O olhar da mídia francesa para a prisão de Nicolas Sarkozy
Quando comparamos o tratamento oferecido pela mídia francesa e brasileira às prisões de Nicolas Sarkozy e Luiz Inácio Lula da Silva, percebemos diferenças bastante significativas. Enquanto Lula recebeu um tratamento amplamente desfavorável dos principais veículos de comunicação brasileiros, Sarkozy recebeu uma cobertura muito menos crítica. O alinhamento do ex-presidente francês com os interesses defendidos por grandes veículos midiáticos explicaria a cobertura menos pesada dispensada a Sarkozy
A prisão de chefes de Estado ou ex-chefes de Estado é um evento que normalmente recebe destaque nos grandes grupos de mídia devido à sua singularidade. Personagens que ostentam cargos socialmente prestigiosos e de notório reconhecimento público também são, a princípio, pautas dos grandes veículos midiáticos. Nesse sentido, os episódios envolvendo a prisão dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, e de Nicolas Sarkozy, na França, provocaram comoção e alarde suficientes para captar a atenção pública e atrair a audiência para as manchetes, artigos, reportagens e editoriais dos grandes conglomerados de mídia nos dois países.
A seleção e a hegemonização dos temas simbolizam um pilar de grande valia no que tange à escolha e à forma como os assuntos são retratados, sobretudo pela grande imprensa. Os poderosos grupos midiáticos, que ainda têm forte efeito sobre a população, funcionam como agentes postulando representar a esfera pública.[1] Por essas razões, as noções de agendamento e enquadramento merecem enfoque para construir uma análise com maior precisão. A abordagem de agendamento diz respeito à prática de selecionar os assuntos que devem ser noticiados em detrimento de outros, enquanto a abordagem do enquadramento corresponde à estratégia de hegemonizar certas narrativas sobre outras. O enquadramento dos temas conduz à análise de valências, a qual está relacionada à categorização dos textos jornalísticos de acordo com seu posicionamento em relação ao objeto noticiado. Os seguintes conceitos são valores de análise de valência: favoráveis, contrários, neutros ou ambivalentes.[2]
Nicolas Paul Stéphane Sarkozy é um homem cuja trajetória política merece observações. Filho de um pai húngaro com uma mãe francesa de origem greco-judaica, titular de um diploma em Direito, aluno pouco assíduo, Sarkozy estudou no renomado Institut d’Études Politiques de Paris (Science Po) embora nunca tenha terminado seus estudos naquela instituição. Obteve seu certificado de aptidão para exercer a profissão de advogado em 1980, teve seu próprio escritório de advocacia e começou sua carreira em uma das comunas francesas mais ricas: Neuilly-sur-Seine, localidade próxima à capital Paris, no conhecido departamento denominado Île-de-France. A título de curiosidade, Neuilly-sur-Seine sempre consta entre os lugares mais ricos da França. Ele se tornou um quadro relevante do tradicional partido de direita Union pour un mouvement populaire (UMP) após a reeleição à presidência de Jacques Chirac em 2002. Descrito como um político hábil, obstinado e sagaz, Sarkozy contornou suas desavenças com Chirac, principal figura do partido UMP, para se tornar ministro do Interior nos anos 2000. Chirac e pessoas próximas a ele faziam objeções a Sarkozy pelo apoio que o advogado de ascendência húngara dera a Édouard Balladur (político da coalizão Union pour la France) nas eleições presidenciais de 1995 vencidas por Jacques Chirac.
Apologista de uma ideologia que primava pela “tolerância zero” e entusiasta do ex-prefeito nova-iorquino Rudolph Giuliani no combate à criminalidade, Sarkozy arrebanhou apoiadores se tornando presidente da França em 2007. A crise econômica e seu estilo ostentativo para os olhos dos eleitores conservadores de direita o fizeram cair em descrédito, o que culminou na sua derrota para François Hollande nas eleições presidenciais de 2012. Desde então, Sarkozy acumula altos e baixos, com vitórias (como sua condução à presidência do partido UMP em 2014, o qual foi rebatizado Les Républicains em 2015) e derrotas (revés nas primárias que escolheram o candidato da UMP à presidência da França em 2016, ficando atrás de Alain Juppé e do vencedor François Fillon). A prisão do ex-vereador de Neuilly-Sur-Seine engrossa a montanha-russa que tem sido sua trajetória política até agora.
Para abordar o modo como a imprensa francesa noticiou a prisão do ex-presidente Nicolas Sarkozy foram selecionados três veículos de comunicação do país: os jornais Libération, Le Monde e Le Figaro.[3] Foi considerado o período entre o momento da prisão, no dia 1 de março de 2021 até dia 3 de março. A seleção desses três veículos se justifica pelo peso que ocupam na esfera pública francesa e pelo alto grau de influência que exercem no debate público daquele país. Embora pertençam à mídia tradicional e alimentem igualmente pontos em comum, os três periódicos denotam diferenças entre si como veremos adiante.
A prisão de Sarkozy
O jornal Le Figaro, fundado em 1826 por Maurice Alhoy e Étienne Arago, acumula tradição e colaboradores de renome como Émile Zola em sua história. Em sua trajetória, o jornal costuma abordar os assuntos sob uma ideologia conservadora – que veremos transparecer na cobertura dedicada à prisão de Sarkozy. Nos três dias de análise, verificamos que os conceitos variam principalmente entre a neutralidade e o favorecimento à imagem do ex-presidente.
