O golpe de 2016 e o mar agitado da História
As tensões de classe latentes vieram à luz em junho de 2013. O golpe de 2016 foi tramado nesse contexto em que os dividendos econômicos já não davam para todos os segmentos de classe. O “nacionalismo burguês” cedeu espaço à “ditadura preventiva de classe”. Porém, a nova autocracia burguesa não consegue se legitimar facilmente pela força, tampouco está aberta a qualquer negociação com a “classe dos outros”
O golpe de 2016 atingiu em cheio o “pensamento de esquerda” no Brasil. Tirando as cassandras de plantão – para quem os governos do PT tão somente “aprofundaram o neoliberalismo”, executando políticas compensatórias que em nada afetaram o status quo –, uma parcela expressiva da esquerda aderiu, em maior ou menor medida, à euforia da era Lula. Era o tempo do pré-sal, do “pleno emprego”, do “país de classe média” e da “nova potência emergente do Sul”. Dilma assumiu em 2011 no auge dessa onda, que então se quebrava, para finalmente refluir em 2016. Como explicar que tanto tenha mudado nesse curto período?
Vale lembrar que o golpe foi desatado de dentro do extenso arco de alianças que compunha os governos da era Lula, para empreender a agenda oposta àquela que retoricamente empolgou o país por treze anos.
Sua execução contou com a participação de segmentos da cúpula do Judiciário, da grande mídia, do Congresso dominado pelas forças conservadoras e das várias frações de classe burguesas. Atuaram em sintonia, apesar de por vezes revelarem suas diferenças quanto aos meios. Mas havia convergência de fins. O que os unificava era o antilulismo. Nesse meio-tempo, descobrimos o quão frágil era o contrato social estruturado em 1988 e que as instituições democráticas não estavam consolidadas.
Um longo ciclo sociopolítico chegava ao fim. Muitos dos analistas do nosso campo adotaram uma perspectiva classista rasa. Eram “os quinhentos anos de escravidão” ou “as elites que nunca aceitaram a democracia”, na contramão das versões antecessoras e ufanistas que alardeavam a social-democracia que teria dado certo no Sul do planeta, enquanto as do Norte se esfacelavam.
Agora que o leite já foi derramado, cabe a nós da esquerda resgatar a capacidade de reflexão crítica e demonstrar ousadia nas proposições práticas. Qualquer tentativa de mobilização desse amplo e fragmentado campo de forças requer um esforço simultâneo de compreensão das estruturas de funcionamento do capitalismo no Brasil.
A partir dos anos 1980, a esquerda abandonou um estilo de reflexão sobre o país. Acreditou que bastava tomar o Estado, democraticamente, para então promover a distribuição de renda e a ampliação da cidadania. O socialismo esteve sempre no horizonte, mais como válvula de escape a impedir qualquer discussão séria sobre o capitalismo “subdesenvolvido” e “dependente” realmente existente no país. Levou-se a efeito uma práxis de bitola estreita e abdicou-se da teoria no sentido forte do termo. As reformas de estrutura saíram da agenda. Viramos legalistas, defensores da Constituição de 1988, que sem dúvida significou um enorme avanço civilizatório. Os “reformistas” agora eram eles, os novos neoliberais, com suas reformas de base pelo avesso.
Luiz Werneck Vianna já havia elaborado, nos anos 1990, sua crítica à esquerda petista. A agenda da cidadania precisava se encontrar com a política, no sentido de promover, segundo sua leitura gramsciana, uma “estatalização por baixo da vida social”. Tratava-se de “conceber”, por meio da mobilização social e da ampliação dos direitos e da cidadania, “um novo Estado para a nação”.1
Em meu entender, essa opção prática exigia um esforço teórico de interpretação da variedade de capitalismo em vigor no território nacional e de suas vinculações com a dinâmica internacional, ambas alteradas no período pós-anos 1980. A assimilação das formulações de Celso Furtado e Florestan Fernandes2 – que, apesar das divergências teóricas, comungavam de perspectivas metodológicas convergentes nos anos 1970 – oferecia um território analítico a ser desbravado.
