O incentivo à cultura em jogo
Elaborada pelo Movimento Arte Contra a Barbárie em parceria com o Poder Legislativo municipal, a Lei de Fomento ao Teatro veio como uma reação ao modelo de privatização do Estado. Passados oito anos, a sua revisão está trazendo aos grupos de artistas inúmeros problemas, dificultando a viabilização de projetos
A Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, criada por um grupo de artistas de teatro em parceria com o Poder Legislativo municipal, foi implementada em 2002 com o objetivo de combater a mercantilização da cultura e das artes. Tornou-se um paradigma para a defesa dos tão combalidos ideais republicanos, simplesmente por estar em acordo com a Constituição de 1988, que em seu artigo 215 diz: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.
Mas antes de analisar os seus mecanismos e resultados, se faz necessário um pequeno histórico de como e com que propósito ela surgiu.
Mecanismo de renúncia fiscal
A extensão do mecanismo de renúncia fiscal para a cultura, sob pretexto da criação de uma indústria cultural brasileira, foi embrionariamente concebida ainda sob o governo Collor, época de início dos anos neoliberais, norteados pelas diretrizes do Estado mínimo. E, na sequência, transformou-se na Lei Rouanet, que persiste até os nossos dias, apesar de a tal indústria não ter se desenvolvido. O mecanismo funciona da seguinte forma: os empresários do setor cultural encaminham seus projetos para o Ministério da Cultura, que os analisa (basicamente por sua forma contábil, as planilhas de custos) e dá permissão para a captação de recursos.
Na sequência, o empresário vai ao “mercado” das empresas (mas somente aquelas aferidas pelo lucro líquido, ou seja, as grandes corporações – às outras companhias e às pessoas físicas é vedado este mecanismo) e tenta vender o seu peixe, ou melhor, o seu produto artístico ou educacional. Chegado o projeto às grandes corporações, ele é encaminhado para os departamentos de marketing, que fazem análises minuciosas. Nesses departamentos, atenta-se para a sinergia (no jargão empresarial) entre o peixe que está sendo vendido pelo empresário cultural e o cardápio da corporação. Se o peixe se adequa ao cardápio, aos objetivos das marcas, estratégias comerciais, públicos-alvo e também à visibilidade social almejada pela corporação, ela compra o peixe.
Até aqui, o mecanismo não é muito diferente dos outros setores da corporação que adquirem, de terceiros, matérias-primas ou serviços complementares para a produção e realização de seus lucros.
O “xis” da questão, porém, é que uma vez comprado o peixe, não é a empresa que paga por ele, e sim eu e você, contribuintes, pois o dinheiro é deduzido da conta Imposto de Renda. E, agora, as perguntas que não querem calar: por que o cidadão contribuinte paga a propaganda das grandes corporações? Quais os interesses que elas representam e quais os seus objetivos? Não precisamos entrar numa discussão sobre qual o objetivo de uma empresa privada numa economia capitalista, mas por que, numa República, se dividem os interesses privados dos públicos? Será que eles têm a mesma finalidade? Se a resposta for não, ou mesmo um “nem sempre”, qual será então a função que cabe ao Estado, ao interesse público? Mais especificamente, qual o seu dever em relação à cultura do país? Será que é o de passar o bastão para que a iniciativa privada decida o que tem valor cultural para a nação? Sim, pois estamos falando de cultura, um bem público, um direito de todos os cidadãos, assim como a saúde e a educação.
