O movimento: confiança, falta de confiança e super-confiança
Para o autor uma das importantes lições que podemos tirar da hodierna crise é: “a mão se torna mais ineficiente, pois os problemas não são resolvidos, mas somente adiados, o que ocorre é uma fuga para frente. A pergunta que ocupa a cabeça de muitos é: até quando a fuga poderá operar?”Gabriel A. A. Rossini
István Mészáros formulou uma consideração, bastante irônica, intitulada “tríade pseudo-hegeliana”, em fins de 2008, para uma conferência no Conway Hall, em Londres. Proposição que, hoje, faz parte do primeiro capítulo de seu livro A crise estrutural do capital, publicado em meados de 2009 pela editora Boitempo. A tríade é decorrente do movimento progressivo: confiança, falta de confiança e super- confiança. Enquanto a primeira parte dessa oscilação coincide com a proposição do economista Hyman Minsky acerca da dinâmica dos ciclos financeiros e sua tendência Ponzi (tendência para a instabilidade), o segundo solavanco, mais rico em suas conseqüências – a passagem da falta de confiança à super-confiança –, deixa as claras um aspecto fundamental e recorrente do sistema capitalista, embora seja constantemente jogado para baixo do tapete.
Através do último desdobramento da tríade, temos, mais uma vez, a oportunidade de presenciarmos a derrubada da tese jogada aos sete ventos por, dentre outros veículos de comunicação, a revista The Economist e o jornal Financial Times. Enquanto o editorial, de 11 de outubro de 2008, do primeiro periódico fala-nos que: “este é o momento de colocar dogma e política de lado e concentrar-se em respostas pragmáticas. Isso significa mais intervenção governamental e cooperação no curto prazo, mais do que os contribuintes, políticos e jornais do livre-mercado normalmente gostariam”. A segunda publicação (21/08/2008) nos diz que: “no conflito perene entre a política e o mercado, não há dúvida, que neste momento, a política está por cima”.
Tais passagens são construídas em torno de uma inverdade que de tanto ser reproduzida, acaba passando, aos mais desinformados, por verdade. A tese sustentada pelos jornais do livre-mercado de circulação e mistificação em massa se sustenta por meio da ideia equivocada de existência de um “conflito perene”, entre a Política e o Mercado. Essa conjectura é reproduzida incessantemente, apesar da história da formação dos mercados e do capitalismo apontar na direção oposta, ou seja, de uma solidariedade essencial e originária entre o poder e os capitais privados.
O problema básico desta tese reside na preservação da dualidade que está na base do pensamento liberal: o “mercado” como esfera primeira, como o reino da liberdade e das entidades naturais e a “política” como esfera artificial, como o reino da arbitrariedade humana.
Hoje, a inexistência de tal dualidade pode ser explicitada por meio da ampla nacionalização da bancarrota do capital decorrente da grande crise aberta em 2008, evento de proporções épicas e efeitos duradouros, traduzido nos dez trilhões de dólares (o valor das diferentes fontes gira em torno desse número) destinados a isso. Temos aí, entre outras “intervenções pragmáticas”, a nacionalização dos passivos da Fannie Mae e Freddie Mac, diversos outros aportes para sustentar instituições financeiras em dificuldade, além de grandes subsídios ao setor produtivo, dos quais o respaldo dado pelo Estado americano às montadoras de autos é emblemático.
Para além das considerações contemporâneas, um exercício útil é recuar no tempo, o que possibilita explicitar a força da relação simbiótica existente entre o Estado e os capitalistas privados. Além disso, quando olhamos a dinâmica histórica sistêmica, podemos em função de nos atermos a uma perspectiva de longo ou longuíssimo prazo – e conseqüentemente negligenciarmos as trepidações da superfície e a simples enumeração dos eventos – perceber que, historicamente, o processo de mercantilização das interações sociais não tem nada de natural (conforme, por exemplo, a “propensão natural para a troca”, de Adam Smith).
Relembrar as realidades históricas é essencial. Por exemplo, o surgimento do moderno mercado mundial a partir do ocidente europeu envolveu: o controle militar externo de regiões pré-capitalistas e rotas comerciais, tanto para o fornecimento de matérias-primas e alimentos, quanto como escoadouro de parte da produção metropolitana; Já o advento do mercado moderno, inicialmente no noroeste europeu, supôs a proletarização forçada de produtores diretos, por meio da sua separação da propriedade dos meios de produção, um longo processo no qual o papel da força política organizada também foi central e determinante (Cf. Bastos, P. P. Z, 2001). Estes foram pontos centrais da crítica seminal feita por K. Marx (1867) à economia política clássica, fazendo várias sugestões originais sobre a gênese política do capitalismo no famoso capítulo intitulado “A assim chamada acumulação primitiva”. Investigação que posteriormente, vários historiadores e economistas, tais como M. Dobb (1945), R. Brenner (1974) e Edward P. Thompson (1991) aprofundaram e qualificaram.
