O perigo mora ao lado
A exploração de minérios e a destruição de áreas de preservação se tornaram grandes riscos para os Zo’é. Tirá-los dessa situação é um desafio que exige a formulação de políticas públicas capazes de conter o avanço da fronteira econômica, levando em consideração as lições do manejo tradicional
Os Zo’é são um modelo para a proteção ambiental, tanto por manter seus hábitos tradicionais como por sua posição geográfica: estão circundados por áreas de grandes dimensões de floresta tropical, ainda comparativamente intocadas, no norte do Pará.
Porém, como aponta a antropóloga Betty Mindlin, o quadro ainda é de insegurança. Aproximam-se deles os agentes econômicos que criaram o “arco do desmatamento”, área que vai do sul do Pará até Rondônia e divide a floresta ao meio a partir das estradas da ditadura, como a Transamazônica e a BR-364 (Cuiabá–Rio Branco), ampliando o desflorestamento para o interior do estado do Amazonas e norte do Mato Grosso.
Entre os Zo’é (664.465 ha) e o Parque do Tumucumaque (3.071.067 ha), extremo norte fronteiriço com as Guianas, o próprio estado do Pará, no governo de Simão Jatene, criou a Estação Ecológica Grão-Pará (4.245.819 ha). Essa iniciativa é surpreendente em três sentidos: primeiro, porque se trata da maior unidade de conservação de florestas tropicais do mundo contemporâneo; segundo, é um projeto estadual, coisa rara; e terceiro, representa uma imensa área “tampão” criada entre duas terras indígenas.
Além dessas, oito terras indígenas já demarcadas e habitadas por dez povos estendem-se desde o Amapá até o Pará fronteiriço, compondo esse mosaico de preservação de grandes porções de biodiversidade das florestas tropicais no norte amazônico. Vale ressaltar que desde a década de 1980 vários pesquisadores têm fortes indícios, como eu mesmo, de que há na região outros povos isolados.
De forma geral, os índios estão entre os que mais defendem a floresta amazônica sul-americana. Até porque as populações tradicionais são maioria no interior semi-ocupado, e o povoamento mais recente é urbanizado, resultando no inchaço desordenado dos grandes centros tradicionais, como Manaus e Belém, e nas cidades de “acampamento”, como as que fornecem mão-de-obra barata para mineradoras, construtoras, madeireiras e garimpos. Chama atenção ainda o fato de a Amazônia ter chegado a 23 milhões de habitantes, consolidando uma sociedade civil organizada e com grupos de interesses mais definidos, inclusive nos segmentos excluídos.
Um estudo de 1999, feito pelo ISA (Instituto Socioambiental), calcula que os povos indígenas têm direito a pelo menos 20,66% da Amazônia brasileira, que representam 98,88% das terras indígenas do Brasil. São 430 áreas, em um total de 628 existentes no país, com dimensões territoriais muito mais expressivas do que aquelas nas regiões Nordeste e Sudeste. A diversidade cultural é enorme: são 210 etnias e cerca de 170 línguas nativas. Apesar de ser apenas 1% dos brasileiros, a população indígena é a que mais cresce: nas últimas décadas ela triplicou.
Além disso, de acordo com a “teoria dos refúgios”, formulada por Aziz Ab’Sáber e outros especialistas, das 378 áreas consideradas prioritárias para a preservação da biodiversidade, pela concentração e variedade de espécies, 121 são indígenas.
A região habitada ao norte pelos Zo’é tem como um dos principais centros urbanos Oriximiná, que a partir de 1973 se desenvolveu em torno da bauxita. O local atraiu o interesse da Companhia Vale do Rio Doce, hoje privatizada, que pretendia obter concessões minerais. Assim, os minérios se tornaram o primeiro grande risco para esse povo e para as áreas de preservação ambiental do corredor fronteiriço. Em 1998, havia 7.203 títulos e/ou requerimentos de mineração apresentados ao governo, para explorar 126 áreas indígenas. Um levantamento do Iamá (Instituto de Antropologia e Meio Ambiente), em 1991, identificou 16 garimpos indígenas e 23 de não-índios em terras indígenas da Amazônia. Em 2007, o Serviço Geológico do Brasil constatou um aumento considerável, tendo encontrado 207 garimpos. Esse risco é agravado pelo fato de que a mineração em terra indígena ainda não está regulamentada pelo Congresso Nacional e que as práticas conhecidas deixam aos índios brasileiros apenas 0,1% dos lucros, contra, por exemplo, 80% para os indígenas do Canadá.
Hidrelétricas na floresta
Como são raras as regiões não-planas na Amazônia, a partir da década de 1980 o norte do Pará começou a ser considerado área propícia para a construção de grandes hidrelétricas, sendo a primeira delas a de Cachoeira Porteira. O tempo passou e nada mudou: ainda em 2008, o Plano Decenal de Expansão de Energia irá dividir um megaprojeto de hidrelétricas em duas usinas no rio Tapajós, no Pará, tentando minimizar os danos ambientais e a crítica ambientalista. Uma delas terá capacidade de gerar 4 mil megawatts/hora e a outra, 5 mil megawatts/hora.