No artigo extraído do jornal Le Figaro no dia da prisão de Sarkozy (1 de março de 2021), vemos a importância que o enquadramento proporciona. No artigo em questão se reforça o caráter das provas apresentadas contra Nicolas Sarkozy, as quais, na ótica do colaborador do jornal, seriam consideradas “frágeis”. Nos dois dias após a prisão, vemos artigos cujo enquadramento permanece favorável ou neutro em relação à conduta do ex-presidente, o que poderia categorizar o periódico conservador como um instrumento de defesa ao ex-mandatário no debate público junto aos leitores.
O jornal Le Monde, fundado em 1944 por Hubert Beuve-Méry, se notabiliza por seu caráter multifacetado ao longo de sua história. O jornal se posicionou contrariamente a presidentes de ideologias e partidos distintos, como se verificou com o liberal Valéry Giscard d’Estaing e com o socialista François Mitterand. A relação que expõe certo estreitamento entre jornal e figuras políticas tem um capítulo que merece atenção: Alain Minc, figura próxima do ex-presidente Sarkozy, foi presidente do conselho de supervisão do Le Monde. Nos três dias de análise referente à prisão de Nicolas Sarkozy, o periódico adota uma postura mais neutra que a do Le Figaro, embora ofereça um espaço representativo de defesa ao ex-presidente, gesto que sugere interpretações que variam desde o direito democrático de ampla defesa do acusado à idéia de vítima de um processo judicial com fins persecutórios.
O Libération, fundado em 1973 por Jean-Paul Sartre, Serge July, Philippe Gavi, Bernard Lallement et Jean-Claude Vernier, é um jornal que passou igualmente por muitas transformações ao longo do tempo. O jornal começou mais à esquerda e hoje está situado na centro-esquerda ou esquerda social-democrata. Ou seja, o Libération é um veículo de mídia que marca uma posição diferente daquela defendida pelos seus pares, Le Figaro e Le Monde, que seriam órgãos de mídia posicionados mais à direita do espectro político. Sobre a prisão do ex-presidente, o Libération adotou um posicionamento mais crítico às ações e às falas de Sarkozy. No dia da prisão e nos dois dias subseqüentes, o tom do jornal em relação ao encarceramento foi desfavorável ao ex-presidente, o que difere da abordagem incorporada por outros veículos franceses de grande alcance.
No bojo das notícias acerca do encarceramento de Nicolas Sarkozy, urge destacar as informações sobre como prisões de chefe de Estado são interpretadas pela opinião pública. Um exemplo é o levantamento sobre o olhar do público em relação à prisão de Sarkozy, pois ele indica que parte considerável dos franceses não apoia a postura do Judiciário no que tange ao tratamento concedido ao ex-presidente e à classe política, uma vez que os cidadãos franceses consideravam o Poder Judiciário condescendente e menos severo com personalidades políticas.
Aproximações com o caso Lula
Quando comparamos o tratamento oferecido pela mídia francesa e brasileira às prisões de Nicolas Sarkozy e Luiz Inácio Lula da Silva, percebemos diferenças bastante significativas. Enquanto Lula recebeu um tratamento amplamente desfavorável dos principais veículos de comunicação brasileiros, Sarkozy recebeu uma cobertura muito menos crítica. O alinhamento do ex-presidente francês com os interesses defendidos por grandes veículos midiáticos explicaria a cobertura menos pesada dispensada a Sarkozy.
Enquanto Sarkozy lidava com um tratamento mais condescendente dado por diversos órgãos de mídia a suas atitudes e comportamentos, Lula sofrera perseguição política a fim de que não pudesse concorrer às eleições presidenciais de 2018, disputa na qual, inclusive, era o principal favorito. A caçada da qual Lula foi alvo teve a operação Lava Jato como sua principal arma. E se a Lava Jato tivesse sido a arma, o juiz Sérgio Moro poderia interpretar o papel de atirador nesse enredo que se tornou popular nos últimos anos. Nem mesmo as informações disponibilizadas pelo The Intercept Brasil sobre a manipulação da Lava Jato e a interferência indevida no processo que levou à prisão de Lula arrefeceram os interesses do oligopólio midiático brasileiro, que continuou alvejando e tentando minar a trajetória política do ex-presidente.
Contudo, é importante sublinhar o papel desempenhado pela mídia alternativa na disputa de narrativas, principalmente o The Intercept Brasil e a Carta Capital, que chamaram atenção para o escândalo denominado “Vaza Jato” – conforme analisado pelo site especializado Manchetômetro. Este esforço se mostrou de grande utilidade para mudança de rumos que temos acompanhado, com Lula resgatando seus direitos políticos e tornando-se apto para a disputa presidencial de 2022. As diferenças registradas na cobertura da prisão dos dois ex-chefes de Estado mostram divergências perceptíveis entre os maiores veículos de mídia brasileiros e franceses.
João Camilo Sevilla é mestre do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), pós-graduando do curso de Especialização em Política & Sociedade do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ), professor estatutário da Fundação Pública Municipal de Niterói. E-mail: [email protected]
Referências
CALHOUN, Craig. Habermas and the Public Sphere, The MIT Press. 1993.
HABERMAS, Jurgen. The structural transformation of the public sphere: an inquiry into a category of bourgeois society, Cambridge, MIT Press. 1989.
[1] Segundo Habernas (1989), a esfera pública é onde se produz o processo de formação de opinião que fornece legitimidade às instituições democráticas (CALHOUN, 1993).
[2] FERES JÚNIOR, João. Cerco midiático: O lugar da esquerda na esfera ‘publicada’. FRIEDRICH-EBERT-STIFTUNG, 2020.
[3] DELALANDE, Claudia Sanae Inaba. O Jornalismo Francês na Contemporaneidade: uma Análise dos Jornais Le Télégramme e Le Monde Diplomatique. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Mercado) – Faculdade Cásper Líbero. São Paulo, p. 102, 2008.