As muitas águas e funduras que nos habitam e nos (re)formam em “O mar de vidro”
O mar de vidro, de Gabriela Lages Veloso, contém poemas de linguagem melódica, de simples acesso, o que revela a sua contemporaneidade e tempo de produção, mesmo que não deixe de apresentar múltiplos sentidos e significações
O mar de vidro (2023), da maranhense Gabriela Lages Veloso, é um livro que reúne quarenta e quatro poemas, divididos em três partes: Gaia, Vênus e Atena. Quase que simetricamente postos (quinze na primeira parte; quatorze na segunda e quinze na terceira), os poemas resgatam a poética e mítica clássica, greco-romana, como muitos/as poetas o fazem, na nossa contemporaneidade (alguns exemplos são Lívia Natália e Guilherme Gontijo Flores). Porém, O mar de vidro vai além, mostrando e trabalhando com as relações sociais, históricas e culturais entre a coletividade e entorno onde habitamos, nos construímos e vivemos; bem como, o que existe dentro de cada um de nós.
Notamos em vários versos essas relações difíceis, duras, mas possíveis entre o interior e o exterior. As referências literárias do livro caminham entre a literatura brasileira e a ocidental já comentada, vindas da Grécia e de Roma. No primeiro caso, vemos as vozes e a parodização de João Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Clarice Lispector e a Música Popular Brasileira (MPB), com o discurso que faz uma resposta a músicas, como Apesar de Você. É perceptível o trabalho com múltiplas vozes e obras multissemióticas, com variadas linguagens.
Há poemas sociais, como “Macabéa”, protagonista do romance A Hora da Estrela (1977) de Clarice Lispector, uma referência basilar para a poeta, como é possível notar desde a epígrafe de O mar de vidro, que traz um trecho do romance Água Viva (1973), que também revela a significação e a construção dos discursos da poeta maranhense: “Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe” (Lispector, 1973, p. 55).
O questionamento dos versos de “Macabéa” nos orienta a pensar ‘quem somos nós?’, uma pergunta realizada e ecoada em diversos poemas filosóficos, existencialistas e questionadores de nossas realidades atemporais e atuais: quem somos e quem fomos antes, durante e depois da pandemia? Como nordestinas e nordestinos, não seríamos também um pouco “Macabéas”, visto que somos e continuamos apagados e invisibilizados dentro da literatura brasileira e dos contextos históricos, culturais e sociais brasileiros? “Macabéa até quando aceitarás/ o destino que te impuseram? / Até quando permanecerás invisível?”.
O eu-lírico parece tomar a forma masculina em vários poemas de O mar de vidro, mas também existe a voz feminina e sem gênero que nutre a seiva das poesias que permeiam os encontros e desencontros entre o que é nosso, humano, e o que não é (muitas vezes também criado por nós, nossas humanidades e nossas desumanidades): as cidades, a poluição, a solidão, a violência, os sentimentos ambíguos etc. Assim, o eu-poético observa e questiona o real, o existir e o resistir diante das quebras e opressões. Existe e persiste uma linearidade e uma conexão entre passado e presente nas palavras.
Gaia, a grande mãe que nos criou, é o recomeço de tudo. Ela ganha voz e nos conta o que é e como se constitui. Já Vênus é a beleza e a estética, aquilo que primeiro enxergamos e construímos ao redor do que somos, a primeira parte vista no espelho, um dos mares de vidro, ou o próprio “mar de vidro”, que reflete o que somos, mas traz muito mais: “és o poço mais profundo que existe./ Em uma só mirada/ atravessas as barreiras/ do tempo e da vida. / Mágico, sombrio ou / verdadeiro, apenas,/ és um mar de vidro.” Primeiro, vislumbramos e, depois, reparamos e buscamos a mudança.
Por fim, com Atena, revisitada e aprofundada, imergimos nas águas que nos habitam e nos constroem, sentindo e racionalizando o que somos, por meio das palavras. Seguimos uma linha e um fio vital da obra, mergulhando na poética de Gabriela Lages Veloso. Da criação, da origem, adentramos passo a passo no abismo oceânico, imergindo finalmente nos mares que existem na obra: o ser humano, o que existe dentro e fora de nós. Aliás, o externo a nós também nos constitui; é um reflexo do que somos.
O mar de vidro, de Gabriela Lages Veloso, contém poemas de linguagem bela, sonora e melódica, de simples acesso, o que garante que mais pessoas possam ler, e o que revela a sua contemporaneidade e tempo de produção, mesmo que não deixe de apresentar múltiplos sentidos e significações, principalmente quando paramos para analisar cada palavra escolhida cuidadosamente para compor os seus versos.
É, portanto, uma revisita e uma nova forma de enxergar com mais calma o que somos, imergindo para além dos hologramas que apresentamos, uma possibilidade que apenas a arte e a poesia nos trazem, a quebra e desconstrução do automatismo de nossas vidas e vivências. A desconstrução de nosso olhar cotidiano automatizado – “Escrever é libertar-se de si mesmo./ É poder recriar o mundo / com o poder da palavra. / […] Escrever é ora um alento, ora um desconsolo./ É transitar entre mundos, eras e seres.”
Thalya Amancio é Graduada em Letras Língua Portuguesa e suas Literaturas pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), campus FECLESC, Quixadá, no sertão central do Ceará. Pós-graduada em Língua Portuguesa e Literatura no Contexto Educacional pela Unicesumar (Educação à distância, EAD). Atualmente, cursa o Mestrado Interdisciplinar em História e Letras da FECLESC/UECE (MIHL). É pesquisadora nas áreas de Literatura Comparada, Análise do Discurso e Literatura Cearense, com enfoque no Romance Histórico e a perspectiva feminina nas obras da autora cearense Ana Miranda.
REFERÊNCIAS:
LISPECTOR, Clarice. Água Viva [1973]. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2020.
__________. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998.
VELOSO, Gabriela Lages. O mar de vidro. Belo Horizonte: Caravana, 2023.