O marketing da libertação… do capital
Ligar a televisão no horário nobre significa ouvir a publicidade incitar à revolução, pregar a transgressão dos bons costumes, insistir em viver perigosamente até o fim. A crítica do capitalismo tornou-se, de forma estranha, o sangue salvador do capitalismoTom Frank
Um dos mitos mais persistentes produzidos pelo discurso norte-americano sobre as “guerras da cultura”, que há mais de trinta anos dividem o país, postula que a contra-cultura da juventude tem um poder inato de transgressão social; que a eterna batalha entre hippies e yuppies, entre freqüentadores de discotecas e religiosos praticantes, entre individualistas e conformistas, seria tão importante quanto a luta de classes de antigamente.
Qualquer produto ? do carro ao tênis, passando pelo refrigerante ? deve ser veiculado como parte do equipamento indispensável de uma juventude rebelde
Essa crença é aceita não só pelos gurus acadêmicos dos cultural studies, mas também pela grande indústria e pelo entretenimento. Sintonizar um programa de televisão no horário nobre significa ouvir o capital usar a publicidade para incitar à revolução, para pregar a transgressão das regras e dos bons costumes, para insistir na necessidade de viver perigosamente até o fim ? apesar do que possam achar os patrões, os engravatados ou as beatas de sacristia. Qualquer produto ? do carro de passeio ao tênis, passando pela soda limonada aromatizada ? deve ser apresentado como parte do equipamento indispensável de uma juventude rebelde, fã da música de Jimmy Hendrix, da poesia de Jack Kerouac ou dos ritmos sensuais da cultura popular. Os operadores de telefones celulares se dizem empenhados em que cada pessoa possa ser ela própria; os fabricantes de perfumes celebram a cultura de povos indígenas1; os programadores de informática querem dar o poder ao povo; os corretores são atormentados pela vontade de subverter a lei do mercado.
A parafernália da “contestação”
Famosa pela super-exploração do trabalho de adolescentes asiáticos em suas fábricas, a Nike se apresenta aos adolescentes norte-americanos como portadora da “revolução”. A Apple e as lojas de roupas Gap decoraram a fachada de suas sedes com fotos de celebridades de vanguarda. Os punhos cerrados estão por toda parte. O refrigerante Seven-up revela uma sinistra conspiração, com ramificações internacionais. O objetivo? Impedir os consumidores de tomarem Seven-up…
Famosa pela super-exploração do trabalho de adolescentes asiáticos, a Nike se apresenta aos adolescentes norte-americanos como portadora da “revolução”
Por que seria a cultura comercial norte-americana tão “cool”, tão “rebelde”? Uma das explicações é demográfica. Os publicitários estudam a cultura dos jovens para melhor falar aos jovens. Imitam o sistema da escola norte-americana de ensino médio para vender mais Sprite, mais Reeboks, mais Levis. Essa teoria, entretanto, não basta para explicar a disposição da própria indústria publicitária em aceitar a “rebelião”, a faceta intensamente “cool” dos anunciantes ou o emprego de toda a parafernália de “contestação” quando se trata de vender produtos a consumidores com muito mais de 18 anos. Não é, certamente, para ganhar a atenção de estudantes ginasiais que os fabricantes de carros-esporte tascam em seus toca-fitas as músicas de Jimmy Hendrix.
A abolição da hierarquia
Esse tipo de cultura manifesta algo que vai além do interesse do mercado pelos jovens. Desde a década de 20, pelo menos, o consumismo vem sendo uma forma de revolta contra valores mais antigos, ligados à produção. Enfatizou o prazer e a gratificação, por oposição à restrição e à repressão de tradição puritana. Cultuou a moda e a obsolescência, no lugar da previdência e da permanência, a juventude no lugar da experiência, a mudança no lugar da tradição, o novo no lugar do antigo.