Voltando à Lei Rouanet, no que ela resultou? Na prática, no surgimento de mais um mecanismo de apropriação de recursos públicos por corporações, e o encaminhamento destes para objetivos privados e exclusivos. Estimulou a concentração dos projetos assim patrocinados no eixo Rio-São Paulo, a produção de espetáculos que cobram ingressos a preços proibitivos para a maioria da população, a criação de iniciativas de reeducação e inserção social de populações marginalizadas nas grandes cidades, sem que com isso tivessem baixado os índices de insegurança nas nossas metrópoles. Resultou na criação da figura do captador cultural – o homem da mala preta que, no período da apuração de lucros das empresas, peregrina entre produtores culturais e ONGs oferecendo seus serviços (a desova da isenção fiscal de empresas que não têm estratégia cultural, mas que têm IR a ofertar), pela módica quantia de 10% a 20% do que for captado, ou decapitado da verba pública. Resultou ainda no fortalecimento das marcas das grandes empresas com estratégia cultural, que criaram seus próprios institutos com verbas públicas, pagando desde a construção de seus prédios até os rolos do papel higiênico consumido nos seus banheiros. Resultou na precarização da vida de artistas, intelectuais e educadores, que se viram forçados a fazer o jogo da corte com o mercado para poder continuar a sobreviver e, por conseguinte, na queda de potencial crítico de seus trabalhos, ligados aos interesses de marketing dos patrocinadores.
Outra perspectiva
Elaborada pelo Movimento Arte Contra a Barbárie, criado por artistas de teatro em 1998, em parceria com o Poder Legislativo municipal, a Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo entrou em vigor em 2002 e veio como uma reação à continuidade do modelo de privatização do Estado. Apesar de ser específica (uma lei municipal feita para atender o teatro), ela contém em sua letra um modelo do que seria uma política pública para a cultura. Terminou por inspirar outras cidades na criação de seus projetos de lei, tornando-se exemplo de um programa público para a cultura. O porquê deste reconhecimento decorre do fato de ela trazer de volta ao Estado a prerrogativa constitucional de ser a cultura uma questão de soberania nacional e o seu fomento se dar de maneira transparente, democrática e inclusiva para o teatro, e destinada, como todo bem cultural deve ser, à maioria da população. E os números mostram isso. Entre 2002 e 2008, segundo a Secretaria Municipal de Cultura, houve 1.296 iniciativas inscritas e 192 selecionadas. Desde seu início, 93 núcleos teatrais executaram seus projetos, que abrangeram todas as regiões da cidade, descentralizando a atividade teatral do tradicional eixo central (24% dos projetos foram realizados na zona oeste, 37% na zona central, 16% na zona leste, 13% na zona sul e 10% na zona norte).
A Lei de Fomento
Os artigos mais relevantes da Lei de Fomento são: dotação orçamentária própria e o seu reajuste anual pelos índices de inflação (que assegura a sua continuidade e a defende dos interesses imediatistas dos governos executivos); foco na continuidade de projetos artísticos de grupos de teatro, e em seus trabalhos de médio e longo prazo (fugindo assim do eventualismo artístico, ou seja, de projetos que se esgotam em si mesmos); exigência de uma comissão julgadora composta por pessoas de notório saber em teatro e também no caráter misto dela – metade da comissão, mais o presidente, são indicados pela Secretaria de Cultura, e a outra metade escolhida pelo voto dos grupos participantes da edição –, garantindo assim a heterogeneidade da decisão, o seu não dirigismo, a transparência dos julgamentos e o mérito dos projetos selecionados.
Apesar de todo este reconhecimento da lei e de seus resultados práticos para a cidade, os artistas de teatro vêm enfrentando problemas para a sua manutenção. Uma delas é a exigência de mobilizações anuais para que sua dotação orçamentária seja respeitada. A outra é a necessidade de mobilizações periódicas a fim de coibir ingerências do poder executivo, que tenta sistematicamente regulamentá-la por meio de normas juridicamente inferiores (a lei aprovada pelo Legislativo já prevê a regulamentação em seus artigos).
Em dezembro de 2009, os movimentos de artistas de teatro tiveram que se reunir, às pressas, para forçar um diálogo com o secretário de cultura, pois a 16ª edição da lei seria regida por um edital que obrigaria os grupos (a maioria filiados à Cooperativa Paulista de Teatro e tendo-a como sua figura jurídica de representação) a se tornarem ONGs para poder concorrer à lei.
Feliz é a República onde o Legislativo legisla e o Executivo executa, com o claro objetivo do benefício da maioria. Infelizmente este ainda não é o nosso caso.
*Pedro Pires é diretor da Companhia do Feijão de Teatro; formado pela EAESP-FGV e pela École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq.