O golpe de 2016 e seu estudo nas universidades
Se várias universidades resolveram colocar o tema “O golpe de 2016” como objeto de reflexão e ensino, é porque o assunto é digno de ser abordado de maneira científica, metódica e sistemática. Os que possuem outra concepção dos acontecimentos de 2016 também têm autonomia para criar disciplinas e cursos que analisem a realidade sob outra ótica
O clamor irracionalista da nova direita
O espernear do momento da “nova direita” brasileira são os cursos sobre o golpe de 2016 que começam a ser ministrados em várias universidades públicas do país, motivadas pelo fato de o Ministro da Educação ter tentado coibir a iniciativa do professor Luiz Felipe Miguel, da UnB, de ofertar uma disciplina optativa sobre o tema no curso de Ciência Política. A reação não é surpreendente, dadas as características que compõem o perfil desse grupo social que se formou no processo de construção do golpe. A propósito, essa própria direita deve ser objeto de análise teórica nos cursos.
Não estamos falando de um grupo social mais ou menos orientado pelas elaborações de pensadores e lideranças que, consoantes e coerentes com os princípios do liberalismo, por convicção, apresentam ideias dentro dos parâmetros da racionalidade discursiva e dialógica. Esses – que ainda devem existir, mas estão silenciosos, provavelmente recolhidos em algum recôndito social – seriam capazes de apresentar suas proposições e análises com lógica e consistência, tornando-as passíveis de entendimento e crítica. Certamente reconheceriam os argumentos contrários e tentariam refutá-los ou reinterpretá-los para adequá-los ao corpo teórico que utilizam ou aceitá-los como elementos que modificam suas próprias convicções teóricas. Não temeriam o contraditório e tampouco usariam subterfúgios para censurá-lo ou silenciá-lo. Procurariam derrubá-lo na argumentação racional.
A nova direita, ao contrário, não apresenta esses traços de racionalidade. Sua própria conformação é paradoxal: corruptos com discurso anticorrupção, “intelectuais” sem estudo, líderes sem liderança, pornográficos moralistas, pretensos filósofos, sociólogos e cientistas políticos sem formação acadêmica (cujo aprendizado se deu apenas pelas redes sociais, blogs e sites de institutos ideológicos), juventude ativista “revolucionária” bancada por institutos vinculados à mega-indústria de petróleo estadunidense, grupos “independentes” financiados por partidos políticos, etc.
Seus elaboradores são: jornalistas que se arrogam a capacidade de fornecer a opinião correta sobre a totalidade dos assuntos e que se submetem a tudo para fazer o jogo dos donos das empresas de comunicação; historiadores (amadores ou diplomados) para os quais importa mais o destaque pessoal e a polêmica que os colocarão em evidência do que a relevância dos fatos históricos e sua complexa interpretação teórica; jovens que aprenderam a usar adjetivos e frases de efeito e se tornaram colunistas de revistas e jornais, convencidos de sua capacidade de elaboração de algum pensamento só porque descobriram a arte do ilusionismo com palavras; filósofos autodeclarados que decoram a história da filosofia e a misturam com seu discurso ideológico raivoso e, muitas vezes, desconexo, para dar impressão de que aquela tem alguma coisa a ver com este e criar a imagem pública de intelectual sério; e outras figuras idiossincráticas.
Não raras vezes, esses ideólogos apenas copiam e colam frases e truísmos que recolheram de blogs, think tanks liberais e meia dúzia de livros. Quando se propõem a argumentar, despejam coisas que, de tão distantes de qualquer fenômeno real, tornam-se a tal ponto sem sentido que não estão “sequer erradas”. Sua contestação se torna impossível não por serem solidamente formuladas, mas por serem desprovidas de qualquer sentido criticável. Tais afirmações se misturam com outras com mais sentido, mas colocadas fora de contexto, e outras flagrantemente falsas. Tudo vem em pacotes e submetê-las a um debate crítico é como jogar pingue-pongue com o adversário lançando milhares de bolinhas ao mesmo tempo – e, entre elas, algumas bolas de barro.
Tente pensar uma forma de, em poucas palavras, refutar a afirmação (existente) de que “a Rede Globo é de esquerda porque defende os traficantes, as mulheres e homossexuais, protege o Lula e está a serviço da implantação do comunismo no Brasil”. (Se duvida disso e tiver paciência, vá ao Google e faça uma busca com as palavras “Rede Globo de esquerda”).
A nova direita e o golpe de 2016
Por sua própria força e capacidade de elaboração e formação de opinião os ideólogos da nova direita jamais exorbitariam o círculo limitado de seguidores que já possuíam no passado ou teriam leitores suficientes para justificar sua contratação como colunistas ou blogueiros de algum veículo de comunicação de massa. Ocorre que, na estratégia do “golpe suave” é necessário criar uma opinião pública contrária ao governo que se quer derrubar e a tudo que a ele se relacione. Se os fatos reais e os motivos racionais são insuficientes para tanto, cria-se um sentimento, uma disposição social motivada por falsas notícias e pela criação do ódio irracional a ideias e grupos sociais. Trata-se da colocação em prática do que Bernays ensinou aos donos do poder na primeira metade do século XX:
Palavras, sons e imagens fazem pouco a não ser que sejam as ferramentas de um plano profundamente pensado e de métodos cuidadosamente organizados. Se os planos forem bem formulados e um uso adequado é feito deles, as ideias veiculadas pelas palavras se tornarão realmente parte e componente das pessoas. Quando o público está convencido da veracidade de uma ideia, ele seguirá para a ação. As pessoas traduzem uma ideia em ação sugerida pela ideia mesma, seja ela ideológica, política ou social¹.
