O imperador quer surfar no atoleiro
Como Bush descartou as propostas para uma saída diplomática no Oriente Médio e investiu num plano semi-messiânico, que ameaça incendiar a região e pode humilhar os EUAIbrahim Warde
Um relatório terá engolido o outro? Em 10 de janeiro de 2007, o presidente dos Estados Unidos anunciou uma política de escalada militar, inspirada por uma análise do American Enterprise Institute, um think tank neoconservador. Ao invés de concordar com uma retirada, recomendada pelo Relatório Baker, de dezembro do ano passado, mais 21,5 mil soldados serão enviados como reforço ao Iraque. Mas o Congresso reage. O presidente da maioria democrata no Senado, Harry Reid, avaliou em 18 de fevereiro, em entrevista à CNN, que esta aventura militar constitui um erro ainda mais grave que o do Vietnã, ambos marcadas por um procedimento do tipo “nova derrota, nova escalada”.
Apenas alguns meses antes, anunciava-se o retorno dos “realistas” ao poder. No momento em que o Iraque mergulhava na guerra civil, os neoconservadores mais visíveis — Paul Wolfowitz, Richard Perle, Douglas Feith, Lewis Libby, John Bolton — tinham sumido da cena [1]. Tanto o unilateralismo quanto o militarismo pareciam fora de moda [2].
Fracasso tremendo para a Casa Branca, as eleições de 7 de novembro resultaram na tomada das duas casas do Congresso pela oposição democrata. Bush reconheceu ter sofrido uma “lavada” e prometeu adotar uma “nova visão” no Iraque. Donald Rumsfeld foi substituído, no posto de secretário da Defesa, por Robert Gates. Antigo colaborador do ex-presidente George H. Bush, Gates foi também membro do Grupo de Estudos sobre o Iraque, uma comissão de dez especialistas (cinco democratas e cinco republicanos), dirigida pelo antigo secretário de Estado James Baker e por Lee Hamilton, antigo presidente democrata da comissão de Assuntos Externos da Câmara dos Representantes. Seu relatório prometia oferecer uma saída honrosa ao presidente dos EUA.
O descarte não-declarado da saída diplomática
Intitulado “O caminho a seguir: uma nova visão”, o documento continha duas partes. A primeira destinava-se a abrir caminho para uma transição “responsável”, indicando que as tropas de combate deveriam estar fora do Iraque antes do primeiro trimestre de 2008. Também se pronunciava contra a manutenção de bases militares permanentes no país. A segunda parte tratava de uma “nova ofensiva diplomática global”. Partindo do princípio de que não poderia haver solução militar para o conflito, preconizava uma política oposta à visão neoconservadora. Não se falava mais de “propagar a democracia no Oriente Médio”. Os EUA eram chamados a iniciar diálogos com a Síria e o Irã mas, além disso, a “se envolver de maneira firme” no esforço por um acordo entre os países árabes e Israel, fundado no princípio de “paz em troca de territórios”.
O relatório foi bem acolhido, tanto pela nova maioria democrata quanto por uma parcela dos republicanos. De público, o presidente Bush disse ver nele aspectos interessantes, mas deixou claro que esperava ouvir outras opiniões, antes de anunciar sua nova estratégia. Em privado, sua opinião foi menos amena. Teria qualificado o texto como “merda” [3]. Quem quiser entender as bases da atual “fuga para frente” militar da Casa Branca deve recorrer às fontes políticas, religiosas e edipianas [4]] da presidência de Bush.
Quando lhe perguntaram, há alguns anos, se havia consultado seu pai, antes de lançar a guerra contra o Iraque, o atual presidente teria respondido: “Não é a meu pai que me dirijo para encontrar forças. É ao Altíssimo que apelo em tais momentos [5]”. Como em toda dinastia, as relações entre pai e filho não são desprovidas de ambigüidades. Na condução de sua política externa, o herdeiro quis marcar uma ruptura radical.
