O grito silencioso dos cuidadores em São Paulo
O vínculo empregatício é disfarçado sob a aparência de autonomia, mas, na realidade, trata-se de uma relação precarizada
Cuidamos com zelo, paciência e presença. Acolhemos a dor do outro, seguramos as mãos trêmulas, escutamos silêncios longos, acompanhamos até o último suspiro. Cuidamos mesmo quando o corpo já não aguenta, mesmo quando o emocional está por um fio. E, ainda assim, há quem nos trate como descartáveis.
Para muitos de nós, o cuidado vai além de uma profissão: é um chamado, algo que preenche e dá sentido à vida. Buscamos qualificação, porque acreditamos em um serviço de excelência. Mas a realidade que enfrentamos, especialmente em São Paulo e em tantas outras cidades brasileiras, é marcada por jornadas exaustivas, salários indignos e calotes frequentes. Agências que prometem respeito e oportunidade desaparecem na hora de pagar. O silêncio do poder público e a ausência de uma regulamentação efetiva escancaram a negligência com uma categoria que sustenta a dignidade alheia — mesmo quando a sua própria é negada.

Como se não bastasse, cresce de forma alarmante a prática da “pejotização” forçada. Cuidadores são pressionados a abrir empresas, emitir notas fiscais e assumir encargos que, na prática, deveriam ser responsabilidade do contratante. O vínculo empregatício é disfarçado sob a aparência de autonomia, mas, na realidade, trata-se de uma relação precarizada — sem garantias, sem direitos, sem segurança.
Essa falsa autonomia impõe um peso extra: enfrentar um sistema tributário sufocante. Os impostos cobrados de microempreendedores e pequenos prestadores de serviço tornam-se um desafio quase intransponível para quem já lida com a instabilidade da informalidade. Muitos cuidadores vivem o dilema mensal entre pagar os tributos ou colocar comida na mesa. A dignidade, pouco a pouco, vai sendo corroída.
Trabalhamos à noite, nos fins de semana, em feriados, em plantões de 12, 24, 48 horas. Cruzamos a cidade com sono e cansaço. E, muitas vezes, voltamos para casa de mãos vazias — sem salário, sem contrato, sem sequer um pedido de desculpas.
Essa é uma ferida que não costuma aparecer nas manchetes, mas ela dói. Porque quem cuida também precisa ser cuidado.
Não somos apenas prestadores de serviço. Somos profissionais essenciais. Somos gente. E merecemos dignidade. Que essa realidade deixe de ser normalizada. Que a voz de quem cuida ecoe com força.
Basta de exploração disfarçada de cuidado. O cuidado não pode ser moeda de troca para a precarização do trabalho.
Clécia Rocha é jornalista por vocação e palavra, com formação em Comunicação Social e uma trajetória dedicada a dar voz a quem quase nunca é ouvido. Natural de Feira de Santana (BA), percorreu redações, rádios e assessorias de imprensa, sempre com o olhar atento às causas sociais e à escuta das margens. Seu trabalho é atravessado pelo compromisso com a dignidade humana, sobretudo das mulheres invisibilizadas pelo sistema. Acredita que contar essas histórias é uma forma de resistência, reparação e esperança.