O habitar precário e invisível: conflitos e disputas da política habitacional no território da Cracolândia
Confira quinto artigo da série do Le Monde Diplomatique Brasil sobre a cracolândia paulistana, exclusiva para versão digital. Com diferentes olhares – jurídico, urbano, saúde mental, dos movimentos sociais e do patrimônio histórico –, o objetivo do especial é traçar um diagnóstico da situação, avaliar as políticas adotadas e, quando possível, apontar caminhos ou soluções. Neste texto, Simone Gatti, professora de planejamento urbano e pós-doutoranda na FAU USP, fala da perspectiva habitacional
Até o início do século XXI as tentativas de transformação urbana no centro de São Paulo estavam pautadas nos projetos culturais e na valorização do espaço público. Os governos municipais e estaduais investiram massivamente no restauro do patrimônio histórico e cultural e na revitalização de espaços públicos significativos. Anos se passaram e grande parte das áreas que receberam tais investimentos, apesar do êxito dos projetos culturais, não se transformaram. Pouca coisa mudou.
O tema de hoje é outro: habitação de interesse social complementada com equipamentos públicos e melhorias urbanísticas. O consenso da cidade compacta, com moradia próxima ao trabalho, ganhou corpo na política pública. Como questioná-la, considerando ser este o grande vácuo das intervenções das gestões municipais sobre a região central?
O que está em jogo, entretanto, é o “como” e o “para quem” que norteia as iniciativas apresentadas recentemente pela gestão pública, municipal e estadual. As atuais intervenções propostas para a região da Luz e Campos Elíseos, bem como as que foram apresentadas na gestão Serra-Kassab para o extinto Projeto Nova Luz, não incluem a princípio a população residente e não beneficiam os moradores ou comerciantes de baixa renda, que por lei deveriam ser os beneficiários prioritários de qualquer intervenção que ocorra na região onde moram e trabalham.
A Prefeitura de São Paulo iniciou um processo de demolições e remoções nas quadras que faziam divisa com o fluxo dos usuários de crack, a tão estigmatizada Cracolândia. A intenção, apresentada ainda informalmente para a imprensa, seria a construção de unidades habitacionais e equipamentos públicos via uma parceria público-privada, a PPP de Habitação do Centro, promovida pela Casa Paulista, agência do Governo do Estado de São Paulo, em parceria com a prefeitura municipal. Nesta PPP, que já está em andamento nos terrenos vizinhos, 80% das moradias está destinada à população que trabalha no centro mas que mora em áreas distantes, a fim de aproximar moradia e emprego e reduzir os deslocamentos diários e os consecutivos problemas de mobilidade. Uma iniciativa a princípio interessante, mas que está sendo planejada agora para áreas demarcadas pelo Plano Diretor como Zonas Especiais de Interesse Social, as ZEIS 3, onde 60% da área construída deve ser destinada para famílias com renda inferior a 3 salários mínimos e deve beneficiar prioritariamente os moradores locais, muitos deles ocupantes de cortiços.
Tanto a demanda como o atendimento por faixa de renda da PPP não correspondem às regras das ZEIS, que ainda deve ter um Conselho Gestor formado por representantes da sociedade civil e do poder público para elaborar e aprovar o Plano de Urbanização da área, a fim de garantir a inclusão dos atores envolvidos. Ou seja, segundo determinação do Plano Diretor, nenhuma intervenção poderia ser iniciada sem a aprovação da população.
O Conselho Gestor entrou em fase de formação pela Sehab após a imprensa ter noticiado a Ação Civil Pública movida pela Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público Estadual no dia 9 de junho que, entre outros pedidos, condiciona qualquer intervenção no local à formação do Conselho. O processo de formação do Conselho Gestor foi iniciado, contudo, após demolições e remoções de moradores e comerciantes locais e sem um plano de comunicação que os permita tomar conhecimento das intervenções pretendidas e do papel do conselho.
O processo agora está sob acompanhamento do Ministério Público para que seja reformulado de acordo com os parâmentros legais. Essa reformulação precisa incluir um Plano de Comunicação com tempo hábil para que a prefeitura comunique os moradores sobre os objetivos da intervenção, sobre os direitos e deveres dos futuros conselheiros e os prepare para um processo eleitoral, ação nada fácil e nada rápida considerando o nível de vulnerabilidade da população envolvida.
