O papel central da educação na cultura política e na vida pública cotidiana
A pedagogia é inerentemente política porque está vinculada à agência social e, portanto, à formação para o exercício de uma cidadania crítica, revelando como o conhecimento e as identidades são construídos dentro de dinâmicas de poder específicas
Como Angela Davis afirma, é imperativo ter uma compreensão internacional de como o fascismo está se espalhando pelo mundo e como ele conecta países tão diversos como Israel, Estados Unidos, Brasil, Argentina, Índia, Arábia Saudita, Hungria e Turquia. Os fios que conectam esses vários países movimentam o nacionalismo xenófobo e o racismo. Poderosos dispositivos políticos pedagógicos forjam um discurso de ódio, medo e violência política como parte do esforço neoliberal para controlar a cultura. Segundo Davis, se quisermos ser vitoriosos na luta contra o fascismo, precisamos de uma perspectiva internacionalista. Não podemos focar apenas no que está acontecendo em Washington ou Brasília, nossas questões domésticas estão condicionadas pelo que está acontecendo na conjuntura internacional.
Em um contexto histórico diferente, o marxista italiano Antonio Gramsci afirmou que, quando uma sociedade enfrenta uma crise, é comum que essa situação seja marcada por um período em que “o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer; nesse intervalo, aparece uma grande variedade de sintomas mórbidos e bizarros”. Neste caso, Gramsci se referia à Itália sob o domínio fascista de Mussolini, um momento em que as pessoas já não acreditavam mais na velha ordem, mas essa descrença não levou, por si só, a uma mudança revolucionária para algo melhor. Pelo contrário, esse período de crise, ou interregno, também possibilitou o surgimento de condições destrutivas sistêmicas como o fascismo.
A lição que aprendemos com Davis e Gramsci não é o desespero ou cinismo, mas sim a importância de lutas e estratégias que criem novas oportunidades frente brechas da extrema direita para repensar a própria natureza da política e recuperar a proposta de uma sociedade fundamentada na democracia radical. Além disso, não podemos perder de vista a conjuntura internacional, especialmente numa época em que o poder é global e a política é ineficazmente local. Somente um movimento mundial será capaz de desafiar o poder financeiro que atualmente flutua acima dos Estados-nação, burlando os ordenamentos jurídicos e destruindo direitos sociais coletivos com objetivo de lucro.
Mas não existe democracia sem a formação dos sujeitos e grupos que compõem a sociedade. Educação e democracia se apoiam mutuamente. Se uma é destruída, a outra também é atingida. É importante enfatizar que a vivência em movimentos de ação coletiva direta – política e/ou cultural – pode ser uma forma capaz de mobilizar a atenção pública para a luta. A educação nunca é neutra; nunca é removida da dinâmica do poder; ao contrário, ela molda a forma como o poder se movimenta, controla a circulação do conhecimento, constrói identidades e elege autoridades em relações sociais específicas.
Por isso a educação, como força emancipatória, é central para a política. É neste espaço de comunicação organizado pela pedagogia que pode ocorrer uma transformação dos sujeitos, quando a consciência crítica estabelece um modo de reconhecimento do ser humano como um agente de mudança. A pedagogia é inerentemente política porque está vinculada à agência social e, portanto, à formação para o exercício de uma cidadania crítica, revelando como o conhecimento e as identidades são construídos dentro de dinâmicas de poder específicas. Como Homi Bhabha observa, a pedagogia exige vigilância “naquele exato momento em que as identidades estão sendo produzidas e os grupos estão sendo constituídos”. Sob tais circunstâncias, a pedagogia deixa claro como as pessoas podem se tornar responsáveis por si mesmas e por sua comunidade, o que é um passo crucial em direção à autorrepresentação, à agência e à capacidade de reconhecer uma posição de poder e agência.
O problema é que vivemos numa época em que as políticas violentas inerentes ao neoliberalismo agora são cúmplices de políticas fascistas. O discurso da educação repressiva e militarizada precisa ser combatido. Como educadores, não podemos desviar o olhar e fingir que não estamos vendo a educação pública transformar-se em espaços autoritários e fortemente controlados. Precisamos reconhecer a gravidade dessa ameaça, a extrema direita já está no poder e tem implementado políticas fascistas em diversas cidades, estados e países. Torna-se cada vez mais difícil pensar diferente, operar fora dos cenários políticos dominantes, construir futuros alternativos e produzir visões coletivas que conectem a imaginação radical com atos de resistência. A questão de quem define o futuro das crianças, molda pedagogicamente os cidadãos do Estado e administra os recursos da sociedade não é um problema simples. Toda pedagogia é política!
