove meses após a entrada da OTAN em Kosovo, nada comprova a prática de um “holocausto”, que os jornais davam como certaSerge Halimi, Dominique Vidal
É verdade que as notícias que os dirigentes ocidentais asseguravam ter do Kosovo, na época, eram realmente aterradoras. Um integrante da administração americana revelou ao New York Times (4/4/1999): “Pode haver cinqüenta Srebrenica” (ou seja 350 mil mortos). Um outro, citado pelo jornal da rede de televisão ABC (18/4/1999): “Dezenas de milhares de jovens podem ter sido executados”. O Departamento de Estado anuncia, no dia seguinte, que 500 mil kosovares albaneses “estão desaparecidos e teme-se que tenham sido mortos”. Um mês mais tarde, o secretário da defesa, William Cohen, fala em 100 mil desaparecidos e precisa: “Eles podem ter sido assassinados.” (CBS, “Face the Nation”, 16 de maio).
Os números foram prontamente repetidos pela televisão francesa. Jean-Pierre Pernault, por exemplo, evocou as “100 mil a 500 mil pessoas que teriam sido mortas, embora tudo isso esteja no condicional ” (TF1, 20/4/1999l). Na noite seguinte, a mesma cadeia anunciou: “Segundo a OTAN, entre 100 mil e 500 mil homens são dados por desaparecidos. Teme-se que tenham sido executados pelos sérvios (…) Evidentemente, a prova de acusação está por ser feita”. O rádio segue o mesmo passo: Na France Inter, o jornalista credenciado junto à OTAN repercute com entusiasmo as informações da Aliança segundo as quais “centenas de meninos serviriam de bancos de sangue vivos, milhares de outros abririam túmulos ou valas, as mulheres seriam violadas sistematicamente” (20/4/1999, jornal das 19 horas)…
Nas tribunas dos intelectuais favoráveis à OTAN, o indicativo logo substituiria o condicional. Antoine Garapon, magistrado, secretário-geral do Instituto de Altos Estudos para a Justiça, presidente do “comitê Kosovo” e membro de redação da revista Esprit, declara: “Não podemos botar no mesmo saco as prováveis milhares de vítimas sérvias e as centenas de milhares de kosovares massacrados” (Télérama, 23/6/1999). Mais tarde, já nos discursos oficiais, a guerra estava ganha e as estimativas ocidentais do número de mortos albaneses passaram de 6 para 5 dígitos. Em 17 de junho, o ministério do Exterior britânico declarou que “10 mil pessoas foram mortas em mais de cem massacres”; no dia 25, o presidente Clinton confirmou o número de 10 mil kosovares mortos pelos sérvios (The Nation, 8/11/1999). O sr. Bernard Kouchner, nomeado representante especial do secretário geral das Nações Unidas, falaria, em 2 de agosto, de 11 mil kosovares exumados nas valas comuns — o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPI) o desmentirá no mesmo dia. O Le Monde Diplomatique afirmará, muito imprudentemente, na primeira página de seu número de agosto que “a metade das 10 mil vítimas presumidas foi exumada”.
Ora, nove meses depois da entrada da Força Internacional da OTAN (KFOR) em Kosovo, nada, segundo conclusões dos enviados do TPI e de outras organizações internacionais, comprova a acusação de “genocídio”. Aceita-se banalizar o termo, transformando-o em simples sinônimo de “massacre”.
De cada 250 “mortos”, um morreu de fato
Em 23 de setembro, o diário espanhol El País escreve: “Crimes de guerra, sim; genocídio, não. A equipe de peritos espanhóis — integrada por funcionários da polícia científica e juristas civis — foi categórica ao voltar de Istok, região norte de Kosovo sob o controle da Legião (…) Não há nenhuma vala comum.” A missão espanhola, continua El País, “deixou Madrid, no início do mês de agosto, com a sensação de partir para o inferno. ’Diziam que iríamos para a pior região de Kosovo, que deveríamos nos preparar para realizar mais de 2 mil autópsias, que trabalharíamos até o final do mês de novembro. O resultado foi bem diferente: descobrimos 187 cadáveres e já estamos de volta’, explicou, com ajuda de gráficos, o inspetor chefe Juan Lopez Palafox, responsável pela seção antropológica da polícia científica.
Tanto o jurista quanto o policial baseiam-se em suas experiências em Ruanda para afirmar que o que ocorreu em Kosovo — ao menos no perímetro atribuído ao grupo espanhol — não poderia ser qualificado de genocídio. ’Na ex-Iugoslávia, diz Lopez Palafox, houve crimes, alguns horríveis, sem dúvida alguma, porém ligados à guerra; em Ruanda, vimos 450 corpos de mulheres e de crianças, uns sobre os outros, em uma igreja, e todos com o crânio aberto.’ O inspetor chefe acrescentou que em Kosovo, ao contrário, descobriram numerosos cadáveres isolados.”
