O imperialismo da virtude - Le Monde Diplomatique

UM MUNDO NORTE-AMERICANO O

O imperialismo da virtude

por Yves Dezalay , Bryant Garth
1 de maio de 2000
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A estratégia de dominação econômica dos Estados Unidos é revestida de uma aparência virtuosa, sustentada por instituições filantópicas. A hegemonia imperialista inclui a formação das elites intelectuais do mundo subdesenvolvido em universidades norte-americanasYves Dezalay , Bryant Garth

O imperialismo simbólico americano deve uma parte de seu sucesso ao fato de se construir de maneira oposta ao modelo colonial europeu. Em razão de sua própria história, ele é um modelo político ambíguo no qual a competição não existe apenas no terreno do mercado e do lucro, mas também no da moral cívica. Uma filantropia de vocação hegemônica completa e reforça a dominação de Wall Street.

Esse imperialismo da virtude repousa essencialmente sobre a ação de um tipo de instituição particularmente norte-americana que são as grandes fundações filantrópicas, criadas pela primeira geração de desbravadores capitalistas: Rockefeller, Carnegie, Ford, hoje copiadas por seus sucessores Milken, Soros ou Gates. Após servir de capangas aos “barões ladrões” (robber barons), os lawyersde Wall Street os ajudaram a reinvestir uma parte de sua fortuna em fundações que se tornaram os pilares da estratégia reformista de um capitalismo esclarecido.

Uma esquizofrenia institucionalizada

Essa conversão para a virtude cívica servia a um duplo interesse. A faxina simbólica de fortunas tão espetaculares quanto duvidosas contribuía para consolidar o sucesso de especuladores que não se importavam com a legalidade. Ao mesmo tempo, esse investimento moral permitia aos mercenários do Direito restabelecer uma legitimidade profissional bastante mal-tratada por seus clientes inescrupulosos. Graças a uma espécie de esquizofrenia institucionalizada, esses praticantes de um capitalismo selvagem podiam passar-se por homens de Estado, reinventando para seu uso próprio o mito profissional do gentleman lawyer, segundo Tocqueville.

A mobilização contra Hitler e, em seguida, a estratégia da guerra fria permitiram a esse establishment cosmopolita de banqueiros e juristas de negócios ocupar posições de poder dentro do Estado. Assim Wall Street se tornou a antecâmara de Washington e vice-versa. Ao impor a construção de uma grande aliança internacional de elites profissionais como estratégia de luta contra o comunismo, o establishment da política internacional garantia para si, ao mesmo tempo, uma posição preeminente dentro do próprio espaço nacional, onde persistiam fortes tentações isolacionistas.

Dominação disfarçada de moral

No entanto, esse projeto hegemônico também deve seu sucesso aos adversários, que foram obrigados a lutar no mesmo terreno. Por não serem reconhecidos pelas instituições de elite da costa Leste, dominadas por democratas, os pioneiros — muitas vezes republicanos — da Escola de Chicago, migraram para Santiago do Chile, onde seus discípulos se colocaram a serviço de Pinochet. Por sua vez, para se opor aos pequenos déspotas do Departamento de Estado que sustentavam essas ditaduras em nome do anticomunismo, a franja “progressista” do que sobrava do establishment pós-derrota no Vietnã foi levada a mobilizar instituições nascidas da guerra fria cujo controle ela mantinha, como a fundação Ford ou o movimento dos direitos da pessoa. Ao exportar suas lutas domésticas para a cena internacional, esses adversários tornaram-se ao mesmo tempo os melhores agentes de um imperialismo ideológico que tem sua eficácia aumentada à medida que eles se apresentam como uma contestação do discurso dominante.

Assim, é na luta interna pelo poder- e no eco que ela pode produzir nos Estados dominados — que é preciso entender os paradoxos de uma hegemonia que se reveste de ciência ou moral. A América Latina fornece duas ilustrações disso ao mesmo tempo opostas e complementares: ela serviu de laboratório às políticas neoliberais e também de divulgação, pela mídia, dos direitos humanos. Esses dois projetos de vocação universalista combinam-se então para consolidar o consenso de Washington, acrescentando à ortodoxia econômica a fachada legal e moral indispensável à sua institucionalização. [1]

Uma estratégia internacional de conquista do poder

A tomada do poder pelos “Chicago boys”, evidente a partir dos anos 70 (Chile, Grã-Bretanha, Estados Unidos), apóia-se numa estratégia de intrusos, conduzida paralelamente nos Estados Unidos e nos países dominados. Os pioneiros de Chicago souberam tirar partido de suas desvantagens. Investiram na matemática pois era a única linguagem comum nesse sistema de hierarquia social de imigrantes baseado no mérito pessoal, à margem da cultura ilustrada. Transformaram a competição em dogma, pois a praticavam de maneira agressiva, para se tornarem conhecidos no campo da sabedoria. Esse sentimento de exclusão foi também a base de sua aliança com os arrivistas das finanças (Citybank) ou da política (os republicanos Barry Goldwater, Richard Nixon e Ronald Reagan).