De um lado, o teórico do subdesenvolvimento da periferia, atuando nas universidades de prestígio internacional e radicalizando sua interpretação estruturalista; de outro, o intelectual militante, reconstruindo sua perspectiva teórica, agora numa chave marxista, de modo a iluminar as possibilidades de superação dialética do status quo, captado pelo conceito de “autocracia burguesa”.
Contudo, se a produção acadêmica dos anos 1980/1990 avançou muito em suas várias avenidas disciplinares, ela perdeu sua veia crítica fundada na capacidade de totalização dos movimentos do real. O Brasil virou um case, para consumo das redes de pesquisa transnacionais, uma operação que estilhaçou as conexões entre as estruturas econômicas, sociais e políticas, que passaram a ter vida autônoma.
A própria inserção periférica deixou de ser problematizada quando a malfadada “globalização” passou a obscurecer a estrutura hierárquica da economia-mundo capitalista em processo de reconfiguração. Mesmo o “neoliberalismo” e a “financeirização” – tão utilizados pelo “pensamento de esquerda” – sugeriam que estávamos no mesmo diapasão dos países do centro. A nova condição periférica e as reconfigurações do subdesenvolvimento estavam fora do cardápio da esquerda acadêmica, em grande medida recolonizada em termos metodológicos.
Faço uso das obras de Furtado3 e Florestan4 para ilustrar sua ousadia ao questionarem a falsa universalidade das teorias produzidas no centro, ressalvando nossa especificidade, mas sem desprezar as categorias do pensamento social e econômico. Isso somente seria possível se revelássemos o todo – ou melhor, as estruturas geopolíticas e sociais do capitalismo em sua manifestação internacional – do qual fazíamos parte enquanto periferia, tal como demonstrado por esses intelectuais.
Em seu livro de 1974, Florestan5 refere-se a vários padrões de desenvolvimento capitalista, com manifestação variável no tempo e no espaço. O período pós-anos 1950 teria marcado “a irrupção do capitalismo monopolista” no Brasil, que, em vez de eliminar, reforçara a “condição estrutural periférica e heteronômica”. O golpe anterior, o de 1964, fizera o Estado se circunscrever, em grande medida, às funções de intervenção econômica.
Não se tratava, porém, de “um capitalismo de Estado”, já que este aparecia agora como espaço de socialização das várias frações de classe burguesas (inclusive as classes médias), que se uniram contra a “classe dos outros” – aqueles que viviam do trabalho ou ansiavam por um projeto de desenvolvimento alternativo. O revigoramento da acumulação capitalista acarretaria, por sua vez, “novas tensões ao poder burguês”, pois o povo também mudara sua configuração estrutural e histórica. O sindicalismo e os novos movimentos sociais se apresentavam como a única via possível para que pautas nacionais e democráticas fossem incorporadas ao desenvolvimento capitalista.
Portanto, para Florestan, novas contradições se colocavam, trazendo novas possibilidades estruturais. Uma delas seria o “nacionalismo burguês”, capaz de efetivar uma “genuína democracia burguesa” e quiçá uma perspectiva contra-hegemônica vinda de baixo, fazendo ruir, no limite, a autocracia burguesa, cuja existência pode inclusive prescindir de um regime político plenamente autoritário.
Furtado, também em 1974, tinha plena consciência da redefinição das relações centro-periferia. O capitalismo, em escala internacional ampliada, se expandia por meio das empresas transnacionais (criando um mercado intrafirmas) e dos fluxos financeiros de capitais. A industrialização periférica, que ele defendera como um processo mais amplo de autotransformação nacional, não levara à gestação de sistemas econômicos e sociais integrados, mas à desarticulação produtiva. O subdesenvolvimento assumia novos significados com a ampliação da heterogeneidade estrutural.6
Nesse novo contexto, o dinamismo da renda não se fazia acompanhar de um avanço da acumulação reprodutiva, gerando uma “dessimetria entre o setor produtivo e a sociedade”.7 O perfil da demanda se bifurcava, propiciando nichos de mercado distintos, mas não estanques. O padrão de consumo das minorias modernizadas se difundia para 20% da população, enquanto os outros 80% se situavam na base da pirâmide do mercado de trabalho organizado, ao qual se somavam as várias formas de trabalho não capitalista. A estrutura social não era mais trava à expansão econômica, antes resultava do padrão de acumulação concentrador.8 Nos anos 1970, o Estado podia no máximo “ampliar as avenidas de uma industrialização que tende a perder fôlego”.