Dois meses mais tarde, John Laughland confirma no The Spectator (20/11/1999): “Mesmo se estimarmos que todos [os 2018 cadáveres encontrados pelo TPI] são albaneses assassinados por razões étnicas, é um quinto do número antecipado pelo Foreing Office em junho; cinqüenta vezes menos que o número antecipado por William Cohen, em maio; duzentos e cinqüenta vezes menos que o sugerido pelo Departamento de Estado, em abril. E, contudo, nem mesmo essa estimativa está justificada. Primeiramente, na grande maioria dos casos, os corpos estavam enterrados em tumúlos individuais, e não coletivos. Em segundo lugar, o Tribunal não informa qual é a idade e o sexo das vítimas, quanto mais sua nacionalidade. As causas de morte violenta eram numerosas na província de Kosovo: mais de cem sérvios e albaneses foram mortos por ataques terroristas do UCK (Exército de Libertação) albanês, desde o início de sua insurreição ,em 1998; 426 soldados sérvios e 114 policiais do ministério do Interior da Sérvia foram mortos durante a guerra; o UCK, que tinha dezenas de milhares de homens armados, também sofreu perdas, conforme atestam os informes anunciando suas mortes em combate nas cidades de Kosovo; finalmente, mais de 200 pessoas foram mortas, depois da guerra, andando sobre as minas da OTAN que ainda não haviam explodido.
John Laughland prossegue: a senhora Del Ponte, procuradora do TPI, “insiste em que o número [de 1208] não é a contagem definitiva das vítimas, nem mesmo um recenseamento completo dos mortos. (…) De fato, ela supõe que o número final dos cadáveres poderá ser mais alto quando, na primavera, forem retomadas as exumações nos ’locais de crimes’ restantes. Paul Risley [porta-voz da sra. Del Ponte] explica que as exumações foram suspensas ’porque o solo está gelado’. Ora, não havia gelo em Kosovo e o solo não estava gelado no dia em que este artigo foi escrito (15/11/1999). Chovia muito na província e a temperatura chegava a 10 graus. Suspeita-se que a chegada do inverno possa servir de pretexto para adiar por muitos meses a embaraçosa questão do pequeno número de cadáveres, na esperança de que as pessoas esqueçam.”
Matemáticas macabras
Em 22 de novembro, o semanário americano Newsweek, por sua vez, publicava um artigo intitulado “Matemáticas macabras: a contagem das atrocidades diminui”. Aí se lê: “Em abril último, o Departamento de Estado americano dizia que 500 mil pessoas de origem albanesa haviam desaparecido do Kosovo e temiam que houvessem sido mortos. Um mês mais tarde, o secretário da defesa William Cohen, afirmava a um jornalista de televisão que ’aproximadamente 100 mil homens em idade de portar armas’ havia desaparecido. ’Podem ter sido assassinados’, dizia. Depois do final da guerra (…), a OTAN produziu uma estimativa muito mais baixa do número de albaneses mortos pelos sérvios: exatamente 10 mil. Agora, parece que mesmo este número, apesar das atrocidades cometidas pelos sérvios, pode ser alto demais”.
Para explicar a diferença entre as dezenas de milhares de mortos anunciados e os 2018 cadáveres efetivamente encontrados, acusa-se os sérvios de terem apagado os traços de seus crimes, através até de cremação. O jornalista autraliano John Pilger investiga, e em 15 de novembro publica suas conclusões no New Statesman. No coração dos acontecimentos, encontra-se o complexo mineiro de Trepca onde, escreve, “os corpos de 700 albaneses assassinados foram enterrados. Em 7 de julho, o Daily Mirror noticiou que um antigo mineiro, Hakif Isufi, havia visto dezenas de caminhões entrarem na mina durante a noite de 4 de junho e descarregar pesados pacotes. Ele explicou que não conseguiu distinguir o que seriam aqueles pacotes. Para o Mirror, não havia dúvida: ’O que Hakif viu era um dos atos mais desprezíveis da guerra de Slobodan Milosevic — o despejo em massa de cadáveres de pessoas executadas, na tentativa desesperada de dissimular as provas. Os investigadores (…) temem que até 1.000 corpos tenham sido incinerados em fornos (semelhantes aos utilizados em Auschwitz) dessa mina de longos labirintos de túneis e profundos poços .” Sem provas, John Pilger refuta essa reportagem.
Os jornalistas Daniel Pearl e Robert Block investigam. Em 31 de dezembro, na primeira página do Wall Street Journal, publicam o artigo que choca, a ponto de o jornal justificar a guerra da OTAN no dia seguinte, num editorial confuso. “No final do verão — escrevem os repórteres — as histórias da instalação de crematórios comparáveis aos dos nazis eram tão divulgadas que os investigadores enviaram à mina, para procurar os cadáveres, uma equipe de três policiais espeleólogos franceses. Não encontraram nada. Uma outra equipe analisou as cinzas do forno. Não encontrou nenhum dente nem qualquer outro sinal de corpos queimados. Em Kosovo, na última primavera, as forças iugoslavas fizeram coisas atrozes. Expulsaram centenas de milhares de kosovares albaneses queimando suas casas e promoveram execuções sumárias. (…) Porém, outras alegações — morticínio indiscriminado em massa, campos de violação, mutilação dos mortos — não foram confirmadas (…). Militantes kosovares albaneses, as organizações humanitárias, a OTAN e a mídia alimentaram-se uns aos outros, para dar credibilidade aos rumores do genocídio.”
