O Oriente Médio em ebulição
Duplo golpe do presidente russo, que acaba de fazer sua entrada no campo de batalha sírio. Putin deixou escapar que recebeu no Kremlin o presidente Bashar Al-Assad; na sequência, ele organizou uma reunião quadripartite (Estados Unidos, Rússia, Arábia Saudita e Turquia) para interromper os conflitos militaresOlivier Zajec
“É hora de transformar o Irã em nosso amigo e a Arábia Saudita em nossa inimiga?” Com esse título provocador, o jornalista britânico Michael Axworthy escrevia em janeiro de 2015 que “a ideia segundo a qual o Irã se tornou uma força estabilizadora na região do Golfo é hoje uma evidência aceita”.1 Estamos longe da retórica do “eixo do mal” repisada desde o 11 de setembro de 2001 e imposta com paixão e tenacidade. Nem o discurso inflamado do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, diante do Congresso norte-americano, em 3 de março de 2015, nem os combates de retaguarda dos discípulos neoconservadores de Thérèse Delpech2 no Quai d’Orsay conseguiram evitar essa inversão de mentalidades. Passando do papel de bicho-papão ao de pivô regional antijihadista, fortalecido por um acordo nuclear habilmente negociado e por uma aliança objetiva com Washington no Iraque, para combater a Organização do Estado Islâmico (OEI), a mudança de papel do Irã já não é um caso isolado. As inversões de percepção desse tipo se multiplicam.
Com uma ameaça terrorista interna grave e uma crise migratória que abala os equilíbrios políticos da União Europeia, nenhum dos frágeis sustentáculos que estruturavam o discurso dominante parece garantir a mínima solidez, impotência analítica da qual a imprensa francesa oferece, talvez, o exemplo mais notório. Da periculosidade do Irã dos aiatolás ao dever moral de “punir” Bashar Al-Assad, da impossibilidade de um califado jihadista ao destino europeu do “modelo democrático turco”,3 da necessidade de convencer Vladimir Putin da urgência de uma parceria justa com o núcleo globalizado dos emirados do Golfo, da solidez da dupla franco-alemã aos gozos obscenos que se seguiram ao enforcamento com transmissão ao vivo de Saddam Hussein, as certezas cederam lugar às tergiversações, a satisfação ao descontentamento, a firmeza à hesitação.
Pior: enquanto o direito de ingerência coercitiva, a comunidade de destino atlântica e as cruzadas movidas contra a “merda soberanista” (segundo a expressão vigorosa de Bernard-Henri Lévy)4 são sempre promovidos com uma admirável constância, a opinião pública, sondagem após sondagem, insiste em achar que a queda do regime sírio, o fortalecimento dos laços com a Arábia Saudita, a contenção da Rússia e a assinatura do Tratado de Livre-Comércio Transatlântico (Tafta) não são provavelmente as grandes prioridades do momento.
Essa inversão ideológica, assumindo a forma de um violento realismo reacionário com respeito ao balanço das aproximações messiânicas e intervencionistas do pós-11 de setembro, tem muito com que inquietar os responsáveis pela política externa francesa da era Sarkozy-Hollande. Também não se exclui reconhecer humildemente o fracasso das mudanças de regime erráticas dos últimos anos. A fim de justificar o injustificável, só resta, pois, uma solução: transferir a responsabilidade do naufrágio a um ator passível de culpa e digno de crédito. Ora, dos dirigentes mundiais da atualidade, qual, pela fraqueza e irresolução, parece merecer mais que Barack Obama a acusação de permitir o caos no Oriente Médio?
Para o chefe de Estado turco, Recep Tayyip Erdogan, Obama não passa de um fraco. Os monarcas sunitas do Golfo, por seu turno, só a duras penas escondem seu ódio – e seu desprezo racista – a esse presidente que agora faz o jogo do “diabo” iraniano. Segundo seu adversário republicano de 2008, John McCain, sempre truculento quando fala do Irã ou da Ucrânia, Obama está “enterrando” a liderança norte-americana.5 E a vedete atual do mesmo partido, Donald Trump, faz coro. Já François Hollande repete sem pestanejar que o motivo principal do fortalecimento da OEI é a “fraqueza” norte-americana que, num “sábado negro do fim de agosto de 2013”,6 impediu Paris de bombardear o regime Al-Assad.
