O multilateralismo em questão
O G20, que se reuniu em Pittsburgh, Estados Unidos, nos dias 24 e 25 de setembro, ambiciona ser a nova diretoria do planeta. Contudo, ele não dispõe nem da legitimidade necessária para tanto, nem de um projeto alternativo para um modelo de organização mundial que fracassou
Quando será que mais um “G” vai surgir para somar-se a uma lista já bastante extensa, a qual, por enquanto, vai do G2 ao G192, se nela incluirmos a Assembleia Geral das Nações Unidas? Essa proliferação é recente. De fato, depois do desaparecimento da União Soviética, os únicos agrupamentos internacionais realmente destacados e dotados deste prefixo por comodidade jornalística, eram, de um lado, o G77 e, de outro, o G7 que se transformaria no G8 (ver glossário ao lado).
Em teoria, as coisas eram muito simples: diante do grupo dos numerosos países chamados de “em desenvolvimento”, havia aquele integrado por alguns Estados que, sob o comando de Washington e do seu braço armado – a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – tomavam as decisões relativas às mais importantes questões mundiais, sem disporem para tanto de mandato algum, a não ser aquele que atribuíam a si mesmos.
Autopromovido a guardião de uma ordem econômica que se confunde com os interesses das grandes companhias transnacionais e das finanças globalizadas, o G8 acabou concentrando contra ele uma hostilidade generalizada. Não apenas aquela, refreada, dos governos que, por mais que participassem da sua lógica política, dele permaneciam excluídos, mas também, e, sobretudo, a revolta dos movimentos sociais e de cidadania que denunciavam a ilegitimidade desse clube dos ricos.
Em julho de 2001, em Gênova, na Itália, o confronto chegou ao auge com a violenta repressão conduzida pela polícia de Silvio Berlusconi, que acabou deixando um saldo de um morto e centenas de feridos. Oito anos mais tarde e depois de instaurada uma crise sistêmica do capitalismo, a Cúpula do G8, novamente na Itália, em julho passado, não provocou nenhuma mobilização hostil relevante. Isso porque todos sentiram, de fato, que ele já havia perdido boa parte da sua influência, e que naquela altura as grandes questões mundiais deveriam ser discutidas em um nível mais representativo. Aliás, os organizadores haviam tomado a precaução de convidar também os integrantes de outro G, o G5 (China, Índia, África do Sul, Brasil e México), o que resultou na formação de um G13 (8 + 5), que logo passou a ser o G14 com a incorporação do Egito. Isso sem contar uma reunião com os dirigentes de cinco países da África, e outra com Estados (Coreia do Sul, Austrália, Indonésia e Dinamarca) diretamente envolvidos nas negociações que desembocarão na Conferência das Nações Unidas sobre a Alteração Climática, a qual deverá ser realizada em Copenhague, de 7 a 18 de dezembro deste ano.
Nesse meio-tempo, de 30 de novembro a 2 de dezembro, será realizada em Genebra a 7ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), uma espécie de G153, cuja ambição é conseguir concluir, em 2010, o ciclo de negociações comerciais iniciado em 2001 em Doha (Qatar).
Uma vez que o declínio, e até mesmo, em médio prazo, o desaparecimento do G8 parecem ser inevitáveis, dois novos G estão decididos a se apoderar do seu papel de diretoria mundial: o G20 e, de maneira furtiva, o seu núcleo duro, que é o G2. O G20 obedece a uma estratégia de cooptação do G8: preservar contra ventos e marés o modelo neoliberal na escala planetária, mudando seu aspecto por meio de nova roupagem e fazendo com que ele também seja prestigiado por uma dúzia de outros países.
As três primeiras Cúpulas do G20, realizadas em nível de chefes de Estado e de governo (Washington, em novembro de 2008; Londres, em abril de 2009; e Pittsburgh nos dias 24 e 25 de setembro) foram encerradas com extensas declarações a respeito dos meios necessários para jugular a crise, mas sem tomar qualquer medida que exigisse verdadeiros sacrifícios.
