O ‘olé’ do crédito hipotecário
Há alguns anos a Espanha experimentou um boom imobiliário. Porém, os créditos concedidos na época foram superestimados e ultrapassavam o limite extremo das possibilidades de pagamento. Não demorou muito para que um grande número de pessoas não conseguisse honrar a hipoteca da casa própria
A crise não parece assombrar as ruas de Madri, ainda que a Espanha seja um dos países mais atingidos pela recessão da economia mundial. A vida continua. Claro, os trabalhadores demitidos e aqueles temporários que não tiveram seus contratos renovados manifestam sua cólera de vez em quando. Também já não se vê mais tanta gente nos bares na hora do happy hour e a noite madrilenha ficou menos agitada. Além disso, nos supermercados, todas as vendas registraram uma queda de 70%. “As únicas que aumentaram foram as dos produtos mais em conta”, afirma o funcionário de um centro comercial.
Os letreiros com os dizeres “Vende-se”, agora mais numerosos nas varandas dos prédios, sinalizam também algumas mudanças. E basta dar uma olhada nos anúncios de qualquer agência imobiliária para conferir a derrubada dos preços no setor. Em Aluche, um bairro popular na periferia, um apartamento de 65 m2 situado no terceiro andar de um prédio com elevador era vendido a 240 mil euros em 2006. Atualmente, moradias desse tipo podem ser adquiridas por 160 ou 170 mil euros.
Porém, toda essa facilidade conduz a um endividamento de longa duração. Entre 2004 e 2007, 5 milhões de crediários foram autorizados para a compra de moradias – mediante garantia hipotecária, claro. Paralelamente, proliferaram os empréstimos bancários para fins de consumo, o uso de cartões de crédito e os créditos rápidos concedidos por financeiras, cujas taxas de juros podem alcançar 25%. Empresas privadas especializadas na recompra dos créditos floresceram a tal ponto que certos empréstimos deixaram de estar associados à aquisição de um bem concreto, tornando-se um produto de consumo por si só. Com isso, tornou-se corriqueiro receber panfletos de propaganda ou chamadas telefônicas anunciando que quantias no valor de vários milhares de euros “estão à sua disposição” e que você pode gastá-las “como bem quiser”.
Como chegamos a essa situação? Para entender, é preciso analisar mais detalhadamente o papel das agências imobiliárias1. Em quaisquer circunstâncias, elas sempre afirmam que “este é o melhor momento para comprar”. Em seguida, oferecem um “estudo financeiro”, gratuito e sem compromisso, destinado a avaliar o montante com o qual o futuro comprador poderá arcar e, em função disso, o bem que ele conseguirá adquirir. Depois, a própria imobiliária negocia um crédito junto ao banco. No cálculo, são levados em conta o salário, a poupança e as garantias familiares. O valor final do crédito deve também permitir cobrir as despesas adicionais com os impostos, os atos celebrados em cartórios e, obviamente, as comissões devidas aos intermediários. O pagamento é dividido para ser efetuado em 30, 35 ou 40 anos, cuidando-se para que as mensalidades não ultrapassem 40% da renda. Ainda assim, os credores sempre deixam em aberto a possibilidade de aumentá-las um pouco.
Na época do boom imobiliário, houve uma multiplicação de intermediários e as avaliações da capacidade de compra foram superestimadas. Assim, os créditos eram concedidos no limite extremo das possibilidades de pagamento. Não é surpreendente que, pouco tempo depois, um grande número de pessoas que começaram a pagar hipotecas se revelasse incapaz de honrá-las.
Exemplo ilustrativo
Ester e Ángel decidiram comprar uma casa própria em 20042. “Não me ocorreu recorrer ao aluguel. Nem sequer pensei nisso”, reconhece Ester. Vale lembrar que a Espanha enfrenta uma penúria de moradias para alugar, uma vez que as autoridades sempre incentivaram o acesso à propriedade por meio de vantagens fiscais e de facilidades de crédito. A ideia de que “pagar um aluguel equivale a jogar dinheiro fora” era uma evidência praticamente inquestionável para eles. “Nós queríamos um lar que fosse nosso”, explica Ester. “Só que ninguém se dava conta que isso poderia ser uma loucura. Todo mundo embarcava nessa. Todos os nossos amigos compraram uma casa. Eu me lembro de ter dito ao meu marido: ‘Ou a gente faz isso agora ou então deixaremos passar a oportunidade, porque vai acabar ficando cada vez mais caro’.”