Outra questão em jogo sobre a formação desse Conselho Gestor é a definição de sua área de atuação, que não pode abranger apenas o perímetro da intervenção mas todo o perímetro da ZEIS que envolve as quadras circundantes, considerando os impactos que as transformações trarão para o território e os possíveis desdobramentos do projeto inicial.
Perímetro do Decreto de Utilidade Pública (DUP), local das recentes intervenções da Prefeitura Municipal, inserido na ZEIS 3 C 108. Elaboração: Simone Gatti (FAU-USP) e Vitor Nisida (Instituto Pólis).
ZEIS na Nova Luz e nos Campos Elíseos: problemas e estratégias em comum
A estratégia de intervenção da gestão atual sobre a área da Luz-Campos Elliseos é a mesma utilizada pela gestão Serra-Kassab durante a elaboração do projeto Nova Luz, quando uma série de imóveis foram demolidos para dar lugar às primeiras intervenções previstas no projeto. Em pesquisa feita junto aos documentos da Sehab realizada entre os anos de 2010 e 2011, oito cortiços foram interditados e seis deles demolidos, provocando a desterritorialização de 97 famílias. Desse total, 61 famílias não receberam nenhum tipo de atendimento por parte da Prefeitura Municipal e catorze famílias foram realocadas na periferia.
Cortiços demolidos no perímetro original do projeto Nova Luz. Elaboração da autora.
Tabulação do encaminhamento da população removida dos cortiços demolidos no perímetro original do projeto Nova Luz. Fonte: Sehab. Elaboração da autora.
Um levantamento preliminar da prefeitura realizado nas duas quadras da intervenção atual demarcadas pelo Decreto de Utilidade Pública (DUP), publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 7 de junho de 2017, apontou que, dos 688 imóveis existentes, 626 são residenciais, estando 278 vazios e 348 ocupados, a maior parte por cortiços e habitações precárias. Tal como a área da ZEIS cadastrada no perímetro do Projeto Nova Luz, onde 85,27% das famílias possuíam renda inferior a três salários mínimos e 72,09% eram locatários, a área de intervenção na região da Cracolândia é caracterizada por uma população altamente vulnerável, social e economicamente.
A precariedade habitacional das áreas centrais é um dos motivos pela qual o Plano Diretor Estratégico de 2002 demarcou os perímetros de ZEIS 3. Segundo a lei em vigor, ZEIS 3 são “áreas com ocorrência de imóveis ociosos, subutilizados, não utilizados, encortiçados ou deteriorados” localizadas em regiões dotadas de infraestrutura urbana onde haja interesse na promoção de habitação social. A constituição da ZEIS 3, além de objetivar a produção de novas moradias em áreas subutilizadas, tem como princípio equacionar o histórico problema da precariedade habitacional das áreas centrais sem expulsar os moradores, incluindo-os no processo de transformação urbana. O Plano Diretor de 2014 reforça esse argumento quando determina que, “em caso de demolição de edificação usada como cortiço, as moradias produzidas no terreno deverão ser designadas prioritariamente à população moradora no antigo imóvel”.
Os cortiços representam, historicamente, a possibilidade de acesso da população mais vulnerável a uma moradia bem localizada. Suas condições de precariedade remontam a mais de um século na cidade de São Paulo e é ainda reforçada pelo alto preço pago para se viver em cortiços, que representam um dos aluguéis mais caros por m² da capital paulista. Contudo, morar em cortiços representa estar perto do emprego ou das condições de trabalho informal, economizar tempo e dinheiro em deslocamentos diários, ter acesso as equipamentos públicos como escola e hospitais e à infraestrutura urbana, diferente de muitas áreas periféricas. Representa ainda o acesso à moradia para aqueles que não possuem acesso ao mercado formal, seja pela falta de documentação necessária para o contrato do aluguel, pela ausência de um fiador ou dinheiro para o seguro fiança ou ainda por terem seus nomes vinculados às agências de proteção de crédito. São estes e outros motivos que justificam a histórica luta da moradia por habitação de baixa renda na área central, somada ainda ao desejo de manter as relações sociais estabelecidas ao longo da vida, já que grande parte da população encortiçada vive nas áreas centrais há muitos anos.