A obsessão dos publicitários pelo inovador é também produto de um problema típico da indústria publicitária. Desde a década de 60, os executivos das agências de marketing vêm sendo advertidos de que seu público-alvo se mostra cada vez mais cético diante dos apelos da publicidade. Esta interrompe os programas de televisão, telefona na hora das refeições e muitas vezes chega a ser ofensiva e idiota. Mas o problema principal é que é muita publicidade. Demais! Atualmente, um cidadão médio está exposto a cerca de um milhão de “mensagens” publicitárias por ano. Fazer-se ouvir em meio a tal zoada e superar a desconfiança do público são as duas principais dificuldades dos anunciantes.
Desde a década de 20, pelo menos, o consumismo vendo uma forma de revolta contra valores mais antigos, ligados à produção
Por essa razão, os publicitários desenvolveram um culto da criatividade que os obriga a chocar e surpreender para se fazerem notar. A reverência pelo novo, por exemplo, não se deve exclusivamente a motivos estruturais ? o produto do dia é sempre melhor que o modelo do ano passado ?, mas também ao fato de que a novidade é o único meio de fazer passar uma mensagem de venda. É por esse motivo que o meio da publicidade rejeitou há muito tempo o princípio da hierarquia: o escritório sem estrutura hierárquica é uma invenção da Madison Avenue,2 assim como a ausência de gravata ou o casual wear no local de trabalho.
Os truques do “deslocamento”
O publicitário francês Jean-Marie Dru descreveu a prática criativa atual no livro Disruption, publicado nos Estados Unidos em 1996.3 Para vender um desodorante qualquer ou um analgésico, o “criativo” tem de identificar uma convenção social ? uma dessas “idéias pré-fabricadas que mantêm o status quo” ? e esmagá-la num processo quase orgástico, que Dru chama de “disruption” (deslocamento). “Agitar o marasmo, transformar as regras, despertar o consumidor e criar a mudança”, ordena ele, e, finalmente, descobrir um meio de associar a marca para a qual trabalha com alguma “visão” mais ampla da libertação humana.
Um cidadão comum está exposto a cerca de um milhão de “mensagens” publicitárias por ano. Vale tudo, para fazer-se ouvir em meio à tal zoada
As marcas de sucesso seriam, portanto, as que declaram guerra às convenções sociais de todo tipo e Dru descreve, comovido, comerciais em que pessoas de idade, recatadas, são humilhadas por jovens transbordando sensualidade, em que a cerveja Guinness é adotada por jovens não conformistas como “um novo meio de expressar sua própria individualidade” e em que idéias ultrapassadas de gerenciamento hierárquico são ridicularizadas pela Macintosh, “empresa anti-establishment”.
Uma convenção social, entretanto, permanece fora do alcance do “deslocamento”: a fidelidade à marca. E não há nisso qualquer contradição. “Se as empresas e as marcas não se deslocam, há um risco crescente de que os consumidores se cansem e percam interesse pela marca. Com o ?deslocamento?, seu interesse e sua fidelidade estão preservados.”
A crítica da sociedade de consumo
Tudo isso é apresentado com traços apocalípticos: qual o teórico de gerenciamento que não se considera um “revolucionário”? E alguns chegam a visualizar algo ainda mais audacioso: a colonização por meio da defesa… de justiça social. Para que uma marca tenha sucesso, explica Jean-Marie Dru, ela deve parecer “feita de sonhos”. E é com desenhos que ele ilustra a sua demonstração de citações de várias figuras do movimento progressista e revolucionário. Com a derrota política da esquerda abriu-se aos publicitários uma série de nichos culturais, sem serventia mas ricos em carisma e evocação subversiva. A Benetton conseguiu associar sua marca à luta contra o racismo, a Apple, ao combate contra a tecnocracia, a Pepsi apropria-se da revolta adolescente, a Body Shop utiliza a compaixão, a Reebock, o não-conformismo e a MTV, o underground. Em matéria de justiça social, as marcas substituíram as mobilizações…
Para superar a desconfiança do público, os publicitários desenvolveram um culto de criatividade que os faz chocar e surpreender para se fazerem notar
O marketing se renova sob a feição de um discurso crítico, um questionamento da sociedade de consumo. A publicidade da moda admite que realmente há algo de errado com a nossa existência, que o mercado não nos deu tudo o que prometeu, que não resolveu os problemas decorrentes do desenvolvimento capitalista. Mas face à invasão da vida pelo trabalho, da cidade pelo automóvel, os anunciantes nada mais têm a propor que um sabonete que tornará ainda mais branca a pele dos brancos.
