Duas obras literárias contemporâneas para pensar as relações de trabalho
“Afetos postiços”, de Gabriele Rosa, e “Os dias trabalhados”, de Marcelo da Silva Antunes trazem olhares atentos às explorações cotidianas enfrentadas por trabalhadores
Bartleby, o Escrivão e A Metamorfose mostram muito bem que o trabalho é tema recorrente na ficção há bastante tempo. Publicado em 1853, o livro de Herman Melville traz um dos personagens mais emblemáticos de toda a literatura: um escrivão que, de repente, passa a se negar a fazer qualquer tarefa, numa postura que transita entre a rebeldia e o niilismo. Já no livro de Franz Kafka, de 1915, Gregor Samsa acorda metamorfoseado num inseto monstruoso e, ainda assim, seu principal medo é perder o emprego.
Ambas as narrativas se tornaram clássicas e continuam com muito a dizer. Contudo, com as constantes mudanças nas relações de trabalho, obras contemporâneas também têm mergulhado no tema. Na literatura nacional, dois exemplos recentes são Afetos postiços, de Gabriele Rosa, e Os dias trabalhados, de Marcelo da Silva Antunes.
Em Afetos postiços, publicado pela Ofícios Terrestres, a autora traz quase 50 contos focados no cotidiano de manicures. A obra dá voz a profissionais que pouco aparecem na literatura e traz narrativas que abordam desde relacionamentos até condições de trabalho.
A escritora utiliza uma linguagem bastante poética e evidencia as complexidades do ofício, com um olhar atento e repleto de respeito e admiração. O livro ainda tem momentos divertidos e reúne referências musicais bem diversas, de Maiara & Maraisa a Charlie Brown Jr.; de Aline Barros a Johnny Hooker.
Assim, como destaca a escritora Euler Lopes na orelha do livro, Gabriele Rosa apresenta “um livro que tem a voz das personagens como potência máxima, se alicerça na intertextualidade com músicas, nas referências à cultura do povo, entendendo que a literatura brasileira deve ser o retrato de sua gente, de suas mulheres, dos afetos que não podem ser negligenciados”.
Isso ganha ainda mais força em contos como “a entrevista”, “base aliada” e “não me lasco mais”, histórias em que as personagens refletem sobre as dificuldades comuns à profissão, desde as relações de poder pré-estabelecidas (“lá no salão a regra é clara: não converse com a cliente. postura! ninguém quer saber da sua vida. eles colocam as clientes como se fossem deuses que a gente serve, mas nunca vai alcançar”) até os preconceitos (“eu não nasci manicure. é engraçado até falar sobre isso, mas as pessoas acham que eu sou 24 horas por dia uma espátula precisa, um alicate amolado e um esmalte vermelho”).
Temas parecidos são abordados em Os dias trabalhados, publicado pela Borboleta Azul. No romance autobiográfico, o escritor Marcelo da Silva Antunes fala sobre suas experiências no mercado de trabalho, em meio a afrontas e constantes desconfortos. Narra a pressão no telemarketing, as humilhações sofridas quando foi office-boy, as longas jornadas como vendedor em loja de shopping e as sobrecargas nas agências de publicidade.
Sem meias palavras, o autor expõe a realidade enfrentada por quem precisa se submeter a empregos precários e lidar com pessoas arrogantes todos os dias. Também traz uma leitura sociológica do mercado de trabalho e apresenta um retrospecto dos acontecimentos políticos dos últimos anos.
O autor ainda utiliza linguagem ácida e humor escrachado parar rir da própria desgraça e satirizar os nascidos em berços de ouro que propagam a ideia de meritocracia, em especial os engravatados de escritórios e os descolados de startups.
Embora tenham abordagens bem diferentes entre si, Afetos postiços e Os dias trabalhados discutem temas complexos com criatividade, sensibilidade e visão crítica. Ambas as obras trazem olhares atentos às explorações cotidianas enfrentadas por trabalhadores e trabalhadoras e propõem uma intensa reflexão sobre os absurdos que já se tornaram parte da obscura estrutura das relações de trabalho.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá) e “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.