O PAC das Forças Armadas
Depois de um período em que as Forças Armadas passaram a pão e água, nos anos 1990, o governo brasileiro lança a Estratégia Nacional de Defesa, que tem como um dos seus pilares dinamizar a indústria bélica para atender as necessidades nacionais e exportar armas e equipamentos principalmente para a América do Sul
O Brasil abriga riquezas cada vez mais escassas e cobiçadas pelo mundo: água, energia, alimentos e minerais. Com a descoberta das gigantescas reservas de gás e petróleo do pré-sal, essa cobiça se tornou ainda maior. Por esse motivo, o país precisa defender a floresta amazônica e suas reservas de água potável e de energia, enfrentando a competição global pelo petróleo e a disputa regional pelos aquíferos.
É com essa visão que o governo brasileiro elabora a Estratégia Nacional de Defesa (END), sancionada por decreto presidencial em 18 de dezembro de 2008. Seus principais objetivos são a reorganização das Forças Armadas, a reestruturação da indústria brasileira de material de defesa e uma nova política de composição dos efetivos militares.
O Brasil tem 16.886 quilômetros de fronteiras territoriais e 7.367 quilômetros de fronteiras marítimas. Reforçar o controle e fiscalização dessas áreas e defender, no Atlântico Sul, as águas territoriais brasileiras, assim como proteger a Amazônia brasileira, são objetivos que requerem novas estratégias e recursos.
A END prevê que nos próximos 20 anos haverá uma alocação contínua e substantiva de recursos para compra, mas principalmente para a produção nacional de equipamentos, fortalecendo assim a Base Industrial de Defesa (BID), debilitada nos anos 1990 pela ausência de políticas que a sustentasse e pela falta de investimentos nas Forças Armadas.
Segundo a Abimde (Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança) – que tem 82 empresas associadas, se consideradas também as indiretamente envolvidas com a produção de equipamentos militares –, a BID poderá contar desde já com cerca de 300 empresas.1
O desafio, entretanto, é que a BID não se sustenta apenas com as demandas do mercado interno, como já se viu no passado. É preciso ganhar escala e exportar armas e equipamentos militares.
Nos anos 1980 a indústria bélica brasileira estava entre as 10 mais importantes do mundo. A Engesa vendia caminhões e blindados Cascavel e Urutu para as Américas, a Ásia e a África. À época, o seu tanque Osório era tido como um dos melhores. A Avibrás comercializava foguetes Astros II para o Oriente Médio. O Tucano, avião de treinamento da Embraer, foi adotado pela França e pela Inglaterra.
O Brasil chegou a exportar armas para 32 países. A Engesa forneceu blindados sobre rodas para 22 países, entre eles Líbia, Arábia Saudita e Iraque. Sua falência, nos anos 1990, se deveu a um calote de US$ 110 milhões dado por Saddam Hussein e a frustração de um contrato de venda de 300 tanques Osório para a Arábia Saudita.
O fato é que a BID encontra-se extremamente debilitada em razão da paralisação da década passada. Para reativar essa indústria, o governo Lula aprovou, em julho de 2005, a Política Nacional da Indústria de Defesa, envolvendo isenções tributárias, fortalecimento do setor privado, incorporação de novas tecnologias e fomento à exportação.
Os resultados já se fazem sentir. Suas exportações em 2005 foram de US$ 300 milhões, e em 2008 somaram US$ 750 milhões, a maior parte, no entanto, composta por equipamentos militares leves, como revólveres, metralhadoras pequenas e carabinas produzidas pela CBC, Taurus e Imbel.
Sua revitalização depende de um esforço de modernização, tornando-a tecnologicamente atualizada, competitiva, inovadora e diversificada. É com esses objetivos que o Brasil, nos últimos anos, tem procurado parcerias com a França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Suas tentativas vinham esbarrando na negativa desses países em transferir tecnologia. Recentemente, entendimentos com o governo francês abriram novas perspectivas, consolidadas em um acordo de cooperação, firmado no final de 2008, que compreende várias frentes e iniciativas.
Caças de última geração
As notícias que dão conta do acordo militar entre a França e o Brasil anunciam a compra, pelo Brasil, de 36 aviões de ataque franceses, de alta tecnologia, o Rafale F3. O primeiro Rafale foi incorporado à Força Aérea francesa em 2001, que conta atualmente com 70 caças desse tipo e projeta ter 294 unidades em operação no médio prazo.
Na fase final da concorrência – um negócio de mais de US$ 2 bilhões em que foram pré-selecionados também suecos (Saab) e americanos (Boeing) – um elemento decisivo para a escolha dos franceses foi a disposição de transferência de tecnologia. As propostas foram evoluindo durante as negociações e chegaram ao ponto da Dassault, a fabricante do Rafale, se dispor a produzir no Brasil esse caça de última geração, criando uma linha de montagem para tanto e estabelecendo parcerias com mais de 50 empresas nacionais, com destaque para a Embraer. A depender do armamento que os caças vão transportar, o negócio pode até dobrar de valor.
