O mundo de Lygia Clark como projeto para o planeta
A mostra da Pinacoteca nos propõe uma questão simples, porém dramática: ainda temos tempo de limitar os danos que causamos?
Talvez estejamos mais habituados a pensar que o corpo é um tema típico da pintura, da escultura ou da fotografia. Da mesma forma, talvez pensemos que a relação entre corpo e espaço pertence às próprias artes nas suas relações com a arquitetura. Provavelmente, porém, estamos menos habituados a pensar que o urbanismo tem a ver tanto com corpos como com espaços; que a natureza corpórea constitui elementos básicos que permitem a construção de habilidades e prerrogativas peculiares ao ser humano, e que tal gênese aparece na estrutura fundamental das capacidades intelectuais humanas. Estas, indissociavelmente ligadas às habilidades motoras que determinam os acontecimentos interindividuais sobre os quais o conhecimento se constrói como acontecimento sociocultural.
Mais do que celebrar o centenário da artista (1920-1988), ocorrido durante o período pandêmico, o subtítulo da mostra “Lygia Clark: Projeto para um planeta” esboça, imediatamente, uma estratégia que passa pelo conhecimento do corpo para a regeneração do estado de saúde da Terra. Como parte da mostra, O mundo de Lygia Clark (1973), filme dirigido por Eduardo Clark, filho de Lygia, revela a pesquisa da artista para acionar as “memórias do corpo” individuais e coletivas, liberando-as das marcas do conservadorismo e da repressão. Corpos que são, ao mesmo tempo (e não sem alguma ambiguidade ou mudança repentina de significado), objetos e sujeitos, às vezes pessoas e outras vezes massa física, indivíduos e cidadãos abstratos ou entidades únicas e multidões.
Não é preciso voltar a Leonardo da Vinci para lembrar como a prática artística relacionada ao corpo humano também foi instrumento de conhecimento científico e vice-versa. E que, tanto o desenvolvimento quanto a formação do ser humano estão vinculados a duas dimensões essenciais, descritivas da própria natureza humana: dotação biológica dada pelo corpo, no qual residem os elementos de restrição da experiência, e cultura, como uma riqueza de ferramentas de interpretação e organização da realidade. Assim, as preocupações da natureza humana são caracterizadas, por um lado, pelo conjunto formado por disposições genéticas, processos evolutivos internos e desenvolvimento pessoal e, por outro, pela capacidade exclusiva de construir significados através da relação com o contexto e com os elementos figurativos e construtivos das formas de pensar e agir do indivíduo.
A ideia principal sobre a qual se expande essa perspectiva de desenvolvimento e conhecimento define, portanto, a realidade como produto de processos transacionais entre sujeito e ambiente mediados pela corporeidade. Nesse sentido, a realidade não é algo objetivo ou externo, mas sim construído interativamente através do encontro entre corpos e sujeitos que, agindo em ambientes compostos por objetos, relações, emoções, símbolos e significados, constroem conhecimento compartilhado e uma visão da realidade.
Segundo essa ideia, o que vivemos e experimentamos, conhecemos e sabemos, e que é necessariamente construído a partir de nossos próprios blocos construtivos, é explicado apenas com base no nosso tipo de construção. Logo, a relação dos indivíduos com a realidade é uma relação em que os sujeitos são construtores ativos de métodos e regras capazes de organizar e definir a experiência e o mundo em que vivem. Nessa dinâmica, a mediação da corporeidade desempenha, portanto, um papel prioritário, uma vez que essa construção/internalização de modelos da realidade ocorre, predominantemente, dentro das relações que o indivíduo, inserido no seu contexto social e cultural, cria através do corpo. Em outras palavras, é na corporeidade que reside a possibilidade da troca de sinais, comportamentos e formas de expressão que descrevem a base social dos processos de construção da realidade individual e coletiva.
Na base dessa problemática, há uma questão inerente ao paradigma da cidade: a dimensão do tempo e do espaço na era capitalista, um período no qual, para alguns estudiosos, perdemos a concepção de memória, uma vez que já não sabemos contextualizar o espaço no tempo. Uma falha que só se recompõe se nos convencermos de que “o primado da corporeidade” (de “fazer corpo”) exprime-se na afirmação da pluralidade das diferenças, na explosão do corpo recomposto no espaço: não sobre um lençol liso, sobre uma superfície branca, mas dentro da terrível imperfeição que nos une a outros corpos com os quais partilhamos o mesmo espaço.
Ora, esse espaço é ainda substancialmente abstrato se o entendermos na forma de ruas, praças, avenidas, parques, jardins, paisagens etc. Um espaço com o qual temos, no entanto, um vínculo inseparável que diz muito sobre nossa sociedade, nossa forma de habitar o mundo e de conceber a vida comum, sobre nossa ideia de individual e de coletivo, bem como de liberdade e democracia. Acima de tudo, aquilo que, para o urbanismo (e para outras ciências sociais) é, e provavelmente sempre permanecerá, elusivo, isto é: aquela “dimensão diferente: material, orgânica, afetiva”, típica da condição humana.
Enquanto organizações internacionais e empresas estudam, implementam estratégias e estabelecem prazos para reduzir as emissões de carbono e tornar as respectivas atividades cada vez mais sustentáveis, essa mostra, que ocupa sete galerias da Pina Luz com mais de 150 obras, nos leva à reflexão, muitas vezes esquecida, de que a verdadeira mudança pode vir de práticas e ações diárias que, ao longo do tempo, podem salvaguardar o ambiente e o planeta que nos acolhe.
Nesse sentido, a mostra nos propõe uma questão simples, porém dramática: ainda temos tempo de, pelo menos, limitar os danos que causamos? Um Projeto para o Planeta passa por uma vasta gama de opções tecnológicas, ecológicas e políticas que poderiam nos ajudar a reorganizar um planeta, no qual todas as espécies poderiam coexistir pacificamente: “com corpos próprios, por vezes bem reconhecíveis, definidos, pesados, por vezes esboçados por perfis, palavras, impressões, expressão de significados ambíguos, abertos, contaminados”. Corpos que são desejos e memórias de espaços, de práticas, de outros corpos, inseparáveis do espaço que reivindicam, ocupam, domesticam, conquistam, abandonam.
Como explicitado na síntese da mostra em questão, “Lygia Clark (1920-1988) é um dos mais importantes nomes da arte brasileira contemporânea, que foi responsável por ampliar linguagens, estabelecer vínculos com as questões socioculturais e engajar todas as pessoas, sendo artistas ou não, na experiência transformadora de criar”.
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (2003) e professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus TPTI (Techiniques, Patrimoine, Territoire de l’Industrie: Histoire, Valorisation, Didactique) da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).