O impacto do golpe de 2016 e o futuro da democracia brasileira
Universidade Federal do Rio de Janeiro promove o evento “Cinco anos depois: debates sobre o futuro da democracia brasileira” com reflexões sobre novos personagens em cena na política brasileira
Cinco anos depois, ainda estamos diante do desafio de melhor compreender o processo que culminou com a destituição ilegítima da presidenta Dilma Rousseff e abriu uma caixa de pandora na vida política nacional. Se inúmeros fatores apontam para o evidente caráter arbitrário do movimento, o que justifica chamá-lo de golpe (termo adotado por alguns dos mais proeminentes cientistas políticos do país), há ainda importantes elementos a serem esclarecidos sobre seus antecedentes, algumas feições do processo e, sobretudo, suas consequências. Trata-se de um evento político crucial, em sua complexa teia de efeitos não-intencionais (e mesmo não-antecipáveis), merecedor ainda hoje de atenção redobrada e boa dose de minúcia analítica dos que se põem a interpretá-lo.
É inegável que existem diversos elementos de continuidade entre aquele processo e a presente dinâmica de crise da democracia protagonizada pelo bolsonarismo. O voto sim ao impeachment dado no dia 17 de abril pelo então deputado federal e agora presidente Jair Bolsonaro, em que faz uma ode à tortura e à ditadura, ilustra tragicamente a linha que unifica a mobilização pela retirada da presidenta Dilma e o nosso presente dramático.
Ao mesmo tempo, é igualmente nítido que existem diferenças substantivas entre a coalizão social e política que comandou o golpe de 2016 e o bloco de poder que dirige o Estado brasileiro atualmente. Talvez o evento que melhor expresse tal descontinuidade seja a recuperação dos direitos políticos do ex-presidente Lula em março de 2021 e suas implicações para o futuro da nossa democracia. Entre continuidades e rupturas, desdemocratização galopante e reviravoltas inauditas, o olhar retrospectivo busca reconstruir a história recentíssima de uma tragédia que permanece em aberto.
Tendo em vista a intrincada dialética em que se combinam (a) as agendas regressivas impulsionadas pelo impeachment, que viriam a assumir novos contornos com o governo Bolsonaro, (b) a heterogeneidade dos atores que comandaram aquele processo e dos sujeitos do “bolsonarismo”, e (c) os métodos arbitrários que marcaram aquele ataque à Constituição de 1988 e a posterior escalada autoritária que vivenciamos, o Núcleo de Estudos Sobre a Democracia Brasileira (Nudeb) do IFCS-UFRJ propõe um ciclo de debates para refletir sobre os sentidos do golpe de 2016.
A caracterização do golpe de 2016
A especificidade de 2016 foi objeto de amplo debate sobre os melhores adjetivos para qualificar o termo golpe, que já foi chamado de parlamentar, jurídico-parlamentar, midiático-jurídico-parlamentar, midiático-empresarial-jurídico-parlamentar, golpe neoliberal e mais uma infindável série de combinações que buscam classificar o evento de acordo com os atores nele envolvidos. Um ponto é comum às diferentes análises: estávamos diante de um evento distinto dos golpes de estado latino-americanos dos anos 1960 e 1970. Os tanques teriam sido substituídos pelos tribunais e/ou parlamentos, em seu objetivo de tutelar e substituir a decisão popular anterior das urnas.
Para além da qualificação do evento, pensamos que é importante interpretá-lo como um momento central da naturalização das rupturas democráticas no Brasil. O golpe de 2016 não é marcado por um momento, por mais que dias como o 17 de abril sejam icônicos, mas como o ápice de um longo processo de ruptura com a ordem democrática, sobretudo por meio da construção de um imaginário e de ações francamente hostis à Constituição de 1988 e que sequer se encerram nas fronteiras nacionais, possuindo uma dimensão internacional decisiva para seu sucesso.
Neste sentido, para compreender 2016 é necessário retomar à expansão de discursos neoliberais, compreender as reações mais ou menos violentas à presença de novos atores no centro do debate político e melhor interpretar os sentidos dos governos petistas.