Esse acordo de cooperação é também um investimento em longo prazo, pois a intenção da Força Aérea Brasileira é substituir toda sua frota de ataque pelo Rafale, o que significa algo entre 120 e 150 aviões a ser produzidos até 2025. Em uma iniciativa paralela, o Brasil, em cooperação com a África do Sul, está desenvolvendo um míssil de médio alcance, o A-Darter, como opção de armamento para esses novos caças.2
Helicópteros
O acordo França-Brasil prevê também a compra de 51 helicópteros EC 725 Cougar. Um helicóptero com duas turbinas, da classe de 11 toneladas, rápido, com grande volume para carga e acomodações, permitindo o transporte de até 29 combatentes, além dos 2 pilotos. É um veículo tático de transporte de tropas, para ataque ou evacuação de combatentes. Foi incorporado à Força Aérea Francesa em fevereiro de 2005.
A Helibrás, em Itajubá, Minas Gerais, irá construir esses helicópteros. Para isso, a Eurocopter investirá US$ 400 milhões na montagem de uma linha de produção brasileira, numa transferência completa de tecnologia. A Eurocopter é uma empresa do grupo franco-alemão EADS. Os primeiros helicópteros serão entregues em 2010. Exército, Marinha e Aeronáutica receberão 17 unidades cada.
Nas palavras do diretor do Departamento de Defesa da Fiesp, Jairo Cândido, as empresas brasileiras fornecerão todas as peças: “A ideia é conseguirmos um índice de nacionalização próximo de 100%. Isto é um projeto superior a US$ 1 bilhão3”.
Submarinos
Segundo alguns analistas, a parte mais importante do acordo França-Brasil é a construção de quatro submarinos convencionais da classe Scorpène, além de um casco maior – desse mesmo modelo – para acomodar o reator nuclear desenvolvido pela Marinha brasileira. Estes submarinos serão produzidos no Brasil e, para tanto, será preciso construir um novo estaleiro e uma nova base naval. O custo total previsto para esse projeto é da ordem de US$ 9 bilhões.
O submarino nuclear brasileiro permitirá uma nova estratégia: a da mobilidade, a de estar presente em qualquer área de interesse da Marinha. Sua grande velocidade, que pode ser utilizada por tempo ilimitado, sua possibilidade de estar submerso por meses e seu combustível que demora de 6 a 10 anos para ser consumido, criam novas condições de defesa dos interesses nacionais.
A Marinha brasileira já identificou no litoral sul do Rio de Janeiro, na baía de Sepetiba, o local para a construção deste novo complexo naval. O índice de nacionalização na produção dos Scorpène será bastante elevado, com milhares de itens produzidos por mais de 30 empresas brasileiras. O interesse nacional é de que empresas francesas transfiram a empresas brasileiras a capacidade de fabricação dos equipamentos necessários aos Scorpène.
Vale lembrar que o Brasil já constrói submarinos no Arsenal da Marinha do Rio de Janeiro. Com transferência de tecnologia alemã, foram fabricados quatro IKL-209. O último, o Tikuna, foi incorporado em dezembro de 2005.
Com um comprimento de 62 metros e diâmetro do casco de 6,20 metros, o submarino Tikuna desloca 1.550 toneladas submerso e atinge velocidades superiores a 20 nós, além de operar em profundidades maiores que 200 metros. Com uma tripulação de 7 oficiais e 29 praças, o submarino possui 8 tubos de torpedo e é movido por propulsão diesel-elétrica. Além dos torpedos, o Tikuna também poderá usar minas navais acústico-magnéticas MCF-01/100 fabricadas pelo Instituto de Pesquisas da Marinha. O Tikuna é capaz de navegar 11 mil milhas na velocidade econômica de 8 nós. Submerso, o navio pode cobrir 400 milhas a 4 nós, sem precisar subir à superfície.4
A vantagem na escolha do Scorpène é a sua facilidade de transição para o submarino nuclear, a grande ambição brasileira. Seu casco hidrodinâmico, projetado para alto desempenho em velocidade e manobra, é derivado do submarino nuclear Rubis/Amethyste, mas mais compacto. O Scorpène utiliza tecnologias dos submarinos nucleares franceses, como o sistema de combate Subtics.