Acontece, porém, que a política externa de Obama não é redutível a uma série de indecisões. Pode-se dizer até que ela, apesar de inúmeros reveses e descontinuidades, permanece muito superior à de seus parceiros britânicos, sauditas, franceses e israelenses. Longe de abusar das pesquisas anabolizantes tão ao gosto dos “presidentes guerreiros”, Obama tentou respeitar o processo diplomático global de que se fizera advogado ao assumir o posto, depois do principado apocalíptico de George W. Bush. O acordo de 30 de junho de 2015 com Cuba, o de 14 de julho sobre o programa nuclear iraniano, a relativa prudência observada na Ucrânia apesar da animosidade pessoal de Putin, malgrado sobretudo as explosões histéricas de seus adversários saudosos de Ronald Reagan, tudo isso são marcos num trajeto relativamente seguro. O contraste é gritante com a herança caótica do aventureirismo líbio de Nicolas Sarkozy em 2011, com a agressividade autista de Netanyahu e com a teimosia de Hollande no caso sírio, desde 2012.
Obama só decepciona, no fundo, os sonâmbulos inconsoláveis com o fato de Donald Rumsfeld, Tony Blair e Condoleezza Rice7 terem sido relegados ao quarto de despejo da diplomacia mundial. Sua postura, razoável e sóbria, é a de recusar o aventureirismo que constituiria, sobretudo no Oriente Médio, uma nova mudança de regime coercitivo sem solução de continuidade durável. Trata-se, aqui, daquilo que poderíamos chamar de “doutrina Gates”, do nome do secretário de Defesa norte-americano entre 2006 e 2011: “A última coisa de que [os Estados Unidos] precisam é um novo exercício de nation building [construção de uma nação]”,8 disse Robert Gates referindo-se à guerra da Líbia. Enunciada perante o Congresso no exato momento em que Obama era censurado por sua leading from behind (ou liderança a partir dos bastidores), essa frase lapidar encerrava simbolicamente a era das intervenções. Após inúmeras vertigens, tudo acontece como se, fechando os manuais dos teóricos neoconservadores Norman Podhoretz e Irving Kristol, a Casa Branca houvesse consultado Aristóteles para nele redescobrir o sentido da deliberação estratégica: “Nenhum espartano delibera sobre a melhor forma de governo para os citas. […] Deliberamos sobre aquilo que depende de nós e que podemos concretizar. […] Não deliberamos sobre os fins, mas sobre os meios de alcançá-los”.9
Na Síria, Obama pode ser recriminado por muita coisa, a começar pela fraqueza que mostrou perante o governo turco, o ator mais cínico e manipulador do conflito. Infelizmente, o último país com moral para censurá-lo nesse caso é a França. Como o virtuosismo semântico não pode disfarçar eternamente o vazio estratégico, convém reconhecer que a storytelling francesa alinhavada na ocasião da tragédia síria não resiste à análise. Durante meses, Paris sustentou que não bombardearia a OEI, pois estava fora de questão reforçar o regime de Damasco, considerado o inimigo número um. Tomando assim partido numa guerra civil, o governo francês chegou ao extremo de sua lógica despachando armamentos destinados a uma oposição moderada mal definida, armamentos que foram logo avolumar os arsenais jihadistas (Le Monde, 21 ago. 2014). Em 30 de setembro de 2015, a situação se degradou e a França decidiu finalmente bombardear o Daech. No Eliseu, falou-se de uma “evolução estratégica”, metáfora audaciosa para o caso de alguns observadores pouco perspicazes se sentirem tentados a ver nisso apenas a ausência total de estratégia. Escudado na tal “evolução”, Hollande, recebendo Putin em 4 de outubro de 2015, “lembrou” a seu hóspede que “o Estado Islâmico é o inimigo a combater”.10
A grandiosidade da fórmula é, reconheçamos, admirável. Lamentavelmente, ela só conseguiu impressionar quem tinha amnésia. Desde o início da revolta síria, em 2011, e da progressiva intrusão, nesta, de facções islâmicas cada vez mais agressivas, Vladimir Putin (que, como se sabe, é cabeçudo) defende a mesma estratégia em duas etapas: apoiar Al-Assad a fim de destruir a Al-Qaeda e a OEI, ameaças prioritárias, e depois encontrar uma solução política negociada em Damasco, sob a forma de uma evolução do regime. Quaisquer que sejam os pensamentos secretos do Kremlin, ninguém em Moscou acha que Al-Assad permanecerá para sempre no poder (ver artigo na próxima página). Eis o motivo pelo qual diversos emissários da oposição síria, como Khaled Khoja e Haytham Manna, foram recebidos em 2015 pelo ministro das Relações Exteriores, Serguei Lavrov. “Não haverá outro Kadafi”: a estratégia de Moscou, por mais criticável que seja, é constante e clara. Nada do cinismo de Ancara, do arrebatamento de Riad ou das mudanças de rumo de Paris, que contrastam com as escolhas operacionais e diplomáticas da França no Mali e na África central, amplamente saudadas em 2013 e 2014.
