O necrogoverno Bolsonaro isolado da ciência e do mundo
Essa ausência de liderança e de respeito com a vida do presidente da República tem nos colocado no caminho do caos, da desconfiança generalizada e tem nos feito trocar o isolamento social pelo o isolamento internacional
Duas coisas destacam o Brasil no atual momento de enfrentamento à pandemia: sermos o único país no mundo com mais de 100 milhões de habitantes que tem o desafio e compromisso de oferecer um Sistema Único de Saúde (SUS) de qualidade para todos. O SUS, mesmo diante de diversos ataques, resiste com seus trabalhadores e trabalhadoras evitando o caos diuturnamente. A segunda característica é que também somos um dos países em que o principal governante, Jair Bolsonaro, trabalha contra a vida e utiliza todos os dias de seu poder político para boicotar iniciativas que possam defender a saúde dos brasileiros, além de tentar empurrar para debaixo do tapete os mortos pela Covid-19.
Bolsonaro apresenta e reitera diariamente seu projeto genocida em relação a pandemia de coronavírus. O governo possui a estratégia clara para o enfrentamento dessa crise: a defesa da morte e da divisão do país. O Brasil está entre os países que apresentam o maior número de casos no mundo e Bolsonaro mantém seu projeto de desprezo à vida mesmo com um grande crescimento de casos.
Em maio de 2020, o número de casos da Covid-19 no Brasil teve um assustador salto de 444% e o de óbitos cresceu mais de 350%.
Atualmente, em alguns dias, alcançamos a triste marca de país com o maior número diário de casos e mortes por milhão de habitantes, escancarando a ausência de coordenação e de responsabilidade com a vida que se concentra no Palácio do Planalto.
O Brasil está hoje entre os três países com o maior número absoluto de casos e de mortes por Covid-19, somos o 131º país no mundo em número de realização de testes por um milhão de habitantes, indicador que escancara a incompetência do governo federal em nos preparar para enfrentar essa pandemia com responsabilidade e de modo precoce.
Junto com ex-ministros da Saúde denunciamos oficialmente na Organização dos Estados Americanos (OEA) e na Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) o presidente Bolsonaro pela “inobservância das recomendações sanitárias nacional e da Organização Mundial da Saúde (OMS), violação dos direitos humanos: saúde e vida, e por potencial genocídio” nas ações de enfrentamento da pandemia de coronavírus no Brasil.
Parte de relatório divulgado pela ONU aponta como atitude responsável pelas mortes o fato de ter mantido o congelamento dos investimentos da área da saúde determinado pela Emenda Constitucional 95 – que inclusive foi votada a favor por Bolsonaro quando era deputado e retirou mais de R$ 22 bilhões da saúde – e o fato de não respeitar as diretrizes das autoridades sanitárias.
Além de não coordenar a resposta do país a esta pandemia, o presidente Bolsonaro sussurra em conchavos com o presidente Trump e mostra um interesse sórdido de fazer do Brasil depósito de medicamentos não utilizados pelos Estados Unidos, politizando o debate da cloroquina em vez de aceitar que os periódicos científicos nos tragam as respostas sobre a utilização do medicamento.
Destaca-se que é importante sim um debate amplo e sincero sobre tratamentos farmacológicos para o combate à Covid-19, principalmente por meio de uma agenda sólida de revisão normativa que permita ao Brasil o licenciamento compulsório de qualquer pedido de patente ou patente já existente em insumos que tenham relação ao enfrentamento da pandemia, durante o período que vigorar o estado de emergência.
Esse inclusive é o eixo central do Projeto de Lei 1.462/2020, que apresentamos em conjunto com diversos congressistas. Elaborado por iniciativa de importantes setores da sociedade civil, o PL busca a organização normativa do país, para trazer segurança jurídica à população no que diz respeito a intervenções farmacológicas eficazes no combate à pandemia.
No entanto, no lugar de segurança, o governo aposta na insegurança. Existem diversos relatos de pessoas que agem com desconfiança da crescente evolução do número de casos e óbitos, e em um negacionismo inspirado diretamente no presidente da República e na indústria das fake news que o cerca, transformando temporariamente a denominação do Gabinete do Ódio por Gabinete da Morte.
Essa ausência de liderança e de respeito com a vida do presidente da República tem nos colocado no caminho do caos, da desconfiança generalizada e tem nos feito trocar o isolamento social pelo o isolamento internacional.
Bolsonaro destruiu o SUS e seus projetos estruturantes em diversos pontos. Ele acabou com o Programa Mais Médicos, o encerrou a cooperação interfederativa com governadores e prefeitos, desmontou a política externa no Brasil e o papel que temos com cooperações internacionais e organismos multilaterais com demais países, desmantelou a tradição do SUS de sempre seguir especialistas na suas decisões, inclusive na indicações de medicamentos, e agora dizima o Ministério da Saúde com uma ocupação militar.