O golpe, por outro lado, ainda é um evento aberto, em amplo processo de disputa e ressignificações. Se toda história é em parte contemporânea, pois reinterpretada a partir das diversas conjunturas, o caráter extremamente recente de alguns eventos e as profundas relações entre 2016 e 2018, entre o golpe e a eleição de Bolsonaro, fazem com que ainda estejamos em meio a um processo cujos desdobramentos são, em muitos sentidos, imprevisíveis.

Novas personagens em cena?
O golpe de 2016 contou com um processo de apoio social, a partir de três eixos (combate à esquerda, anti-corrupção e pauta econômica) que foi fundamental para dar sustentação à articulação institucional operada por figuras como Michel Temer, Eduardo Cunha e Aécio Neves. A direita ocupou as ruas massivamente, algo que não ocorria desde os anos 1960, com as mobilizações do movimento Tradição, Família e Propriedade, favorável ao golpe militar naquela época contra os comunistas.
Tal pauta, aliás, voltou a aparecer no espaço público brasileiro nas manifestações a favor do impeachment. Faixas de “intervenção militar” contra “o perigo comunista” estavam nas ruas em meio aos atos e nas estradas durante as paralisações dos caminhoneiros. Ao lado, com mais importância – uma vez que contava com apoio da mídia – estava a pauta do “combate à corrupção”, cujo sucesso foi condicionado à saída de Dilma do poder, uma presidenta honesta contra quem não havia uma só denúncia.
Não por acaso, o golpe se deu pela pauta econômica, conforme exploraremos na próxima seção. Aqui, cumpre registrar que emergiu nas ruas uma nova direita que parecia disposta a impulsionar um movimento liberal radical no Brasil, com forte crítica ao modo como Estado e economia se relacionam em nosso país.
Das três pautas, a única que conservou alguma coerência foi a da intervenção militar contra o perigo comunista, impulsionada atualmente pelo bolsonarismo. O movimento de combate à corrupção foi desmoralizado com a ida do ex-juiz Sergio Moro para o ministério de Bolsonaro e a pauta liberal radical jamais foi encampada pelo presidente.
É fundamental analisar, então, porque a pauta mais autoritária foi a que prevaleceu. Em parte, isso se explica pelos vínculos históricos de Jair Bolsonaro com o regime militar de 1964, o qual vamos desenvolver na seção sobre violência política no Brasil. Mas há um elemento novo, de importância decisiva para o futuro da nossa democracia: trata-se de uma reação à emergência de novas personagens que entram em cena na nossa sociedade impulsionando as pautas do antirracismo, do combate ao patriarcado, dos direitos LGBTs, da constituição de um novo tipo de cidadania ambiental, entre outros.
Se na década de 1960 o “perigo comunista” era identificado com a URSS externamente e com os sindicatos, internamente, agora ele expressa uma sociedade civil pujante, diversa, que organiza novos ativismos em várias escalas (local, municipal, nacional e global) e pretende avançar em uma nova agenda de direitos.
O golpe de 2016, portanto, além de abrir caminho para a destruição da Constituição de 1988 naquilo que ela já avançou nos direitos sociais e políticos, resultou também da reação a um novo tipo de cidadania que está enraizado em parcelas importantes da sociedade brasileira.
O lugar do neoliberalismo no debate público
A economia ocupou um lugar privilegiado nas justificativas de 2016. Não apenas as duas justificativas formais mais comuns, as “pedaladas fiscais” e os créditos não aprovados, estão diretamente vinculadas à gestão da política econômica, como elementos do campo estão presentes na maior parte dos discursos sobre a legitimidade do golpe. Em meio às narrativas sobre o impeachment pelo “conjunto da obra”, ou pela suposta incompetência da presidenta, estão pressupostos que identificam o Estado à ineficiência e à corrupção, em discurso que teve enorme espaço e apoio editorial da grande mídia.
O conceito de neoliberalismo, frequentemente identificado para reunir tais perspectivas, identifica um amplo campo, mas ainda é necessário refletir sobre clivagens internas e sobre o longo processo de construção desse discurso e da sua ampla influência no Brasil. Do mesmo modo, é importante refletirmos sobre as continuidades e descontinuidades dessas narrativas durante os governos petistas e após 2018, quando da eleição de Jair Bolsonaro.