Para os verdadeiros planejadores e protagonistas da derrubada do governo eleito no Brasil, o momento pedia não intelectuais de direita, formuladores ou expositores do pensamento político e econômico liberal. Não seria a discussão acadêmica de alto nível que iria fortalecer suas intenções espúrias. Até porque, os governos eleitos do PT não deixavam nada a desejar ao pensamento liberal moderado, sendo passíveis de crítica teórica muito mais à luz do pensamento de esquerda.
O que precisavam era de cães raivosos prontos para o ataque sem questionamento das razões, pois o que estava em jogo eram apenas ganhos monetários e financeiros, desejos de apropriação do patrimônio nacional (em particular as reservas do pré-sal), impunidade na prática de corrupção, direito de enriquecer sem prestar contas à Justiça, ao Estado e à sociedade. O plano não se justificava racionalmente: deveria ser executado ou por meio da irracionalidade da violência ou com a permissão da população pela deformação da subjetividade social.
Para tanto, projetaram e usaram as figuras esquisitas que se tornaram os modeladores da opinião da nova direita. São pessoas refratárias ao pensamento contrário ou mesmo diferente. Não concordar com eles faz o dissidente ser imediatamente identificado com um campo de pensamento, partido ou figuras públicas, ainda que a pessoa não tenha absolutamente nenhuma relação com isso – e sobre ela pesará uma quantidade tão grande de adjetivos depreciativos que apenas a defesa das desqualificações e dos termos pejorativos tomará todo o tempo que poderia ser dedicado à discussão do que houvesse de substantivo no debate.
Como é de se imaginar, os formadores de opinião da nova direita rejeitam a teoria e o estudo cuidadoso e científico dos fenômenos sociais. São, portanto, inimigos dos intelectuais e da academia. Para eles, professores universitários, cientistas políticos, historiadores, sociólogos, filósofos, etc. são apenas um grupo de esquerdistas formados conjuntamente em algum galpão clandestino, que leram dois ou três livros e que têm o projeto comum de perverter a cabeça da juventude para propósitos de “estabelecer o comunismo no país” (mas nunca esclarecem o que isso seja).
Deliberadamente ou por acreditarem mesmo no seu ilusionismo e na sua capacidade de pensamento artificialmente valorizada, os ideólogos da nova direita se sentem mais gabaritados para definir o que a universidade deve ou não ensinar do que os pesquisadores e professores, doutores e mestres, que dedicam sua vida ao trabalho acadêmico e ao estudo aprofundado e metódico de seus campos de conhecimento. É como se um prestidigitador amador, tendo comprado uma maleta de mágica pela Internet, se exaltasse tanto com seus truques banais a ponto de acreditar possuir realmente poderes mágicos.
O estudo do golpe nas universidades federais
Quando a academia se debruça sobre um tema não significa que ela detém a verdade completa sobre ele ou mesmo que chegue a resultados que são obrigatoriamente aceitáveis e incontestáveis. Pelo contrário, o mundo acadêmico precisa ser criticado na pertinência e nas conclusões de suas pesquisas, comparando-as com as demandas sociais, e na sua relação com outros tipos de saberes não sistemáticos detidos pelos povos que não estão no ambiente das universidades.
Porém, ela se caracteriza por submeter o objeto de seu estudo a um rigor metodológico e à análise de profissionais com formação, credenciados, capacitados e concursados para o exercício da função. Se há profissionais que não exercem bem suas obrigações, isso é comum a todas as instituições e deve ser tratado como exceção. As universidades públicas ainda são as principais referências de pesquisa no país e estão à frente de todas as demais em qualidade de ensino.
Se várias universidades resolveram colocar o tema “O golpe de 2016” como objeto de reflexão e ensino, é porque o assunto é digno de ser abordado de maneira científica, metódica e sistemática. Os que possuem outra concepção dos acontecimentos de 2016 também têm autonomia para criar disciplinas e cursos que analisem a realidade sob outra ótica.
A atitude de censura e a reação raivosa do ministro da educação são absolutamente justificável: é claro que alguém que ocupa ilegitimamente um ministério da República, membro de um partido que perdeu as eleições presidenciais e que, portanto, nunca teria cargo no governo em condições de normalidade, jamais ficaria confortável com a exposição de sua vergonha em público, principalmente com razões que superam as propagandas do Governo e os discursos fracos dos ideólogos da nova direita. O problema é o titular da pasta da Educação ignorar as prerrogativas do sistema público de educação e os pilares constitucionais do ensino universitário – cujo conhecimento seria o mínimo esperado de alguém que ocupa aquele ministério.