O Bush pai era um apaixonado por política externa, Desprezando a idéia de “visão”, ele se pretendia acima de tudo realista e pragmático. Seu principal feito militar foi desalojar as tropas do Iraque do Kuait, em 1991. James Baker, seu secretário de Estado, conseguiu então reunir uma coalizão de 34 países, muitos dos quais integrantes do mundo árabe. Obteve do Conselho de Segurança da ONU o devido mandato e garantiu que a guerra fosse financiada pelos aliados dos EUA [6].
A religião preside a política, e o imperador pensa ser um semi-deus
Ao contrário de seu pai, Bush não tinha nenhuma experiência em política externa ao chegar à presidência. Herdou, contudo, uma impressionante equipe de conselheiros, entre os quais a acadêmica Condollezza Rice, que lhe serviu como preceptora [7]. Teve também outras influências… Em 1998, quando era governador do Texas, o futuro presidente, que até então havia viajado muito pouco, passou por Israel. Ariel Sharon, então ministro das Relações Exteriores, deu-lhe as primeiras lições de estratégia militar, explicando-lhe por que o princípio “paz por meio da força” era melhor que “paz em troca de territórios”. Além disso, o embaixador Peter Galbraith revela que em janeiro de 2003, dois meses antes da invasão do Iraque, o presidente dos EUA ainda ignorava tudo sobre as divisões entre sunitas e xiitas [8].
Menos de nove meses após sua ascensão ao poder, a promessa de uma política externa “modesta”, formulada durante a campanha presidencial, estava esquecida. Em 13 de setembro de 2001, durante um serviço religioso celebrado na catedral nacional de Washington, em homenagem às vítimas dos atentados ocorridos três dias antes, o presidente Bush anunciava sua intenção de “livrar o mundo do Mal”. Segundo diversas testemunhas, ele parecia ter encontrado seu caminho e via em sua presença na Casa Branca um sinal da Providência.
A introdução da dimensão religiosa, moral e metafísica no debate justificou todos os amálgamas. Estávamos longe não apenas do realismo clássico mas também do próprio princípio de realidade observável. Como relatou um dos principais conselheiros de Bush (provavelmente seu estrategista Karl Rove), ao jornalista Ron Suskind, “as regras do jogo mudaram. Somos hoje um império e quando agimos criamos nossa própria realidade [9]”.
Analisados como um fracasso das políticas anteriores, julgadas exageradamente conciliadoras, os atentados do 11 de setembro desembocaram em uma visão unilateral, fundada no princípio da “prevenção”. A invasão do Iraque foi vista como necessária para reformar em profundidade o mundo árabe-muçulmano e redesenhar o mapa do Oriente Médio. Pensava-se que, como não cansou de repetir Bernard Lewis, um especialista em Idade Média que se tornou a referência suprema nos círculos do poder, “os árabes só compreendem a linguagem da força”.
Um homem sempre dominado pelos neoconservadores
A partir de tais postulados, os thint tanks e os comentaristas mais influentes dispararam uma argumentação baseada numa cadeia de raciocínio duvidosa, mas que tinha desde o início a adesão de um público ávido por soluções-milagres. Os norte-americanos seriam acolhidos como libertadores; surgiria no Iraque uma democracia liberal. O país assinaria um acordo de paz com Israel e serviria de laboratório e vitrine para o mundo muçulmano. Num efeito-dominó, as “mudanças de regime” se propagariam pela região. Eleições livres terminariam, em toda parte, com a vitória dos moderados. O conflito do Oriente Médio estaria resolvido [10]. Ao invés de abrir os olhos, o presidente dos Estados Unidos obstina-se hoje a acreditar neste milagre, aparentemente persuadido de que o cumprimento de seu sonho foi apenas adiado.