No entender do economista, qualquer reflexão sobre o desenvolvimento deveria procurar “uma progressiva aproximação entre teoria da acumulação, teoria da estratificação social e teoria do poder”,9 tal como na perspectiva metodológica do sociólogo Florestan.
É possível ressuscitar esse estilo de reflexão crítica? Pode ele nos fornecer elementos para elucidar o ciclo sociopolítico de 1988-2016 e as contradições subjacentes que levaram a seu fim?
Na literatura econômica, a década de 1980 é conhecida como “perdida” em virtude da dívida externa e do descontrole inflacionário. A mobilização social vinda de baixo – que pautou a ascensão do PT, as Diretas Já e a Constituição de 1988 – revela um quadro bem diferente. A Constituição é resultado de um não consenso, de uma justaposição de agendas: a conservadora do Centrão, exigindo legislação complementar para uma série de avanços sociais travados; enquanto a esquerda conseguia estampar sob forma de lei os rudimentos de um Estado de bem-estar, a ser progressivamente introduzido.
Nos anos 1990, especialmente sob a égide do governo FHC, a autocracia burguesa mudou de configuração. Na aparência, tratava-se de uma “democracia burguesa”. A agenda liberal da política econômica se generalizou para o corpo da sociedade, conclamando os trabalhadores ao empreendedorismo e à qualificação. O custo do trabalho era o grande culpado, enquanto a privatização gerava uma transferência de ativos para a burguesia nacional associada a grupos estrangeiros e vivendo dos rendimentos associados à expansão da dívida interna. O mercado interno fora asfixiado, enquanto a economia-mundo capitalista se reorganizava, valorizando seus capitais neste posto avançado da periferia que sofria um novo e diferente processo de desarticulação produtiva.
Nos anos 2000, a recuperação do mercado interno se casou com a fase expansiva de um ciclo econômico de curta duração. As desvalorizações do real (1999 e 2002), a ascensão chinesa e a nova configuração da economia-mundo capitalista, junto com a elevação do salário mínimo e a lenta recuperação do investimento, auxiliada pelo papel do Estado e dos bancos públicos, permitiram expandir a capacidade produtiva e elevar o nível de emprego formal. A equação do tripé econômico, na maré alta, permitira a façanha de reduzir o endividamento público e elevar os gastos sociais, acelerando a implantação da agenda da Constituição de 1988.
Apesar da desaceleração econômica do governo Dilma, os níveis de desemprego aí encontraram seus níveis mais baixos, assim como a pobreza e a desigualdade de renda (se medida apenas pela renda do trabalho).
Para dar sustentação a esse processo a longo prazo – permitindo a continuidade da queda da desigualdade, o avanço nas políticas sociais e de infraestrutura e um perfil do emprego menos ancorado nos baixos salários –, o próprio padrão de inserção externa deveria assumir uma feição menos vulnerável e passiva. Isso envolvia, além de alteração na política cambial, uma política casada de investimentos (públicos e privados) capazes de antecipar gargalos de infraestrutura e internalizar novos elos das cadeias produtivas, especialmente os mais intensivos em capital e tecnologia.
Não é possível jogar a culpa pelo fim do ciclo expansivo interno à “economia internacional”, sem uma compreensão de sua reconfiguração na sequência da crise financeira. Depois de 2008, fomos pegos no contrapé, pois quem estava com capacidade ociosa eram os Estados Unidos e a União Europeia, além do novo centro chinês, que corria em busca de novos mercados. Os incentivos concedidos pelo governo Dilma foram drenados para esses centros, que passaram a estabelecer entre si novas interações, afetando por tabela os países da periferia e da semiperiferia.