As universidades devem analisar criticamente e sob diversos aspectos a narrativa de “impeachment constitucional”, pois este só se justifica em caso de crime de responsabilidade. São um fato político digno de estudo e pesquisa (para a ciência política, direito, filosofia social e política, sociologia, psicologia social, linguística, etc.) as motivações declaradas dos deputados federais na votação da admissibilidade do impedimento. O objeto da acusação simplesmente desapareceu sob os votos dados em nome da família, de Deus, das igrejas, do filho, da esposa, etc. Qual a constitucionalidade de um processo que se desvia do objeto da acusação para punir o acusado em nome de coisas abstratas?
Fenômeno mais intrigante se deu no Senado Federal, responsável pela destituição definitiva da presidente eleita. Alguns senadores admitiram ter votado a favor do impedimento sem crime de responsabilidade.
“Rose de Freitas [senadora do PMDB-ES] já adiantou o voto favorável ao impedimento da presidente Dilma Rousseff, mas não devido às chamadas pedaladas fiscais. Neste caso, Rose não vê crime de responsabilidade, mas defende a saída de Dilma do Poder” (A Gazeta, 22/04/2016)
“Senador vota pelo impeachment, mas diz que não há crime de Dilma. Em vídeo, Acir Gurgacz [senador do PDT-RO] diz que não vê crime de responsabilidade no caso. ‘Falta governabilidade para a presidente voltar a governar’, justificou.” (Portal G1, 31/08/2016)
“Na nota, Telmário [Mota, senador do PTB-RR] afirma que Dilma não cometeu crime e que o impeachment foi aprovado por causa da perda de apoio político da petista. ‘Considero que a presidente Dilma não foi afastada pela pratica de crime algum, mas sim por posturas políticas adotadas, que não foram capazes de conquistar uma base de apoio congressual minimamente favorável ao seu governo’, diz o texto assinado pelo senador”. (Portal Uol, 31/08/2016)
Ora, se não estamos no parlamentarismo, a aprovação da destituição da presidente legitimamente sufragada em uma eleição, posteriormente julgada legal pelo TSE, sem que houvesse crime de responsabilidade é uma manobra de tomada do poder por meios não legais. O próprio Ministério Público Federal emitiu parecer afirmando não ser as “pedaladas fiscais” crime de responsabilidade – porém não se manifestou sobre o resultado do processo parlamentar. Permitiu que a Constituição fosse desrespeitada, segundo sua própria interpretação, mas não agiu em defesa da lei.
Mais ainda, se de fato, para o parlamento, as “pedaladas” passam agora a ser crime de responsabilidade passível de cassação de mandato, por que não se criou uma cascata de cassações de governadores que praticam o mesmo ato com frequência?
Para esse tipo de destituição de uma mandatária eleita (independente da avaliação que se faça de seu governo) não há outro nome na literatura a não ser “golpe de Estado”. Um golpe não se caracteriza pelo meio utilizado para ser colocado em prática (se usa o Exército, o Judiciário ou o Parlamento). O que o define é o fato de grupos minoritários se apropriarem do poder sem respeitar a decisão da maioria e os mecanismos institucionais e jurídicos que garantem o Estado de direito.
O fato de o golpe anticonstitucional ter tido maquiagem de constitucionalidade não é um acaso. Tal tipo de ação tem sido a nova estratégia de intervenção das potências do Ocidente (lideradas pelos EUA) na política de países que estão sob seu interesse – como revela a história recente de países como a Geórgia, Síria, Egito, Jordânia, Honduras, Paraguai, Venezuela, etc. O termo que vem sendo utilizado para defini-la é “Golpe Suave”, uma estratégia sistematizada, estudada e publicada e, cada vez com mais frequência, aplicada em vários países do mundo.
Estudar essa nova estratégia de destituição de governos no mundo contemporâneo é condição fundamental para o entendimento de geopolítica, geoeconomia e das novas configurações do poder no mundo Globalizado. Por isso, deve ser estudada de maneira acadêmica, ou seja, de forma metódica e sistemática nos ambientes universitários e ser também tratada como objeto de ensino em diferentes campos do saber. Entender sua aplicação no Brasil é condição para se entender o próprio país.
Quem é contrário a que esse estudo seja feito nas universidades deve contentar-se em entender o país por meio de blogs de internet, think tanks liberais, “memes” de Facebook e leituras dinâmicas de textos de meninos cujo conteúdo não consegue ultrapassar adjetivos, falsas analogias e frases de efeito. Mas não se pode querer retirar o direito de quem quer estudar o Brasil com mais seriedade e responsabilidade.
Os elaboradores da nova direita e seus seguidores vêm atacando as universidades públicas acusando-as de ser um local de formação de ideias contrárias à sua ideologia de direita difusa. Mas, o fato das universidades serem o lugar onde mais se estuda, pesquisa e debate com profundidade e, ao mesmo tempo, o local em que a nova direita reconhece que suas ideias são rechaçadas não é uma coincidência.
Maurício Abdalla é professor de filosofia na Universidade Federal do Espírito Santo