As “contradições culturais” do capitalismo
O marketing da libertação imagina que os consumidores, auxiliados pelas marcas, vão poder se libertar dos guardiães da ordem, deixar de lado os grilhões com que o sistema industrial os aprisiona, fugir da rotina da burocracia e da hierarquia, descobrir como são de fato, para, finalmente, chegar à autenticidade, o santo Graal da ideologia consumista.
Seguindo essa “grande narrativa” publicitária, estimulada todos os anos por centenas de bilhões de dólares, o problema maior de nossas sociedades seria o conformismo, e a resposta apropriada, o carnaval. Se nossos universos fragmentados conservaram uma temática comum, é a de uma luta permanente, não mais contra os comunistas, mas contra o poder puritano e a máquina de produzir cópias da própria sociedade de consumo. Para resistir, seria preciso que freqüentássemos as redes de restaurantes “étnicos”, ou víssemos os vídeos de Madonna. Ou simplesmente homenageássemos os consumidores que o fizessem.
O meio publicitário rejeitou há muito tempo o princípio da hierarquia: o escritório sem estrutura hierárquica é uma invenção da Madison Avenue
O sociólogo Daniel Bell declarou certa vez que o conflito entre a busca da eficiência no trabalho e o culto do hedonismo no lazer era uma das “contradições culturais” mais explosivas do capitalismo. Na realidade, o próprio mercado resolveu os problemas que criou, pelo menos de maneira superficial. A crítica do capitalismo tornou-se, de forma bem estranha, o sangue salvador do capitalismo. É um sistema ideológico fechado, dentro do qual a crítica pode ser abordada e resolvida, porém de maneira simbólica.
A raiva a serviço do lucro
É claro que as duas últimas décadas não foram marcadas pela revolução, pela destruição das regras sociais, pela mudança total, pela tomada do poder pelo indivíduo, pela transgressão de limites etc. Foi, principalmente, a era dos grandes monopólios multimídia, da explosão da Microsoft, da concentração de bancos, agências de publicidade, editoras e jornais. E também a era do declínio do movimento operário e da morte da idéia de um Estado poderoso, distribuidor das riquezas. Acompanhando todas essas mudanças, houve a intromissão incessante do poder das empresas em um número crescente de aspectos da vida cotidiana.
Os norte-americanos trabalharam mais na década de 90 do que o haviam feito desde 1945; viram mais publicidades num maior número de veículos; fizeram mais testes de personalidade e testes antidoping; nunca sofreram maior endividamento doméstico. Nunca tiveram tão pouco poder sobre as condições de vida e de trabalho do que nos últimos cinqüenta anos. Deixou de ser fora do comum ver uma família passar pela rua num carro patrocinado por uma empresa, totalmente coberto por logotipos de diversas marcas.
Para vender um desodorante ou analgésico, o “criativo” precisa identificar uma convenção social qualquer e esmagá-la, num processo quase orgástico
Num ambiente desse tipo, a raiva aumentou, e muito. Egressos das fileiras de especialistas em marketing da libertação da Madison Avenue, os mais bem-sucedidos na sociedade norte-americana também foram os que melhor souberam dirigir essa raiva, colocando-a a serviço de seus interesses.
(Trad.: Regina Salgado Campos)
1 – Sem aparentemente temer que sua loja fosse detonada, o comerciante de perfume