Uma pedagogia crítica se estende, todavia, para muito além da sala de aula. Permeia todas as áreas da vida social e preenche a lacuna entre educação formal e vida cotidiana. A pedagogia crítica confronta as estruturas de poder hegemônicas que ditam qual conhecimento é valorizado e os interesses que devem ser atendidos. Ela capacita os alunos a reconhecer e resistir à dominação em inúmeras formas de opressão. Ao expor a dinâmica do poder e questionar a realidade concreta, sempre numa perspectiva histórica, a pedagogia crítica pode fornecer subsídios teóricos e ferramentas práticas para uma ação coletiva. A motivação para se engajar na luta por uma sociedade mais justa e equitativa nasce do “processo de conscientização”, o que Paulo Freire caracterizou como “a elevação de um nível de consciência ingênuo para um nível de consciência crítico que faz o sujeito emergir da alienação em que se encontrava submerso; tornando-o capaz de pensar e agir no mundo para transformá-lo”.
A transformação social depende de valores democráticos pois direitos sociais e humanos são fundamentais para formar cidadãos conscientes. A pedagogia crítica não se contenta em simplesmente transmitir conhecimentos; ela forma os alunos para questionar, desafiar e reimaginar o mundo para além dos limites históricos do “senso comum”. Como uma forma de alfabetização crítica, não é meramente sobre competências para o trabalho, mas também sobre a formação ética, humana e cidadã. Ensina os alunos a governarem a si mesmos, promovendo a autonomia dos sujeitos e fornece espaços para se refletir sobre a própria vida em relação às dinâmicas do mundo em que vive. Preenche assim a lacuna entre sala de aula e mundo real, expondo a dinâmica de poder que governa a sociedade.
Educação e cultura são espaços em disputa nesta guerra de narrativas que emerge, mas também o local onde a crítica pode ser feita e uma política autoritária emergente pode ser desafiada. Não apenas de uma contranarrativa, necessitamos um movimento social de massa capaz de implementá-la. A resistência cultural organizada por meio das redes sociais e mídias digitais, na luta pela conscientização da realidade de pobreza, miséria, violência e opressão em que vive grande parte da população, é uma questão pedagógica crucial.
Na Era das máquinas digitais e robôs que propagam a ignorância, precisaremos mais do que nunca de estudos culturais críticos para enfrentar a mídia colonizadora, as ideologias fascistas e a desinformação nas escolas e universidades. A educação precisa oferecer um espaço onde perguntas difíceis possam ser feitas, em que as pessoas aprendam a ouvir umas às outras e onde educadores criem debates onde se torne possível mudar a maneira de pensar. É no diálogo que surge do encontro com os outros que a diversidade de ideias pode fomentar a criatividade, quando novas narrativas emergem e a negociação política surge como possibilidade. O diálogo tem potencial para energizá-las a fazer algo diferente, vinculando imaginação crítica à possibilidade de ativismo na esfera pública. Neste espaço de incertezas, ideias podem brotar e se consolidar, criando raízes para uma nova ordem social. Não podemos aceitar que a educação pública assuma uma posição de autoritarismo que impossibilite o diálogo e se encerre no tecnicismo de conteúdos ou disciplinas que nem sempre ensinam os alunos a pensar criticamente.
Contudo, essa batalha não se ganhará somente no âmbito da educação. No mundo contemporâneo em que vivemos, a cultura, de forma mais ampla, desempenha um papel crucial na formação da consciência pública, ou na alienação política. Em um contexto onde a disputa pelo poder se manifesta não só em formas econômicas, mas também simbólicas e culturais, a teoria crítica se torna essencial para decodificar os mecanismos de dominação enraizados nas representações e práticas sociais. Por isso os estudos culturais desempenham um papel central na educação, na cultura política e na vida pública cotidiana. Fornecem a possibilidade de existência da democracia, que não existe sem cidadãos formados com a consciência crítica necessária para desafiar as forças de repressão e animar a participação na luta por emancipação. Velhos paradigmas dão lugar a novos por meio de transformações na cultura, na linguagem e nas próprias práticas sociais de educação e formação para o crescimento dos seres humanos.