No plano interno, reproduzia-se sob nova feição a dessimetria entre o setor produtivo e a sociedade. O acesso aos bens de consumo, especialmente duráveis, se ampliava muito além da minoria modernizada, pelos baixos preços dos produtos chineses e pela externalização crescente das cadeias produtivas. A indústria e os serviços modernos alcançavam agora segmentos mais amplos da sociedade via emprego, aumento de renda e incorporação ao crédito; mas se mostravam incapazes de dar um salto na acumulação reprodutiva, essencialmente pela inserção subordinada dos setores dinâmicos no mercado interno, para o que muito contribuiu o populismo cambial da era Lula.
Por baixo da superfície, uma nova estrutura social emergia. Enquanto as classes média e alta iam ao paraíso, na ausência de reforma tributária e num contexto de juros reais elevados, a nova “ralé” – ou a “classe dependente urbana” de Florestan – obtinha ganhos expressivos de renda, alçando-se à condição de microempreendedores instáveis ou de assalariados com carteira beneficiados pela valorização do salário mínimo. Mas dispunham de acesso limitado às políticas sociais, enquanto os espaços urbanos e rurais se mostravam ainda mais segregados. Por sua vez, a classe trabalhadora com um mínimo de qualificação conseguia ganhos acima da inflação num contexto de estagnação dos ganhos de produtividade e de rentismo exacerbado, travando a acumulação reprodutiva.
Era uma espécie de nirvana, mas as tensões de classe latentes vieram à luz do dia em junho de 2013. O golpe de 2016 foi tramado nesse contexto em que os dividendos econômicos já não davam para todos os segmentos de classe. O “nacionalismo burguês” cedeu espaço à “ditadura preventiva de classe”. Porém, a nova autocracia burguesa não consegue se legitimar facilmente pela força, tampouco está aberta a qualquer negociação com a “classe dos outros”.
O retorno do estadista da conciliação, reconvertido em líder popular no intuito de amalgamar os interesses de classe ausentes da atual estrutura de poder, aumenta a dramaticidade do cenário. Trata-se de uma involução para a esquerda brasileira (especialmente a petista), que protagonizou a aspiração mais arrojada de mudança social, num contexto democrático, na virada do século XX. Não foi, contudo, capaz de estruturar uma perspectiva contra-hegemônica para alterar os fins do Estado e da política.
Do lado das classes dominantes, a democracia se transformou em estorvo, como se depreende das perspectivas de seus candidatos à eleição de 2018. O governo de cúpulas, que caracterizou toda a Nova República, vem passando, desde 2016, por um processo de oligarquização acelerada. Ancorado na aliança Mídia-Finança-Congresso-Judiciário, uma elite tacanha expulsa “a classe dos outros”, como se pode depreender dos ataques à legislação trabalhista, ao ensino público e às políticas sociais, consumados com a lei do teto dos gastos.
A autocracia burguesa tampouco consegue turbinar a acumulação capitalista. Desestruturados os encadeamentos setoriais e regionais, mas também o poder de ação do Estado, ela aposta nos esparsos núcleos dinâmicos da economia brasileira integrados de maneira subordinada à economia-mundo capitalista.
Na contramão do golpe, para além da possibilidade cada vez mais remota da eleição de Lula – o único com viabilidade eleitoral e, em tese, em condições de recuperar um mínimo de organicidade ao contrato social sedimentado na Constituição de 1988 –, resta à esquerda um longo período de ausência do poder – ou de disputa por poder em cada minúsculo espaço do tecido social conflagrado –, acumulando forças junto aos movimentos de base e minando a liderança de seus caciques partidários.
Para tanto, precisamos recuperar e atualizar perspectivas teóricas e metodológicas, forjando uma nova utopia e uma nova práxis para a esquerda brasileira. A luta continua, talvez apenas tenha começado. Uma nova onda se levanta do mar agitado da História.
*Alexandre de Freitas Barbosa é professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).