A OMS reuniu recentemente diversos líderes mundiais – o Brasil não foi convidado – para a criação de uma aliança mundial em prol do desenvolvimento e distribuição de vacinas, medicamentos e iniciativas voltadas ao enfrentamento da Covid-19. Bolsonaro, diante da ausência do país na mesa de negociação, em vez de cobrar a participação dos membros do seu governo em uma iniciativa tão importante, utiliza de expedientes para ameaçar a participação do Brasil na OMS ao sugerir um rompimento unilateral com a agência.
O Brasil ficou fora da mesa de acesso e essa atitude tem impactos importantes para a população brasileira. O país não vai conseguir garantir o acesso o mais rápido possível a vacina e a medicamentos que possam surgir. Como exemplo desse impacto lembro da pandemia do H1N1 em 2009. O Brasil fazia parte da mesa a ponto de, um ano depois, termos sido o país que mais vacinou pelo sistema público de saúde. Foram mais de 100 milhões de pessoas vacinadas. Em 2011, quando era ministro da Saúde, o Brasil já tinha a soberania da tecnologia da produção da vacina, podendo ampliar o acesso a mais pessoas.
O Brasil sempre foi um líder global na saúde e representante dos países de renda média. Essa ausência nessa mesa de negociação, além de afligir a população brasileira, preocupa o conjunto dos países de renda média. Nas Américas, tirando o Haiti, todos os países são de renda média, ou seja, todos estariam excluídos dos fundos públicos organizados pela OMS e pelas indústrias privadas do acesso aos medicamentos.
Nesse ponto reside um dos principais riscos no que diz respeito ao enfrentamento da pandemia em nosso país: o isolamento internacional de iniciativas que podem resultar em imunidade, e por consequência, em vidas salvas.
Não haverá saída para essa crise que não seja por meio da cooperação global entre todos os setores e países, e uma coordenação dos governos derrubando o mito da dicotomia entre vidas e economia, já que a economia existe para servir às vidas e não o contrário.
Mais recentemente, a atitude do governo federal em esconder dados relacionados à Covid-19 serviu mais uma vez para macular a história do Brasil. A sociedade brasileira – que desde a Lei da Transparência tem buscado maior publicização dos dados e atitudes do governo e caminha para que os poderes públicos sejam abertos e prestem contas aos cidadãos – teve um forte revés em uma atitude que procura colocar histórias e vidas em baixo do tapete, ignorando as mortes e não as honrando com atitudes que possam servir para evitar novas.
Ademais, internacionalmente, tal atitude é vista com perplexidade e desprezo, já que se observa que parece não existir limites para o autoritarismo do Bolsonaro em fazer do governo um agente de ilusionismo ao tentar alterar a realidade com a manipulação de dados em meio a uma pandemia.
Enfrentamos dois vírus neste momento: o Sars-Cov-2, principal desafio da saúde pública e de toda sociedade neste século; e o da ignorância presidencial, nosso maior desafio político e governamental para proteger os brasileiros.
O projeto neoliberal submisso de Bolsonaro o impede de ver alternativas diferentes das propagadas pelo Gabinete da Morte. Mesmo com certa relutância, os Estados Unidos, governados por seu líder e ídolo Trump, logo no início da pandemia publicaram o “Defense Production Act” (Lei da Produção para a Defesa Nacional), obrigando fábricas a reorganizarem seu parque industrial para a produção de insumos importantes para o combate da Covid-19.
Já no Brasil, apesar da iniciativa de setores industriais, o país tem se omitido do debate da reconversão industrial para utilizar a capacidade já instalada (e atualmente ociosa) de nossos setores econômicos para o combate conjunto e coordenado da pandemia.
Aliás, isso não tem sido feito nem com os próprios equipamentos públicos. Diferente de outros países, diversos equipamentos e serviços do Estado que deveriam ser utilizados no acolhimento da população, como servir de acomodação temporária em comunidades de alta vulnerabilidade, estão fechados sem orientação estatal do que fazer.
Combater a Covid-19 e o governo Bolsonaro ao mesmo tempo são dois dos principais desafios de nossa história. Não venceremos o primeiro sem que tenhamos logrado êxito no segundo. Bolsonaro é a antítese da vida, é o simbolismo de um necroprojeto neoliberal e submisso, que organiza o país em direção contrária à proteção da vida de nossas famílias em troca de proteger exclusivamente a dele.
Alexandre Padilha é médico infectologista, ex-ministro da Saúde e deputado federal (PT/SP).