Essa vulnerabilidade econômica se soma ainda à vulnerabilidade social, retratada com bastante precisão no estudo que a assessoria técnica Peabiru desenvolveu na pesquisa sobre os cortiços localizados no perímetro da Operação Urbana Bairros do Tamanduateí. São condições humanas das mais diversas, que passam por “inseguranças da condição de estrangeiro, imigrante ou refugiado; a violência contra a mulher e outras questões de gênero; a ausência da figura masculina (companheiro ou pai) e a existência de famílias monoparentais, com muitos filhos ainda pequenos; o trabalho “autônomo” viabilizado no limite da precarização e, ainda assim, associado à produção formal da indústria; o “nomadismo involuntário” provocado por conflitos familiares, despejos, incêndios e outras instabilidades em relação à moradia; o “mundo do crime”, tráfico e consumo de drogas; a polícia e o sistema prisional”.
Essa mesma diversidade está presente nos imóveis localizados nas quadras 37 e 38 do bairro Campos Elíseos, cuja população a prefeitura municipal terá que realocar para outras áreas no momento da introdução do projeto habitacional em parceria com o Governo do Estado. Como vimos na análise dos cortiços no perímetro do Projeto Nova Luz, nesses processos de remoções muitas famílias acabam indo morar em áreas periféricas, ou ficam sem atendimento, voltando a ocupar outros cortiços, favelas existentes no Centro ou indo morar nas ruas.
Propriedade ou moradia? Para quem?
Outra questão importante a ser tratada sobre as formas de atendimento habitacional na área central passa pelo histórico debate sobre a propriedade privada, que tem sido a política dominante para habitação de interesse social e que não é a solução para as famílias de baixíssima renda, sobretudo em áreas sujeitas à valorização imobiliária.
No processo de formação do Conselho Gestor da ZEIS das quadras 37 e 38, iniciado há poucos dias pela Secretaria Municipal de Habitação, foi solicitado aos moradores que levassem fotos 3×4 para que se inscrevessem como candidatos. Esse foi um dos motivos que dificultou a participação de muitos moradores no processo eleitoral, o fato de não terem recursos para tirar a foto, tamanha a condição de vulnerabilidade das famílias. Reassentá-los em unidades habitacionais formais, com a responsabilidade de pagar prestações mensais, taxas condominiais e de serviços públicos tal como as habitações ofertadas pela PPP de Habitação, parece a condição ideal para essa população?
Colocar em prática alcances recentes na formulação de políticas habitacionais como o Serviço de Moradia Social, regulado pelo Artigo 295 do Plano Diretor de 2014 e proposto no Plano Municipal de Habitação, bem como investir na ampliação do estoque de edifícios públicos do programa Locação Social, poderia iniciar com efetividade uma solução para as famílias que vivem precariamente nas áreas centrais. E essas modalidades não precisam necessariamente excluir outras formas de oferta habitacional, como a própria PPP. A política habitacional pode trabalhar com arranjos que englobem diferentes formas de acesso à moradia para diferentes perfis de moradores, desde que a faixa mais vulnerável da população seja contemplada e as áreas demarcadas para essa prioridade sejam respeitadas.
Não se trata de rejeitar o papel da iniciativa privada na produção de habitação social e na construção da cidade, desde que ela seja feita de acordo com os princípios da regulamentação urbanística que foi pactuada com a sociedade, e atenda com efetividade o interesse público. E qual é o interesse público? O “como” e o “para quem” entram novamente no debate.
São 80.389 domicílios em cortiços no município e 15.905 pessoas em situação de rua. O Centro de Estudos da Metrópole apontou com base nos dados do Censo de 2010 que 74,5% do déficit municipal encontra-se nas famílias de até três salários mínimos, 4,9% nas famílias sem renda e apenas 20,5% nas famílias que recebem entre três e seis salários mínimos. A PPP habitacional, além de não obedecer a regra das ZEIS, não inclui as famílias com renda inferior a 1 salário mínimo, não prioriza as famílias moradoras de cortiços (pois 80% deve morar fora do centro) e não oferece unidades desvinculadas da propriedade privada, ou seja, não oferece um serviço de moradia permanente e contínuo, mas unidades colocadas no mercado e vulneráveis ao processo de valorização das áreas centrais e à revenda para famílias com maior poder aquisitivo. É um projeto habitacional que não atende à população residente das áreas que ela quer ocupar. Está sendo cumprido o interesse público?