Em vez de travar uma disputa contra o capitalismo neoliberal de maneira abstrata, é necessário construir um movimento político e educativo que torne visíveis os problemas que as pessoas enfrentam e lhes forneça um momento de reconhecimento de sua própria condição de vida para que então seja capaz de alterar a forma de enfrentamento desses problemas. Isso significa que precisamos abordar os problemas coletivos concretos, como o recorte de direitos sociais e o desfinanciamento do Estado de bem-estar social. Nossa conversa com a população não deveria começar com críticas e abstrações sobre o capitalismo predatório, mas com uma escuta atenta e linguagem que emerge na cultura do cotidiano, onde as pessoas se identificam com as questões públicas que estão em debate.
Mas para além da educação, há a necessidade vital de travar uma luta política para defender os direitos sociais, as escolas públicas, a liberdade de pensamento e as outras mobilizações culturais que fornecem condições para que as pessoas pensem criticamente. A educação não pode ser apenas um treinamento para o trabalho, precisa também formar pessoas para que se tornem cidadãos críticos e engajados, capazes de questionar aqueles que estão no poder, aprender a dizer não e abraçar visões de mundo que sejam corajosas e imaginativas. Precisamos combater discursos paralisantes que transformam a liberdade em uma noção tóxica de egoísmo, a esperança em cinismo e a política no lugar da indiferença e crueldade. Urge enfrentar os desafios do presente e ao mesmo tempo manter sempre viva a esperança no futuro. A educação pode criar espaços e tempos que nos permitam sonhar novamente, imaginar o inexistente e ampliar as formas de ação.
O poder transformador da educação está constantemente sob cerco. A educação crítica não pode sobreviver se os educadores forem despojados da autonomia sobre seu trabalho, com práticas de ensino autoritárias e desconexão com questões sociais mais amplas. A educação não pode ser reduzida a um conjunto de habilidades rígidas projetadas para transformar salas de aula em instrumentos de censura, propaganda e doutrinação ideológica de extrema direita. A pedagogia crítica representa uma ameaça direta às forças autoritárias porque redefine a educação como um esforço profundamente moral e político, não só um mero exercício técnico. Ela desafia o status quo ao expor a luta por poder, valores, identidades e visões concorrentes do presente e do futuro.
Enfrentar os desafios do presente deve ser uma oportunidade para recuperar as virtudes da dignidade, da compaixão e da justiça, oferecendo uma nova chance para sonhar com um futuro em que a igualdade e a liberdade não sejam apenas ideais, mas práticas cotidianas. Reimaginar o futuro acreditando na possibilidade de mudar a história é, e sempre será, um ato de resistência. Não devemos permitir que a esperança no futuro se transforme em cinismo paralisante. Precisamos nutrir uma nova visão de democracia, socialista e sustentável, onde valores como liberdade, solidariedade e igualdade sejam renovados e fortaleçam tanto nossa identidade coletiva quanto nosso compromisso social.
Uma educação verdadeiramente democrática prioriza as necessidades humanas em detrimento do lucro. Ela rejeita o fisiologismo do interesse próprio, promovendo um profundo comprometimento com responsabilidade social e ação coletiva. A pedagogia crítica é a linguagem do empoderamento e da transformação, nos inspirando a imaginar um futuro mais justo. Diante do poder opressivo, ela nos lembra que a luta pela não é apenas necessária, mas sempre possível. Seja por meio de atos individuais ou movimentos coletivos, a educação é essencial para criar espaços de participação democrática e resistência cultural frente ao crescente autoritarismo do fascismo neoliberal.
Qualquer luta coletiva que importe precisa desenvolver uma visão embrionária da vida fora dos imperativos do capitalismo de “livre mercado”. Mais e mais trabalhadores precisam tomar medidas diretas e sair às ruas, concentrando-se em questões que pesam sobre suas vidas diárias – questões que vão desde assistência à saúde até necessidades básicos como alimentação, moradia, saneamento básico e o direito a uma participação política legítima, sem controle e manipulação de extremistas religiosos ou da elite financeira. O que está em jogo é a coragem de decidir que tipo de mundo queremos construir para as gerações futuras.
Provavelmente Stuart Hall estava certo ao declarar que “a esquerda está em apuros… se não tiver um senso de política que seja educativo, da política mudando a maneira como as pessoas veem as coisas”. Enquanto a educação e a cultura não se tornarem central para as lutas coletivas, dificilmente haverá uma mudança radical na sociedade. Além disso, o movimento pela democracia radical não é apenas uma ampla defesa de bens públicos, mas um conjunto de táticas e estratégias que envolvam ação direta, formação política e mobilização cultural. Precisamos rearticular a luta unificada pelos direitos sociais e questionar sempre a normalização da violência, do racismo e da desigualdade.