O G2 (Estados Unidos e China) é uma denominação jornalística criada mais recentemente. Enquanto parece ser excessivo no momento falar numa “Chinamérica”1, não se deve, contudo, subestimar o alcance da mudança de nome dos encontros bianuais entre Washington e Pequim. Até à recente sessão realizada nos dias 27 e 28 de julho de 2009, na capital americana, tratava-se de um “diálogo econômico estratégico”. Daqui para a frente, trata-se de um diálogo “econômico e estratégico”. Isso explica a presença, ao lado do vice-primeiro-ministro chinês, Wang Qisham, não somente do secretário do Tesouro, Timothy Geithner, como também da secretária de Estado, Hillary Clinton. O acréscimo deste “e” introduz uma diferença considerável: a totalidade dos dossiês mundiais passa a ser tratada pelos dois gigantes em sua mesa de negociações. E se este G2 chegar a um acordo, por via de regra obterá a aprovação do G20 sem grandes dificuldades.
Tudo isso para grande irritação das superestruturas da União Europeia (UE), que fazem questão que este G2 se transforme em G3… O que seria justificado, sem dúvida alguma, pelo peso econômico da União, mas é impedido pela sua incapacidade estrutural de se expressar politicamente com uma única voz. Aliás, os seus principais Estados-membros se mostram plenamente satisfeitos por pertencer ao G8 e ao G20. Eles não têm vontade alguma de complicar a vida com a eventualidade de ter de levar em conta em suas decisões os pareceres da Estônia, da República Tcheca, da Polônia etc., as quais certamente valorizariam as opções atlantistas, conforme sublinhava recentemente o secretário de Estado alemão do interior, o democrata-cristão Peter Altmaier:“Os países recém-incorporados à União Europeia escolheram esse caminho por razões econômicas, mas eles tomam suas decisões políticas depois de consultar os americanos2”.
Se existe um ponto de unanimidade entre os membros dos G2, 8 e 20, é mesmo a vontade de deixar de lado a mais numerosa das configurações, e a única plenamente legítima em nível internacional: o G192, ou seja, os 192 Estados-membros da ONU.
Tivemos recentemente uma demonstração espetacular deste fato, com a sabotagem organizada contra a iniciativa do presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, o padre Miguel d’Escoto, de reunir em junho de 2009, em Nova York, uma Conferência da ONU sobre a crise financeira e econômica mundial e seu impacto sobre o desenvolvimento3. Portanto, um encontro que visava discutir uma questão central, e que, além do mais, havia sido preparado por um relatório elaborado por uma comissão presidida pelo Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz. Essa iniciativa deveria suscitar o interesse redobrado dos chefes de Estado e de governo, em primeiro lugar os do G20, que haviam sido convidados a participar…
Ora, apesar do adiamento de três semanas da Conferência, destinado a garantir sua presença, nenhum desses dirigentes conseguiu incluir esse compromisso em sua agenda. Em particular, Nicolas Sarkozy que, apesar disso, atravessou o Atlântico algumas semanas mais tarde para assistir, em Nova York, ao show da sua mulher, Carla Bruni. Os grandes veículos de comunicação participaram, obviamente, dessa conspiração do silêncio. Tudo vem se desenrolando como se essa Conferência não tivesse acontecido.
Embora se mantivesse dentro dos limites de um liberalismo bastante moderado, o relatório Stiglitz, que esteve em parte na origem desse boicote, cometera, entre outros, o crime de apontar “a crescente disparidade das rendas na maior parte dos países” como uma das causas principais da crise. Assim, estava colocada a questão tabu: a da explosão das desigualdades, em primeiro lugar nos Estados Unidos, um país que se situa no epicentro de um terremoto cujos mecanismos já foram muito bem descritos4.
Esses mecanismos podem ser resumidos da seguinte forma: foi a estagnação ou a queda da renda obtida com o trabalho – a “deflação salarial” – ocorrida nesse país, combinada à necessidade política de nele manter o crescimento a qualquer custo, que provocou o recurso maciço ao endividamento das famílias, entre outros, para a compra de moradias. Por efeito da “securitização” dos créditos hipotecários (subprimes), assistiu-se à disseminação, pelo mundo afora, de ativos dos quais os estabelecimentos financeiros conheciam de antemão a “toxicidade”
Fogueira neoliberal
Sabemos o que aconteceu então: o estouro da bolha imobiliária; a falência dos bancos mais expostos, que mais tarde seriam salvos pelo contribuinte; a contaminação das finanças mundiais como um todo, e a da economia real – muito particularmente nos países que haviam adotado o “modelo” americano (Espanha, Irlanda, Reino Unido); a recessão; a disparada do desemprego; os planos de recuperação etc.