Agora, o corolário hodierno desta dinâmica – e é isto que configura a chamada super-confiança – é formado pela expectativa de que não pode haver problemas sérios hoje, pois o mercado sempre toma conta de tudo, mesmo que por vezes despenque “inesperadamente”. Depois, em virtude da sua ‘eficiência’ alocativa e invariavelmente em decorrência de sua relação mutuamente benéfica com o Estado capitalista, sempre subirá outra vez. A expectativa é que isso também ocorrerá dessa vez. Em virtude de tal esperança e dos arranjos macroeconômicos ‘contra cíclicos’ postos em marcha, a crise irrompida recentemente nos EUA, embora tenha produzido no mundo maior destruição de capital e emprego do que a Grande Depressão dos anos 1930, já está sendo considerada declinante ou encerrada por muitos economistas e porta-vozes, principalmente na área capitalista periférica.
Considerações e declarações formam, em última instância, a passagem da falta de confiança à super confiança. Movimento que dá os contornos mais definidos ao que poderíamos chamar de uma verdadeira aula de capitalismo: os poderosos agentes privados em dificuldade são respaldados pela mão generosa do Estado, recheada de dinheiro dos contribuintes. Ou seja, o governo joga para a massa de contribuintes do fisco os prejuízos dos capitalistas com a crise, além de dar, a estes últimos, amplos poderes para rebaixar seus custos salariais,processo – diga-se de passagem – em que a Alemanha tem sido exemplar, ao revogar diversos direitos trabalhistas e assim baratear o custo de sua mão-de-obra. Depois, para evitar o natural efeito depressivo de tais medidas, subsidiam o consumo, principalmente sob a forma de crédito. Obtêm assim uma atenuação do processo recessivo e até uma retomada do crescimento econômico, mas de um tipo de crescimento que acumula contradições portadoras de riscos futuros.
Como disse, os ensinamentos do passado são fundamentais. Em decorrência deles, cabe notarmos que o capital obedece uma espécie de “lei natural” para se reerguer das crises, talvez esta seja a lei que deveria vigorar em detrimento, por exemplo, de diversos outros aspectos que as proposições liberais procuram naturalizar. O modo “natural” de sair das crises consiste na destruição de grande massa de capital fictício e de capital-mercadoria invendável, acompanhada de um período de grande penúria dos trabalhadores, e cujo resultado final é a concentração do capital restante nas mãos dos grupos capitalistas sobreviventes. Desta vez assistimos apenas aos primeiros passos desse processo. Por um lado, ocorreu uma volumosa destruição de capital fictício e, por outro, deu-se uma ampla eliminação de postos de trabalho. Logo em seguida, porém, foram implementadas medidas de contenção dos efeitos imediatos do excesso de capital e de capacidade produtiva, o que resultou na preservação de grande volume de capital ocioso, mantendo em pé os direitos do capital financeiro sobre o produto social futuro. (Cf. Letizia, V, 2009).
O que está acontecendo, em última análise, é uma solução financeira imediata para a crise. A circulação do capital financeiro internacional foi reanimada, embora sem reerguê-la ao nível anterior – cerca de 40 trilhões de dólares em ações negociadas no final de 2009, contra 60 trilhões em 2008. Tal solução, entretanto, cria uma nova “normalidade” capitalista, acentuadamente mais nociva, pois é ainda mais dependente de subsídios e de privilégios garantidos pelo Estado.
O resultado dessa situação é que a crise não explode, mas também não para, tendendo a se espalhar lentamente e a prolongar-se indefinidamente. Isto porque o empréstimo de última instância, ao transformar valor perdido por efeito da superprodução de mercadorias em valor financeiro garantido com receita fiscal, fornece uma tábua de salvação a capitais que buscam apenas preservar-se, mas que estão em retirada do processo reprodutivo. E o capital ocioso preservado, com sua pressão sobre o capital operante, tende a manter baixa a taxa geral de lucro – já rebaixada pela crise –, dificultando a saída para um novo ciclo de expansão capitalista (Cf. Letizia, V. 2009).O problema decorrente disso está em ser uma solução falsa, porque o capital ocioso não eliminado continua travando o funcionamento do sistema, tornando-o mais instável.
Temos aí, novamente, a verdadeira ação alocativa da grande mão visível, que cresce em função de sua própria ineficiência. E esta é uma das importantes lições que podemos tirar da hodierna crise: a mão se torna mais ineficiente, pois os problemas não são resolvidos, mas somente adiados, o que ocorre é uma fuga para frente. A pergunta que ocupa a cabeça de muitos é: até quando a fuga poderá operar?
Gabriel A. A. Rossini é professor do Departamento de Economia PUC-SP e do CSSA Mackenzie.