Como o acordo França-Brasil prevê, é da responsabilidade da Marinha brasileira o desenvolvimento do reator nuclear, que deve entrar em operação em 2013. Um acordo entre a Argentina e o Brasil, firmado em fevereiro de 2008, pode acelerar esse processo. Os dois países pretendem criar uma empresa binacional de enriquecimento de urânio, construir um modelo de reator nuclear e estabelecer um ciclo de combustível nuclear em conjunto. Nesse acordo também está previsto o lançamento de um satélite para monitorar a costa e o oceano.5
Fragatas
Ainda dentro do acordo França-Brasil serão construídas 6 fragatas, da classe Fremm, nos estaleiros do Arsenal da Marinha, no Rio de Janeiro, que para tanto sofrerá um processo de modernização. O custo previsto desta iniciativa supera os US$ 2 bilhões.
A fragata Fremm é um navio de 137 metros de comprimento com uma tripulação de 108 pessoas. Movida por uma turbina a gás General Electric/Avio, permite uma velocidade máxima de 27 nós (50 km/h), ou ainda, em operação silenciosa, a velocidade de 15 nós (28 km/h). A autonomia é de 11 mil quilômetros.
Essas novas fragatas multimissão são as mais modernas, foram concebidas a partir de um consórcio franco-italiano assinado em novembro de 2005. Os navios apresentam duas versões distintas, para atacar submarinos e para atacar alvos em terra. Com armamento pesado, a fragata terá capacidade de combate antiaéreo, com lançador vertical para 32 mísseis Áster 15 e, em outra versão, para lançar mísseis a mil quilômetros de distância.
O acordo franco-brasileiro é o mais abrangente, mas outras iniciativas anteriores já indicavam a disposição do governo brasileiro de modernizar e melhor aparelhar as Forças Armadas.
Navios de desembarque
Este ano foi incorporado à Marinha brasileira o Almirante Sabóia, um navio de desembarque pesado, de origem britânica, que tem uma porta de proa que permite o encalhe na praia e a colocação direta em terra de até 16 tanques pesados, 34 veículos de vários tipos, entre eles os de transporte e blindados leves, além de levar até 534 militares. Outro navio da mesma classe, o NDCC Garcia D’Ávila, foi incorporado à Marinha brasileira em maio de 2008. Estas embarcações são destinadas a operações anfíbias, ribeirinhas e de apoio logístico móvel.
Porta-aviões
Neste cenário de reaparelhamento das Forças Armadas, não se pode ignorar a restauração do porta-aviões São Paulo, com novos sistemas e equipamentos, que volta à ativa em 2010 com esquadrões de helicópteros e caças Skyhawk. O São Paulo tem capacidade para transportar 17 helicópteros e 22 caças. É a maior embarcação da Marinha brasileira e coloca o Brasil entre os nove países no mundo que possuem porta-aviões.
Carros de combate
A disposição de reaparelhar as Forças Armadas levou o Exército brasileiro, em dezembro de 2006, a comprar da Alemanha 250 carros de combate Leopard 1 A5, cujo primeiro lote de 60 unidades está sendo entregue este ano. No horizonte, se coloca a possibilidade de sua produção no Brasil.
A versão 1 A5 é a mais moderna da família Leopard 1, com avançados sistemas de controle de tiro, visão noturna ampliada para atirador e comandante do carro, blindagem reforçada na torre e suspensão reforçada. O A5 é capaz de disparar munições mais potentes que a versão A1 (da qual o Brasil conta com 128 unidades), utilizando munição capaz de penetrar todos os tipos de blindagem atualmente em uso.
A integração militar da América do Sul
O Conselho de Defesa Sul-Americano, órgão da Unasul criado em março deste ano, pode cumprir um papel estratégico na afirmação da BID brasileira. Entre seus objetivos está “fomentar a cooperação militar regional e as bases industriais de defesa”. Para tanto, será feito um inventário das capacidades militares e se buscará uma padronização de equipamentos que permitam o consumo de materiais e serviços em grande escala. Ao buscar a BID regional, o Brasil tenta convencer seus sócios, acenando com a possibilidade de exportação para outros continentes.
Segundo dados do Balanço Militar da América do Sul em 2008, de 2003 a 2008 os investimentos em tecnologia militar na região passaram de US$ 24,7 bilhões para US$ 47,2 bilhões. O fato é que os gastos com defesa na América do Sul têm crescido substancialmente na última década, e analistas dizem que esta tendência vai continuar, apesar da crise mundial. Em 2008, os 12 países sul-americanos gastaram US$ 50 bilhões em defesa, sendo que deste total, US$ 15 bilhões foram para novos investimentos e manutenção de bens e serviços.6
Com a implantação da Base Industrial de Defesa da América do Sul, o Brasil e a Argentina tendem a se beneficiar com suas linhas de produtos com maior variedade e modernidade, como os que serão desenvolvidos pelo Brasil no acordo de cooperação com a França.
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.