Um roteiro semelhante ocorreu na América Latina a partir dos anos 60, com o apoio da Fundação Ford. Os missionários de Chicago recrutaram seus primeiros discípulos nas escolas de segunda linha, desprezadas pelos herdeiros dos juristas letrados que dominavam o poder do Estado. Para conquistar o povo, os recém-chegados colocaram-se a serviço de financistas de grandes presas (los piranhas) e de militares, até então à margem da política.

Essas semelhanças alimentaram efeitos de repercussão internacional. Todo um marketing de mídia abriu as portas para Ronald Reagan apresentando os primeiros sucessos econômicos dos “Pinochet boys” como prova da pertinência das teorias de Chicago. A crise da dívida dos anos 80 apenas reforçou suas posições, pois eles estavam colocados de forma ideal para servir de intermediários entre os credores e os devedores. Apoiando-se na rede dos veteranos de Chicago, tanto no Norte como no Sul, o novo consenso de Washington pode se proclamar universal.

Economistas neoliberais

No entanto essa nova ortodoxia não é tão dogmática quanto acreditam seus difamadores. Sua vitória é acompanhada do pragmatismo próprio dos discursos dominantes: a fase de consolidação apresenta outras exigências além da conquista do poder. Assim, depois de terem denunciado os lucros dos dirigentes do Estado, os teóricos do mercado interessam-se agora pelas instituições e as regras do “bom governar”, passíveis de enquadrar a atividade mercantil ou estimular o crescimento. Esses pesquisadores marginalizados, transformados em conselheiros do príncipe, não ficariam à vontade para criticar as instituições — grandes universidades, escritórios de lawyers de Wall Street, governos, Banco Mundial — que lhes abriram gentilmente as portas. Além do mais, a maioria deles possui uma atividade promissora e remunerada de consultor, graças à rede mundial de seus antigos alunos que atingiram cargos de responsabilidade financeira ou política.

Esses gratos discípulos só precisavam responder na mesma moeda. Também cultivam um capital social que precisa ser constantemente reatualizado por um crescimento bem planejado, garantido pelo êxito dos economistas no poder. O PhD é desvalorizado. A credibilidade requer agora o status de professor convidado em instituições como Harvard ou o Massachusetts Institute of Technology (MIT). Esse reconhecimento por parte da academia permite à nova elite dos países dominados acessar o mercado internacional da competência do Estado, sob hegemonia norte-americana, onde é possível acumular os lucros financeiros do consultor e a autoridade do homem público.

A valorização da economia como disciplina modificou sua inserção na sociedade. Cosmopolitas, impregnados pela cultura liberal e legalista das universidades norte-americanas — e portanto distantes ou até hostis ao militares — esses dirigentes também são muito bons para incorporar o economista respeitador dos direitos humanos. Esses são os trunfos que lhes permitem preservar, e ao mesmo tempo modernizar, o essencial da experiência da contra-revolução neoliberal, lançada pelos “Pinochet boys”. Na medida em que também manifestem um compromisso com o mundo dos lawyers — e aos ideais aos quais estes devem a legitimidade. [2]

Direitos humanos e guerra fria

A história norte-americana dos direitos humanos é estreitamente relacionada com as lutas da guerra fria. Também é reveladora do duplo jogo dos notáveis de Wall Street, que fazem a CIA financiar a criação de uma espécie de tribunal internacional de grandes notáveis do direito — (International Court of Justice ? ICJ) — para denunciar as “ilegalidades” dos regimes comunistas. A revelação pública dessas conivências, em plena guerra do Vietnã, faz desaparecer o ICJ e estrebuchar a Anistia Internacional. [3]Uma década mais tarde, a estratégia do presidente democrata James Carter — invocar a “defesa dos direitos humanos” colocando os Estados Unidos “ao lado dos anjos” — permitirá a retomada desse tema em torno de uma nova geração de ONGs e de uma estratégia política mais divulgada pela mídia.