Ambos trabalhavam em Madri, mas eles optaram por um apartamento com quatro cômodos de 64 m2 que lhes foi apresentado por uma agência em Valdemoro e que custava 165 mil euros. O casal contraiu um crédito pessoal destinado a pagar a entrada de 9 mil euros. Eles acreditavam que seria possível reembolsá-lo rapidamente por conta da diferença entre a “avaliação” e o preço real da moradia. Apressados, assinaram a escritura sem verificar previamente os documentos relativos à compra, apesar de terem esse direito. Várias alterações de última hora modificaram as condições do empréstimo, um detalhe do qual Ester se lembraria mais tarde com amargura: “Tudo estava pronto. Os meus pais, que eram os fiadores, e os proprietários do apartamento estavam presentes. Nós não queríamos perder o apartamento ou o dinheiro da entrada, pois a data limite para a venda era aquele dia. Mas agora eu me pergunto: e se eu tivesse declarado perante toda essa gente trajando roupas tão elegantes que eu não assinaria nada sem antes ler? É o que eu deveria ter feito. Mas onde estava a força, onde estava a clarividência que eu precisava para tomar tal atitude? Naquele momento, a minha obsessão era comprar um apartamento. Eu estava completamente iludida pelo fato de que ele já era nosso, e que só precisava assinar”.
Assim, eles aceitaram contrair uma hipoteca de 40 anos, mas assinando um contrato com um banco que não haviam escolhido, com uma taxa de juros levemente superior àquela que havia sido anunciada anteriormente, e por um montante de 189 mil euros… ao qual foram acrescentados os atos e as taxas que representam, geralmente, 10% do preço do apartamento, mas que, no caso de Ester e Ángel, corresponderam a 14,5%. Eles descobriram que o direito de desistência não é reconhecido pela legislação espanhola a partir do momento em que as partes estão fisicamente presentes por ocasião da assinatura do contrato. Assim como ocorre com a maioria dos casais, foi na mais completa escuridão que eles assinaram um contrato financeiro que comprometeu uma parte considerável da sua renda para o restante da sua vida. Só conseguiam se tranquilizar quando pensavam que, em última instância, sempre seria possível revender a moradia e até mesmo lucrar com isso, uma prática comum e permitida no país.
Conforme estava previsto, Ester e Ángel começaram a pagar mensalidade de 770 euros, o que representava 38% da sua renda. Um ano depois da compra, Ester foi demitida da empresa onde trabalhava como auxiliar administrativa. Naquele momento ela estava grávida e suspeitou que esse fosse o verdadeiro motivo para a sua dispensa. Mas, na Espanha, a demissão sem justa causa não é um problema para os empregadores: basta pagar dentro de um prazo de 48 horas a indenização determinada pela lei, que corresponde a 45 dias por cada ano completado na firma. A partir daquele momento e até 2008, Ester conseguiu arrumar apenas alguns empregos temporários, como ocorre com 30% dos trabalhadores espanhóis. Depois disso, ela ficou permanentemente desempregada.
O reajuste das taxas de juros durante 2008 fez com que a mensalidade passasse a 1.130 euros. Mais ou menos no mesmo momento, chegou a vez de Ángel ser demitido. Pela primeira vez, o casal não mais conseguiu pagar suas prestações. Mesmo assim, eles decidiram não pedir dinheiro para a família. “Nós pretendíamos regularizar a situação no mês seguinte e, no pior dos casos, poderíamos retirar dinheiro com o cartão de crédito para transferi-lo para a conta. Mas não deu certo e a dívida foi crescendo como bola de neve.” Então, Ángel conseguiu finalmente um novo emprego. O casal deu início a negociações para pagar os atrasados, mas logo recebeu uma intimação acompanhada de uma ameaça de penhora do apartamento. O banco lhes fez uma proposta para contrair outro crédito destinado a cobrir a dívida que pesava contra eles. Uma das cláusulas do novo contrato estipulava uma taxa de juros mínima de 3,6%. Isso ocorreu exatamente no final do ano passado, ou seja, no momento em que as taxas oficiais haviam começado a baixar e já estavam bem abaixo desse valor.
Escandalizados pelo que eles consideravam como um novo abuso, Ángel e Ester rejeitaram a oferta e seguiram pagando do jeito que dava, sem quitar as mensalidades atrasadas e esperando encontrar um meio que lhes permitisse debelar a ameaça de execução hipotecária. Em último caso, os pais de Ester estavam dispostos a contrair um crédito para ajudá-los. Aquela seria também uma maneira de evitar uma eventual penhora da fiança que eles haviam pago.
Ester calcula o montante total que terá de pagar: 370 mil euros com os juros, por um apartamento que lhe foi vendido por 165 mil. “Eu pretendia fazer outras coisas na vida”, lamenta. “Queria estudar, obter meu diploma de conclusão do segundo grau. E, na realidade, o que consegui até agora foi um apartamento e nada mais.”