Os neoconservadores seduziram incessantemente o ocupante da Casa Branca. Fizeram dele um personagem churchiliano, investido de uma missão histórica ou divina [11]. A escalada que sugeriram terá certamente efeitos desastrosos, mas traduz a obstinação do presidente, que, diante das demandas pela retirada das tropas, asseugurou que manteria o rumo contra todos, “mesmo que tenha apenas o apoio de Laura e Barney” (sua mulher e seu cão) [12]. Claro, o tom é mais conciliador. Bush pede “dar uma chance” à nova estratégia conservadora e sublinha que o envio de mais solados deveria permitir a Bagdad recuperar sua segurança e obter o respeito necessário para fortalecer o processo de reconciliação nacional.
A escalada permitiu sobretudo ao presidente — que não cessou de repetir “quem decide sou eu” — retomasse a iniciativa. Diante de um Congresso majoritariamente democrata, e confrontado com a hostilidade da opinião pública e o ceticismo dos militares, o presidente queixava-se de se sentir marginalizado. Ora, desde 11 de outubro de 2002, em virude de suas prerrogativas constitucionais de comandante-em-chefe do exército, ele tem as mãos livres. O Congresso (única instituição autorizada a declarar a guerra) acabava de autorizá-lo, após debates apenas formais, a utilizar a força “como julgar necessário para defender a segurança nacional, contra a ameaça contínua representada pelo Iraque”. O apoio foi maciço e sem ambigüidade: 296 membros da Câmara de Representantes contra 133; 77 a 23, no Senado.
As tentações de um ataque ao Irã e as reações do Congresso
Esta delegação de poder, que não é reversível, embaraça mais de um parlamentar. Uma maioria de democratas havia apoiado a guerra (incluindo presidenciáveis como John Kerry, John Edwards e Hillary Clinton). O clima mudou completamente e tal voto seria inconcebível para iniciar uma guerra contra o Irã. A escalada pode oferecer um pretexto dos sonhos para um confronto contra o regime de Teerã, iniciativa à qual se opõem, no momento, a população norte-americana, o Congresso e a maior parte dos chefes militares. Mas se for capaz de imputar mortes norte-americanas às ingerências iranianas (liberação de armas ou outros atos), o presidente sinalizará tanto ao Congresso quanto ao resto do mundo que uma nova autorização de guerra seria desnecessária. As represálias militares seriam classificadas como legítima defesa.
Face à escalada, o Congresso seria reduzido ou a votar moções de desconfiança simbólicas e sem efeito, ou a tomar medidas potencialmente muito impopulares, como cortar o fornecimento de víveres às tropas, com o risco de ser acusado de “abandonar nossos soldados e colocar suas vidas em perigo”.
Em 16 de fevereiro, depois de quatro dias de debates, a Câmara dos Representantes votou, por 246 contra 182, uma moção que indicava tanto sua oposição ao envio de reforços quanto seu apoio às forças armadas. Dezessete republicanos uniram-se à maioria democrata, enquanto apenas dois democratas se opuseram à resolução. No dia seguinte, no Senado, uma maioria de 56 membros (entre eles, 7 republicanos) contra 34 pronunciou-se contra a escalada. Mas devido às regras particulares dessa casa, que permitem a uma minoria paralisar os trabalhos parlamentares, teriam sido necessários 60 votos para que a resolução abrisse um debate.
A batalha entre o Executivo e o Legislativo está longe de terminar. Continua, nestes dias, o exame da linha de créditos orçamentários destinada a financiar a nova estratégia. Passando pente fino sobre as despesas e impondo restrições inéditas que relacionem a votação dos créditos com o estado de preparação das tropas (ao prescrever, por exemplo, que os soldados disponham de um ano de descanso entre cada deslocamento), o Congresso, que controla os cordões do Tesouro, poderia obrigar Bussh a conceber o impensável: um repatriamento progressivo das tropas. Antes que a “missão”, declarada “cumprida” há quatro anos e que terá sido a decisão principal de seu governo, termine por em um fracasso absoluto.
Tradução: Antonio Martins
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Ibrahim Warde é professor associado na Universidade Tufts (Medford, Massachusetts, EUA). Autor de Propagande impériale & guerre financière contre le terrorisme, Marselha-Paris, Agone – Le Monde Diplomatique, 2007.