Se a linguagem é a mesma, a paisagem política foi modificada. A hegemonia do establishment não sobreviveu à derrota vietnamita. Alguns aliam-se à ofensiva reacionária da nova direita, enquanto outros reagem apoiando-se em fontes que dominam. Assim, a Fundação Ford, sob a direção de Mc George Bundy — um dos conselheiros do presidente Kennedy [4] — tornou-se o banco e o berçário de um conjunto de ONGs que se esforçam por concretizar os ideais humanitários das universidades. O movimento dos direitos humanos em seu sentido amplo — de quem a Fundação Ford foi durante uma década o principal financiador, principalmente na América Latina — prestava-se a essa tática de contra-ofensiva, pois isso permitia mobilizar todo o legalismo moralista da ideologia norte-americana.

Uma suave conversão

O Chile foi laboratório e vitrine dessas lutas internas nos Estados Unidos. Enquanto o Wall Street Journal fazia a apologia da revolução neoliberal, o New York Times se dedicava a denunciar os abusos dos torturadores. A Fundação Ford se mobilizava para proteger intelectuais cassados por militares treinados pela CIA com o apoio tácito do Departamento de Estado… No entanto, essa concorrência de exportação foi mais complementar do que contraditória. Seu efeito combinado aceleraria a reestruturação do poder nos países dominados segundo um modelo específico de força hegemônica. Para se proteger dos militares, os militantes ou intelectuais não tiveram escolha senão aceitar a proteção que lhes oferecia a Fundação Ford, sob a forma de bolsas de pesquisa e estadias nas universidades norte-americanas. Essa suave conversão foi facilitada pela proximidade das posições sociais e pelos fortes laços que se estabeleceram.

Proximidade essa que criou condições favoráveis para um “golpe de força” ideológico, aparentemente justificado pela urgência. O vocabulário dos direitos humanos era diferente daquele empregado por intelectuais e militantes chilenos. Foi devido à ação de ONGs e da imprensa norte-americana que se deu a transcrição da violência política para a linguagem do legalismo e do universalismo. A imposição de uma orientação de leitura anglo-saxônica teve que pagar o preço da despolitização. A mobilização internacional pelos direitos humanos acabou beneficiando principalmente uma pequena minoria de intelectuais da política.

Empresários de “boa moral”

Fortalecido pelo seu êxito, o movimento dos direitos humanos tende a se institucionalizar no mundo norte-americano, onde as ONGs operam cada vez mais em simbiose com o poder. A elite dos lawyers debate-se para oferecer seus serviços a essas instituições que permitem aos mercenários dos negócios cultivarem e anunciarem seu capital de moralismo cívico, ingrediente indispensável ao status de “empresários de boa moral”. [5] Essas grandes ONGs — financiadas pelas fundações, recrutando pessoas nas escolas de elite e apoiadas por toda uma rede de veteranos graduados em instituições do Estado — tendem a funcionar como multinacionais da virtude cívica.

Na América Latina, porém, esses movimentos se atrofiam: o transplante do modelo não deu certo num meio profissional em que a passagem para uma organização da defesa dos direitos humanos não atrai o mesmo capital social que nos Estados Unidos. Alguns dos pioneiros voltaram à política, juntando-se aos governos ditos de transição, pouco preocupados em questionar os compromissos que levaram à anistia dos torturadores. Além disso, a conivência — tanto social quanto ideológica — do mundo judiciário e dos notáveis do magistrado com os regimes militares torna esse tipo de ação bastante improvável: a hierarquia e as instituições do mundo do Direito continuam impermeáveis aos direitos humanos. Particularmente em relação aos direitos dos intelectuais e, a fortior, dos pobres, que continuam sendo vítimas da brutalidade normal da polícia.

A dolarização do saber

Como, além disso, os orçamentos da Fundação Ford foram destinados a outras prioridades, seria necessário muito mérito para persistir nas práticas militantes sem retorno nem perspectivas profissionais. Os raros obstinados uniram-se a associações ou instituições internacionais onde seguem brilhantes carreiras. No entanto, pagando o preço de uma emigração que surge como o corolário da fuga de cérebros no campo da virtude cívica.

Mesmo tomando caminhos bem diferentes, essa concentração de empresários cívicos na órbita das instituições de Washington vem reforçar a dolarização do saber econômico. As instituições dominantes da sociedade americana — que já são o lugar privilegiado da reprodução da hierarquia internacional dos profissionais do saber do Estado (como o Direito e a Economia) — tendem a impor as formas de contestação dessa dominação. Chega-se assim ao paradoxo de campanhas contra a globalização que contribuem com a exportação e universalização das estratégias de mobilização (num sentido mais amplo, de toda a estruturação do campo político) produzidas pela história do poder hegemônico, ao mesmo tempo que reforçam suas pretensões ao universalismo. Será a “sociedade civil internacional” uma nova encarnação do consenso de Washingt



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