As violências e a política no Brasil
É amplamente conhecido que a sociedade brasileira se estrutura historicamente através de relações de caráter aberta ou veladamente violento. Todos os mal entendidos sobre sua suposta natureza pacífica e as construções ideológicas erigidas a partir disso representam a essa altura, nas primeiras décadas do século XXI, elementos constitutivos desta tessitura de um cotidiano social atravessado estruturalmente por violências de toda ordem. Nesse sentido, apontar para o recrudescimento das violências no contexto aberto pelo golpe de 2016 exige o reconhecimento das importantes nuances conjunturais que, por sua vez, re-incidem sobre violências estruturais, potencializando efeitos perversos.
Nesses últimos cinco anos, a misoginia, a violência de gênero e o racismo foram alavancados de alto a baixo na sociedade brasileira, e os exemplos mais ilustrativos dessa tendência (assim como as evidências estatísticas de seu espraiamento) são abundantes. Apenas para ficarmos no plano mais visível da política institucional: a misoginia escancarada ao longo do processo de destituição de Dilma Rousseff, a execução de Marielle Franco (vereadora negra, favelada, lésbica) e a célebre fotografia do primeiro escalão do Governo Temer (composto exclusivamente por homens brancos, ricos e de idade avançada) são três momentos de um recrudescimento que, como se percebe, antecede a eleição de um ex-militar misógino, homofóbico e racista para a Presidência da República. Desde então, a situação apenas se agrava.
Outro traço, correlato, da relação estrutural entre violência e política se revela no agravamento do processo de militarização das instituições no país. A proliferação de militares em postos civis, que ocorre desde Temer e alcança níveis abertamente incompatíveis com a institucionalidade democrática no mandato de Bolsonaro, põe um desafio adicional a uma democracia combalida em tantas frentes simultâneas. Lembre-se que a intervenção federal militar na segurança pública do estado do Rio de Janeiro também antecede o atual governo e pode ser compreendida como um elo evidente (dentre tantos por investigar) que vincula a derrubada da ex-guerrilheira e a ascensão do ex-militar. Os velhos personagens do patriarcado homofóbico e racista, das patriotadas retrógradas e dos militares amantes da Guerra Fria, com suas surradas ambições de tutela sobre o povo (e sobre a democracia), ainda perambulam entre nós – e resta saber como a sociedade brasileira será capaz de reduzi-los a uma desejada insignificância.
O futuro da democracia brasileira
O impacto dos últimos cinco anos na democracia brasileira foi muito severo – mas não a ponto de inviabilizá-la por completo. Sobrevive a democracia, o que está longe de indicar que “as instituições estão funcionando”. Elas já não funcionam, no mínimo, desde 2016, com a rotinização do desapreço a preceitos constitucionais básicos, praticado em grande monta por atores dos três poderes da república. Sobrevive a democracia apesar da proverbial disfunção recente das instituições.
Tematizar, portanto, o futuro da democracia brasileira implica encarar o desafio analítico de identificar aquilo que permanece íntegro em meio a tantos escombros. Ou, em outros termos, implica perceber onde pulsa o ímpeto democratizante que animou a Nova República desde sua origem. O fio vermelho da democratização não se esgotou, como querem alguns. E não é uma precária, transitória e relativamente frágil coalizão fascistizante que lhe jogará a pá de cal. Em meio ao descalabro do genocídio orquestrado por governantes negacionistas, a luta por democracia atravessa a sociedade brasileira e também suas instituições políticas.
Para além das ilusões sobre a funcionalidade das instituições ou a “consolidação” da democracia, pensar o futuro requer que se trafegue em um espaço crítico que evita tanto as hipérboles catastrofistas do “nunca houve democracia no Brasil” quanto as redundâncias apologéticas do “diagnóstico funcionalista”. Para tanto, o evento “Cinco anos depois: debates sobre o futuro da democracia brasileira” se dividirá em quatro encontros para promover debates e reflexões sobre as/os novas/os personagens em cena na política brasileira (dia 23 de agosto); o lugar do neoliberalismo no nosso debate público (dia 25 de agosto); a relação entre as várias formas de violência e a política no Brasil (30 de agosto); e, finalmente, o futuro da democracia brasileira (01 de setembro). O evento será online, transmitido pelo canal do Nudeb no Youtube.
Jorge Chaloub, Josué Medeiros e Pedro Luiz Lima são professores de Ciência Política da UFRJ.