Há duas questões estratégicas que precisam ser consideradas. Uma é a necessidade de desenvolver uma ampla gama de plataformas acessíveis para abordar as pessoas em uma linguagem clara, inspiradora e acessível. Marv Waterstone e Noam Chomsky estão certos em perguntar “onde está a mensagem paralela concorrente na ‘esquerda’ que se baseia na base material e de senso comum para coalizão política, coesão e unidade?” Precisamos ampliar a reflexão da esquerda para conseguir alcançar a população. Em segundo lugar, atos de resistência precisam ser traduzidos em estratégias mais eficazes. Em parte, isso significa usar a ação direta para fazer greves e paralizações; fechar instituições, mesmo que momentaneamente, para dialogar com as pessoas e no encontro produzir novas formas de resistência coletiva.
Destacamos a complexidade do papel da educação crítica e dos estudos culturais como forças revolucionárias que não apenas contestam as estruturas de poder, mas também promovem a emancipação dos sujeitos e a justiça social. Está evidente que a educação não é uma ferramenta neutra; ela molda identidades, forma cidadãos e tem o potencial de fomentar resistências contra o avanço de ideologias fascistas e neoliberais. Nesse sentido, a pedagogia crítica se torna um espaço onde a transformação é possível, não apenas em nível individual, mas coletivo, à medida que fomenta uma cidadania ativa e crítica.
A pedagogia crítica e os estudos culturais são inseparáveis da batalha maior pelos direitos humanos e pela justiça social e econômica. Não é apenas uma técnica ou um método para a educação, mas uma força revolucionária, que mobiliza a luta contra a opressão em todas as suas formas. Por meio dessa lente radical, a educação se torna uma arma para desmantelar sistemas de exploração, racismo sistêmico, militarismo e desigualdade, forjando um caminho em direção à verdadeira democracia. Somente por meio de uma educação que inspire o pensamento crítico, a solidariedade e a ação coletiva poderemos imaginar e concretizar uma sociedade onde todos tenham oportunidades equitativas.
Ao reconhecermos os desafios atuais e a urgência de agir, devemos também cultivar uma visão de mundo que coloque a justiça, a igualdade e a liberdade no centro de nossas lutas e aspirações. Assim, podemos construir um futuro que rejeite as correntes do fascismo e abrace a promessa de uma democracia radical e transformadora, onde a esperança se torne uma força motriz para a transformação social verdadeira e duradoura. É essa visão que nos permite sonhar novamente, imaginar o inimaginável e transformar a esperança em uma ação concreta e transformadora.
Precisamos renovar a determinação para enfrentar as injustiças que ameaçam as bases da democracia e para construir um movimento coletivo capaz de desafiar as forças de direita e extrema direita que promovem desigualdade e opressão. Neste momento crucial, a pedagogia crítica e os estudos culturais podem contribuir para reafirmar nossa humanidade compartilhada e a nossa interdependência como agentes de mudança. Tudo isso é vital para transformar o futuro, sempre cheio de possibilidades, em uma realidade justa, mais inclusiva e democrática.
Mais do que transmitir conhecimento, a pedagogia crítica convida a um diálogo profundo sobre as relações de poder que permeiam a sociedade e como podemos, coletivamente, imaginar e construir alternativas à opressão. A crise política e cultural que vivemos hoje, marcada pela ascensão da extrema direita e pela precarização dos direitos sociais, demanda que repensemos a educação como um campo de batalha fundamental, capaz de gerar não só a conscientização, mas também o impulso necessário para ações concretas de mudança. Assim, ao integrar os estudos culturais e a pedagogia crítica na vida pública, abre-se a oportunidade de reimaginar a democracia como uma prática inclusiva e radical, onde a esperança continue sempre viva, alimentando o sonho de um futuro melhor.
Henry Armand Giroux é Pesquisador no Departamento de Estudos Culturais e Professor Titular da Cátedra Paulo Freire de Pedagogia Crítica na McMaster University, Canadá.
Gustavo de Oliveira Figueiredo é Pesquisador visitante na McMaster University e Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.
Esta iniciativa teve apoio do Programa Institucional de Internacionalização da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Ministério da Educação.