Reféns desse impasse moralizante e ineficaz, as relações internacionais assistem à multiplicação de iniciativas diplomáticas que já não repousam apenas nas decisões ocidentais. Essa mudança estratégica é fundamental. Pois quem são hoje os game-changers11 no Oriente Médio? Certamente não Obama, pressionado a agir por seus tributários na Europa oriental e no Eufrates, mas reticente nesse caso porque sua verdadeira prioridade é o “pivô Pacífico”. Muito menos Hollande, que se arrasta atrás de Berlim na Europa e atrás de Washington em todos os outros lugares, criticando essas duas capitais a fim de preservar a ilusão de uma independência já bem desgastada. As potências regionais? Israel, sem saber o que fazer, paralisado pela convergência Teerã-Washington e pela retomada da revolta palestina. A Arábia Saudita, às voltas com a queda dos preços do petróleo e embaraçada por sua intervenção no Iêmen. A Turquia, de novo em guerra com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e doravante desacreditada por haver, durante muito tempo, atirado a OEI contra os curdos.
A liberdade de ação está hoje com a Rússia e o Irã, à espera de que a China, por enquanto alheia ao conflito, possa um belo dia aproveitar a ocasião de propor sua solução diplomática. Moscou já tentou mudar a situação em 2013 ao oferecer a todos os protagonistas uma porta de saída graças à neutralização do arsenal químico sírio. Atualmente, Putin faz um novo movimento duplo no tabuleiro sírio, depois de apresentar, num primeiro momento, o plano de mais uma coalizão antiterrorista perante a ONU em 28 de setembro de 2015; em seguida, ele interveio militarmente – a pedido do governo sírio –, autorizando bombardeios que, conforme sua leitura do conflito, visam tanto as posições da OEI quanto as do Exército da Conquista, uma coordenação sustentada pela Arábia Saudita, a Turquia e o Catar (que agrupa principalmente os salafistas de Ahrar al-Sham e a Frente Al-Nosra, ramo sírio da Al-Qaeda).
Bastou essa iniciativa para redistribuir as cartas de um jogo mesopotâmico confuso. Após um ano de operações aéreas e 7 mil “golpes” contra uma OEI tenaz, parece que a estratégia seguida desde 2013 pela coalizão ocidental liderada pelos Estados Unidos fracassou. O secretário de Estado, John Kerry, já reconhece que a data de saída de Al-Assad é negociável e que a colaboração com a Rússia e o Irã é necessária.12 Assim, os comentários jornalísticos mudam de rumo outra vez: “Se a partida de Al-Assad, a derrota da OEI e um futuro pacífico para a Síria constituem o objetivo último, não insistamos em fazer tudo de uma vez”.13 Como muitos outros, Matthew Rojansky, especialista norte-americano do Wilson Center, redescobre o que Sun Tzu, no século VI a.C., já sabia: é melhor combater em uma frente que em duas. Henry Kissinger acaba de chegar, recentemente, mais ou menos à mesma conclusão.14 O mantra comum a Erdogan e Laurent Fabius, ministro das Relações Exteriores francês, segundo o qual existe uma “aliança objetiva entre Al-Assad e os terroristas”,15 não tem mais nenhuma aplicação. Percebe-se bem, no lado francês, a vontade de garantir um balanço exterior razoável por causa dos debates eleitorais de 2017. Mas esse “nem-nem” insustentável, além de ter se revelado contraproducente em termos de estratégia, será logo inaudível na mídia. Talvez mesmo politicamente suicida, ainda que Palmira seja retomada pelas forças russas e sírias; trata-se de uma opção em forma de golpe decisivo, que não sabemos se é possível, mas que não pode ter deixado de passar pela cabeça de Lavrov e Putin. No aguardo, a estratégia russa atual é apoiada abertamente pelo Irã… e pelo Iraque.16 O Egito não se opôs. Pequim observa… e não desaprova.
Assim, o inesperado e o surpreendente, combustíveis preferenciais da ação estratégica, são hoje manejados no campo fechado mesopotâmico por atores alheios ao “Ocidente”. No vórtice do Oriente Médio, uma América enfraquecida e uma Rússia oportunista continuam a defender seus interesses – que não serão jamais, por completo, os da Europa. Tomar partido inteiramente de Washington ou de Moscou, nesse caso, equivale a uma espécie de capitulação intelectual. Mais satisfatório seria fazer aqui o elogio da diplomacia francesa do que constatar, porquanto a honestidade tem suas exigências, a superioridade tática de Putin. Mas a estrela morta que é o neoconservadorismo continua a iluminar as margens do Sena; e a União Europeia alienou sua segurança externa, se pusermos de lado as ações da França na África. Os que lamentam essa situação são cada vez mais numerosos, independentemente de suas tendências políticas – mas esse consolo medíocre não basta.
Olivier Zajec é encarregado de estudos da Companhia Européia e Inteligência Estratégica (Paris).