Obsessão pelas tumbas coletivas
Segundo o Wall Street Journal, os dez anos de guerra na ex-Iugoslávia também pesaram sobre os comportamentos: “Muitos jornalistas tinham a experiência da Bósnia, onde o massacre em massa (segundo estimativas) de 7 mil homens da ’zona de segurança’ de Srebrenica, em 1995, os incitou a não ser céticos demais em relação aos relatos das atrocidades sérvias. A Bósna rendeu três prêmios Pulitzer a jornalistas que comprovaram aquelas atrocidades. Quando o Kosovo foi, finalmente, aberto à imprensa estrangeira, em junho, vigaristas cortejavam jornalistas no saguão do Grande Hotel de Pristina, propondo acompanhá-los até os túmulos”.
Para descrever o que qualificam de “obsessão pelas tumbas coletivas”, Pearl e Block dão o exemplo de Ljubenic, um pobre vilarejo de duzentas casas a oeste do Kosovo. “Em 9 de julho, o comandante holandês Jan Joosten, com base num ’relatório de operação’dos italianos, menciona, durante uma entrevista coletiva em Pristina, a descoberta de uma tumba coletiva onde poderiam ser encontrados 350 corpos. Os jornalistas, explicou, começaram a fazer as malas para partir para Ljubenic antes mesmo de terminada a entrevista. No dia seguinte, em Londres, o Independent noticiava: ’A maior vala comum contém 350 vítimas’. (…) Os investigadores não encontraram, efetivamente, nenhum cadáver no local.” A lista do UCK tem 65 nomes. A imprensa alemã também soube recuar. Em 10 de janeiro último, no Spiegel, Erich Follath constata, ao fim de uma longa investigação: “Para fazer sucesso no front da propaganda os dirigentes democratas do Ocidente recorrem, de tempos em tempos, a meios duvidosos. O ministro alemão da Defesa chama atenção particularmente por utilizar notícias sensacionalistas.” E relata como “no início de abril, Scharping fala de ’sérias indicações sobre os campos de concentração de Kosovo’. Está na cara que o estádio de Pristina não pode ter sido transformado em campo de concentração para 100 cem homens. No entanto, rapidamente, imagens tomadas por aviões teleguiados de vigilância alemães refutam as afirmações da propaganda do chefe do UCK, Thaci.” O mesmo ministro recomeça exibindo, em 27 de abril, “uma nova prova das atrocidades cometidas pelos sérvios: as imagens de um massacre de kosovares. Ele afirma prontamente que a agência de notícias Reuters publicara, três meses antes, fotos tão terríveis como as desse massacre cometido no vilarejo de Rugovo (…) Segundo a Reuters, os mortos não eram civis, mas combatentes do UCK, assassinados para vingar a morte de um oficial sérvio”. Desmentido, Scharping, ainda assim, continua “a apresentar terríveis relatos das vítimas como fatos: os assassinos ’jogam futebol com cabeças cortadas, decepam os cadáveres, arrancam fetos de mulheres grávidas mortas e os assam.’”
O “detalhe” que Lévy omitiu
Em 11 de janeiro de 2000, o Le Monde, em página dupla, voltou ao assunto do volumoso relatório sobre a guerra publicado, cinco dias antes, pela Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE). Comentário de Bernard-Henry Lévy (Le Point, 14/1/2000): “Enfim, as coisas estão claras. Primeiro, as atrocidades sérvias contra civis, especialmente muçulmanos, começaram bem antes das operações da OTAN. Segundo, elas não se comparam com aquelas que o UCK pôde cometer. Terceiro, os investigadores comprovaram, sempre segundo o Le Monde, que essas atrocidades seguiram um plano premeditado e que teriam ocorrido, claramente falando, com ou sem intervenção aliada. Fim do debate.”
O debate estaria encerrado, se o resumo do Monde, ainda que detalhado, não omitisse a síntese que os investigadores europeus publicaram na terceira parte de seu relatório (“As violações dos Direitos do Homem em Kosovo”, capítulo 5: “Violação do direito à vida”): “As mortes sumárias e arbitrárias tornaram-se um fenômeno generalizado em todo o Kosovo, com o início da campanha aérea da OTAN contra a RFI (República Federal da Iugoslávia) na noite de 24 para 25 de março. Até então, a atenção das forças militares e de segurança iugoslavas e sérvias, em Kosovo, dirigia-se a comunidades em regiões por onde passavam