A prefeitura municipal não trata ainda oficialmente sobre a escolha da PPP da Habitação para a área das quadras 37 e 38, embora já tenha noticiado em muitos canais de comunicação sua intenção em fazê-la. Contudo, a limpeza da área, que não envolve só sujeira mas construção e pessoas, foi iniciada e está em processo. Até o momento, o fato das quadras de intervenção serem demarcadas pelo Plano Diretor como ZEIS é o que permite alguma possibilidade de inclusão, ou pelo menos a paralisação do processo de remoções. É na ZEIS que se concentra a maior argumentação do Ministério Público sobre a necessidade de incluir a população residente nas intervenções e de formação do Conselho Gestor, com critérios mínimos de razoabilidade e legalidade.
Nem sempre, entretanto, são as condicionantes legais que desenham a cidade. Ou melhor, quase nunca. Muitos dos requisitos que cumprem o direcionamento das políticas públicas municipais estão associados a três significativos fatores: quantidade, oportunidade e tempo. Se poderão ser construídas muitas unidades habitacionais, se há um programa encaminhado que facilmente possibilitará tal êxito e o tempo de execução poderá ser alinhado ao tempo político, poderemos ter uma equação completa. Atende-se a interesses das ambições eleitorais, pactua-se acordos políticos importantes, beneficia-se com alta lucratividade os interesses e atores privados e transforma-se lugares degradados em áreas enobrecidas e higienizadas, transformando a cidade “feia” na cidade ‘bonita’. E os moradores locais? Serão realoados em áreas distantes ou voltarão a ocupar novas áreas precárias do centro a serem demolidas em um futuro próximo. Uma bola de neve que é jogada para longe ou para os cantos, mas que parece invisível, mesmo crescendo a cada dia.
Estamos, contudo, falando de uma área habitacional e socialmente precária, e ao mesmo tempo abastecida de transporte público, equipamentos culturais, oferta de serviços, comércio e emprego, formal e informal. Uma área com forte atuação de movimentos sociais organizados e de ações de cunho popular e cultural das mais diversas. Há muito olhares sobre este território ansiosos para a construção de um projeto sócio-urbanístico coletivo a ser elaborado por muitas mãos e um conjunto de ZEIS dando legitimidade para que Planos de Urbanização proliferem, mesmo que por iniciativa popular. Por que não são viabilizados? Pelas amarras do poder do capital e da visão tecnocrata e empresarialista que direciona a política pública? Há de se enfrentar essas barreiras, se não na elaboração de um projeto conjunto entre sociedade e poder público, que seja com um projeto de resistência.
*Simone Gatti é arquiteta e urbanista e doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Atualmente é professora de planejamento urbano e pós-doutoranda na FAU USP, onde pesquisa as Zonas Especiais de Interesse Social junto aos inquéritos ajuizados pelo Ministério Público Estadual, com apoio da Fapesp. Sua tese de doutorado, intitulada “Entre a permanência e o deslocamento: ZEIS 3 como instrumento para a manutenção da população de baixa renda em áreas centrais”, elaborada sob orientação do professor Nabil Bonduki, analisou a ZEIS do projeto Nova Luz e as possibilidades de efetivação do instrumento urbanístico. Trabalhou na coordenação de diversos planos e projetos urbanos, foi consultora do Instituto Pólis, conselheira no Conselho Gestor da ZEIS 3 inserida no perímetro do projeto Nova Luz e foi co-fundadora da AMOALUZ, a associação de moradores criada no bairro de Santa Efigência em resistência ao Projeto Nova Luz. É autora do livro Espaços públicos: diagnóstico e metodologia de projeto e ministra curso homônimo de capacitação para os municípios brasileiros, sob iniciativa do programa Soluções para Cidades da ABCP. Publicou artigos e capítulos de livros sobre habitação e projetos urbanos no Brasil e no exterior e atuou como docente no Centro Universitário Senac, na UNIABC e na FAU USP. Atua como pesquisadora do NAPPLAC (Núcleo de Apoio à Pesquisa, Produção e Linguagem do Ambiente Construído) e representa o IABsp na Comissão Executiva da Operação Urbana Centro da Prefeitura Municipal de São Paulo.