Contudo, o maior risco atual vem da soja e de outras monoculturas de exportação. A primeira iniciativa foi a da Cargill, que abriu um porto de exportação em Santarém. A previsão de impacto mais contundente vem do esforço do lobby da soja pelo asfaltamento da rodovia Cuiabá–Santarém, a BR-163, que disputará espaços de populações tradicionais e das florestas para o agronegócio. É provável que tais interesses chamem consigo novos surtos de pecuária, das madeireiras e dos próprios colonos sem-terra, em pequenas explorações de agricultura familiar – inviáveis em sua maioria por causa da distância dos centros de comércio, mas que servem aos grandes produtores como “amansa-terras”, já que depois de um tempo esses camponeses são forçados a vender suas posses semi-regularizadas à concentração fundiária.
Para índios de contato recente, como os Zo’é, é muito útil ter suas terras cercadas por áreas de preservação ambiental, entre outras razões por sua conhecida fragilidade perante as doenças de contágio, mais recentemente a malária. Mas as áreas de preservação com manejo do entorno, que permitem a extração de madeira, como a floresta estadual (Flota) Trombetas e as florestas nacionais (Flonas), não chegam a servir como um mecanismo perfeito de amortecimento às ameaças de moléstias.
As reservas ecológicas, em que qualquer tipo de exploração é proibida, como a estadual ESEC Grão-Pará e a reserva biológica Maicuru, ficam ao norte dos Zo’é. Já as que permitem exploração racional de manejo e, portanto, são mais acessíveis a não-índios “autorizados” e/ou invasores situam-se ao sul, onde se prevê a ameaça mais forte dos interesses econômicos a partir do asfaltamento referido, que ampliará até Santarém o desmatamento exponencial decorrente da soja do norte do Mato Grosso. Além das áreas federais e particulares, como a Flona Saracá-Taquera, as reservas estaduais de manejo são as Flotas Trombetas, Faro e Paru, mais próximas a Oriximiná.
Uma iniciativa decisiva do Ministério Público Federal propôs uma mudança no plano de manejo da Flota Trombetas, que ficaria bloqueada para manejos florestais no rio Erepecuru, onde os índios pescam e caçam, criando assim uma “zona de amortecimento de impacto” de cerca de 20 quilômetros nos 212 quilômetros contínuos em que essa floresta tem limites com as terras dos Zo’é.
Trata-se de diminuir o impacto da presença de não-índios nas imediações das terras que lhes são garantidas. Em 2006, 80% da população Zo’é contraiu malária em função da proximidade. Antes de tomar a decisão, o procurador Felício Pontes sobrevoou as terras Zo’é registrando várias invasões por madeireiras.
A heterogeneidade de políticas e formas de preservação da floresta e da biodiversidade pode tornar-se um embate de exemplos comparativos sobre métodos adequados, uma vez que ali convivem indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhas e de castanheiros, e existem áreas de preservação permanente e áreas disponíveis para manejo – algo que exigiria uma fiscalização para a qual o Estado brasileiro está longe de capacitar-se.
Assim, esse complexo tornou-se um verdadeiro desafio, convidando à formulação de conceitos, políticas públicas e articulações que sejam capazes de conter o avanço desenfreado da fronteira econômica e o aumento exponencial do desmatamento, levando em consideração as lições do manejo tradicional e a concepção – talvez ilusória e ainda não totalmente comprovada – do manejo tecnocrático da engenharia florestal.
Experiência pioneira
Em meio a isso, como os Zo’é manterão suas pequenas roças itinerantes, de no máximo 2 ha. – “coivara”, na expressão cabocla – ou na forma da shifting cultivation, 70% delas plantadas com diversas espécies de mandioca, e a pesca do timbó, uma caça auto-regulada por prudentes costumes milenares? A experiência Zo’é e do complexo de unidades de conservação que os circunda pode tornar-se pioneira de uma acertada orientação de políticas públicas. Mas também corre o risco de fracassar, tornando-se uma simples repetição do exponencial desflorestamento.
A sociedade brasileira jamais discutiu o derradeiro legado de Darcy Ribeiro, que propôs uma reorientação dos projetos de colonização da Amazônia inspirada nas vilas ribeirinhas tradicionais. Estas últimas viviam da “floresta em pé”, combinando culturas de auto-sobrevivência com o extrativismo e melhorando, com tecnologias adaptadas, os seus produtos para o mercado. Foi o contrário que prevaleceu, o modelo das concessões florestais proposto pela ITTO (International Timber Trade Organization), que chegou a seduzir e converter até mesmo ambientalistas respeitados.
Some-se à proposta de Darcy o fato de que o emergente biomercado poderia, com apoio técnico adequado e garantias dos direitos de propriedade intelectual e de autoprodução aos seus detentores tradicionais, proteger as ofertas de produtos advindos do etnoconhecimento in situ. Essa alternativa abre espaço para uma ampla gama de possibilidades para novos materiais, medicamentos, princípios ativos, alimentos, perfumes, conservantes, adoçantes, sal vegetal, variedades de plantas, sementes, pesticidas orgânicos e frutas.
Assim, nesse importante corredor fronteiriço onde se encontram os Zo’é, confrontam-se duas visões de uso dos recursos da biodiversidade e das técnicas de preservação: o modo de ser indígena e a proposta de Darcy e de Aziz Ab’Sáber do uso comunitário da “floresta em pé” versus as técnicas inseguras do manejo da engenharia florestal, que privilegiam grandes empreendimentos e novas sesmarias.
*Mauro Leonel é professor livre-docente de Ambiente e Sociedade da EACH (USP) e do Prolam (USP) e autor, entre outros livros, de Bio-sociodiversidade: preservação e mercado (Scielo).