Se a centelha que deu origem ao incêndio da crise pode ser atribuída aos subprimes, enquanto os banqueiros e os traders5 se comportaram – e seguem se comportando – como piromaníacos, é preciso investigar em esferas mais elevadas para compreender as razões profundas do abrasamento generalizado. Este não se deve apenas a comportamentos individuais, por mais escandalosos que sejam, mas sim aos fundamentos ideológicos, políticos e regulamentares que propiciaram, e até mesmo incentivaram, sua propagação, e que são enquadrados pelos dois pilares do neoliberalismo: o livre comércio e a liberdade de circulação dos capitais.
O primeiro, por meio da exploração, sobretudo por parte das multinacionais, dos diferenciais de normas sociais, fiscais e ecológicas existentes entre países (inclusive no contexto da União Europeia) e regiões do mundo; e também por meio da transferência de unidades de produção dos países desenvolvidos para os países de baixos salários, num processo que induz pressão permanente para baixo da remuneração do trabalho. A segunda, em particular, por intermédio dos paraísos fiscais, como vetores de propagação do incêndio.
Apesar dessas evidências, nem o G8, nem o G20, e nem mesmo o relatório Stiglitz se arriscam a avançar o sinal vermelho do questionamento desses dois pilares ideológicos. Muito pelo contrário, eles os apresentam como fatores capazes de propiciar saídas em relação à crise! Assim, eles se manifestam a favor de novos acordos de liberalização a ser celebrados durante a próxima Conferência Ministerial da OMC que, entre outras consequências nefastas, resultariam num aumento do volume das transações comerciais e, portanto, do transporte de mercadorias, acarretando um crescimento das emissões de gases de efeito estufa6. Além disso, no que vem a ser uma atitude totalmente esquizofrênica, eles se pronunciam simultaneamente a favor do sucesso da Conferência de Copenhague sobre as Mudanças Climáticas, cujo objetivo é precisamente o de limitar essas mesmas emissões…
Com isso, podemos medir o grau de incoerência de dirigentes incapazes de avaliar e enfrentar globalmente problemas interdependentes. Ao longo de décadas, sob a tutela vigilante das finanças internacionais e dos grandes grupos industriais, suas ações foram norteadas pela bússola política da utopia de um mercado autorregulado pela “concorrência livre e não deturpada” (Tratado de Lisboa), mesmo que eles não hesitassem em desrespeitar suas regras quando lhes convinha. Esses dirigentes constatam que, em sua forma atual, o capitalismo esgotou sua força propulsiva e poderia até mesmo se autodestruir. Em vez de tentarem elaborar outro modelo, que seria necessariamente mais igualitário, mais solidário e, sobretudo, menos nocivo para a biosfera, eles se empenham em mantê-lo funcionando.
Supondo – o que seria uma hipótese audaciosa – que eles tenham vontade e capacidade para questionar o sistema vigente, convenhamos que a sua tarefa não seria nem um pouco fácil, pois as pressões exercidas sobre eles para nada mudar são gigantescas. Dessa forma, a ciranda incessante dos G pode ser comparada a um torneio disputado por diversos times de futebol, nos quais o número de jogadores varia constantemente, mas cujo objetivo em campo é sempre o mesmo, ou seja, defender com unhas e dentes sua meta e seu gol, que simbolizam a ideologia neoliberal.
Apenas o G192, a Assembleia Geral das Nações Unidas, poderia permitir alguma concepção alternativa, a única que, em nível governamental, rompe com os padrões dos outros G: trata-se da Aliança Bolivariana para os Povos da nossa América (Alba). Ainda que o conjunto dos nove Estados que a integram possua uma dimensão modesta na escala mundial, a Alba já conseguiu se tornar um polo de referência, e até mesmo uma atração nas Américas. Ao que tudo indica, para evitar todo o contágio nos outros continentes, os neoliberais de linha dura irão articular as coisas, de tal forma, que as partidas a serem jogadas pela Alba sejam assistidas pelo mínimo possível de espectadores e torcedores…
*Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.