Já os problemas de Victor, um homem divorciado com dois filhos, resultam tanto do aumento das taxas de juros quanto das dificuldades da sua empresa. Na qualidade de funcionário no departamento de design de uma fábrica de móveis, ele recebe um salário mensal fixo de mil euros, mais uma quantia não declarada que a empresa lhe paga e que aumenta seu ordenado de 600 a 800 euros em período de atividade normal. Ele vive e trabalha em Fuensalida, uma cidade da província de Toledo, perto de Madri. Em 2005, Victor comprou um apartamento de 115 m2 por 159 mil euros. Para adquiri-lo, ele não passou por uma agência imobiliária, mas solicitou diretamente o crédito a um banco. Cobriu as despesas da transação recorrendo à sua poupança e conseguiu obter o crédito correspondente ao valor total da “avaliação” graças a sua mãe, que se apresentou como fiadora. Na época, os aluguéis naquela região eram de cerca de 400 a 500 euros, o que equivalia praticamente ao montante da mensalidade que lhe propuseram – 521 euros – para uma hipoteca de 40 anos. “Em vez de pagar por um bem que nunca seria meu, optei pela compra de um apartamento”, conta. A taxa de juros era de 2,5% nos primeiros 12 meses.
Porém, a partir do ano seguinte, começou a incidir no cálculo da mensalidade a taxa de juros variável que rege o restante do crédito3 acrescida de um “diferencial” de 1,25%. Com isso, em 2006, por ocasião da renegociação anual, a sua mensalidade passou a valer 648 euros, subindo para 758 euros em 2007 e, finalmente, 830 euros em 2008. Na medida em que os juros têm um peso mais importante no decorrer dos primeiros anos, os aumentos das taxas provocam essas enormes variações. Paralelamente, a parte da remuneração não declarada que Victor vinha recebendo foi suprimida por completo quando a empresa começou a sofrer os efeitos da crise. A partir de então, com o mesmo salário que tinha havia três anos, ele teve de arcar com todas as suas despesas. Em maio de 2009, Victor solicitou um crédito pessoal de 12 mil euros para pagar suas várias despesas. “Quando comecei a enfrentar dificuldades de fato, passei a treinar um time de futebol de juniores depois do expediente e, nos fins de semana, tentava descolar alguns bicos, pequenas tarefas de conserto doméstico, qualquer coisa que me permitisse melhorar minha situação. Tenho também licença para dirigir caminhão em curtos trajetos, mas até agora isso não deu em nada. Todo dia saio de casa às 8 h e nunca retorno antes das 21 h. Eu não trabalho menos de 60 ou 65 horas por semana, sempre matando cachorro a grito para conseguir alguma renda. Mas, no limite, tiro dinheiro com o cartão de crédito para tapar o buraco na conta.” Isso, porém, só adia o problema até o mês seguinte.
Em vão Victor tenta modificar as condições da sua hipoteca. As respostas sempre são negativas porque o seu apartamento perdeu parte do valor inicial. “Além disso, não existe qualquer possibilidade de suspender os pagamentos! Aqui, as coisas não funcionam como nos Estados Unidos, onde é possível restituir a moradia para saldar a dívida. Na Espanha, o banco confisca a casa e, uma vez vendida num leilão, você continua devendo a diferença entre o valor do empréstimo e o da venda. Então, eles passam a cobrar dos seus fiadores, e se isso não for suficiente, eles retiram tudo o que puderem da sua conta corrente e da sua poupança”, relata.
Os migrantes sofrem ainda mais com essa situação. Cerca de 500 mil famílias não espanholas estão às voltas com hipotecas e enfrentam dificuldades para lidar com as taxas crescentes, que em seus casos parecem ainda mais abusivas. No final de 2008, 634.800 estrangeiros dos 5,2 milhões que residem na Espanha figuravam nos “registros de maus pagadores”4. As associações de consumidores que prestam assistência às pessoas confrontadas com problemas de dívida hipotecária são consultadas por uma maioria de migrantes. E não é para menos, já que eles carecem de redes sociais de apoio e têm taxas de desemprego superiores às dos autóctones – 28,4% contra 15,23%, segundo pesquisa publicada pelo Instituto Nacional de Estatísticas da Espanha no primeiro trimestre de 2009.
“A expectativa na Espanha é de uma saída da recessão muito mais lenta que aquela verificada na média dos países da zona do euro, o que pode ser explicado pela situação no setor da habitação”, declarou o comissário europeu para os assuntos econômicos e monetários, Joaquin Almunia, que prevê “um período de ajuste mais prolongado”. “Ajuste” esse que pressupõe milhares de execuções hipotecárias, a absorção pelos bancos da poupança das famílias e um aumento da precariedade do emprego e do trabalho não declarado.
*Raúl Guillén é jornalista em Madri.