O peso político dos Jogos - Le Monde Diplomatique

Olimpíadas

O peso político dos Jogos

por Marcelo Damato
4 de setembro de 2008
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“Ilha da fantasia” montada a cada quatro anos num ponto diferente do planeta, o evento não foge às querelas do mundo real: para preservá-lo, o Comitê Olímpico Internacional mantém uma linha tênue entre o financiamento público e privado e faz vistas grossas à falta de autonomia de diversos comitês locais

“Este é o mundo perfeito. Pessoas bonitas, talentosas e dedicadas realizando o seu melhor, elevando os limites do homem.” Mais do que um retrato dos Jogos Olímpicos, a frase do ex-jogador de basquete Oscar Schmidt reflete como esse evento é encarado por bilhões de pessoas ao redor do mundo.

No seu último século de existência essa competição consolidou uma imagem de um mundo à parte, uma espécie de ilha da fantasia que a cada quatro anos é montada num ponto diferente do planeta e dura pouco mais de duas semanas.

Durante os Jogos, quando os torcedores celebram os vencedores, as cerimônias de premiação são milimetricamente executadas, sorrisos de vitória surgem em meio a algumas lágrimas e espasmos de dor, e muita gente fica feliz em testemunhar esse mundo onde o que vale é apenas o mérito. Quem for mais longe, mais alto ou for mais forte, sempre vence. É um mundo sem lugar para a trapaça, a violência, o poder do dinheiro e, especialmente, para a política.

Mas claramente essa imagem, que todos gostariam que fosse verdadeira, é falsa. Em poucos ambientes a política pesa tanto quanto no universo dos esportes olímpicos. E não há como ser muito diferente, embora a maneira como isso seja tratado poderia e até deveria sê-lo.

A grande questão que envolve a política e o olimpismo é o caráter mundial desse movimento. Por ser um organismo privado, qualquer regra que o Comitê Olímpico Internacional (COI) invente, a princípio, não tem validade dentro de um país. E, como o mundo é formado por países, as regras da entidade poderiam não valer em lugar nenhum, e isso seria o seu fim.

Habilidades diplomáticas do COI

Para manter-se de pé, o COI tem de negociar essas regras em cada local e usar de seu prestígio para que sejam respeitadas. O COI também se aproveita do vácuo legal internacional para fazer valer seus pontos de vista. Tudo feito com muita diplomacia. Um dos segredos está na sua habilidade de manter os Jogos Olímpicos numa linha tênue entre o público e o privado. Por um lado, os Jogos são algo como um patrimônio da humanidade, lidando com valores humanos como o espírito de competição, o respeito ao adversário, a ética e o sentimento nacional não-bélico. Por outro, são propriedade de uma espécie de fundação multinacional privada, gerida de forma autocrática por uma pessoa, que divide o poder com apenas mais uma centena de pares.

Para exercer esse poder o COI se vale do fato de ser dono das marcas ligadas ao olimpismo, não só os Jogos Olímpicos e os anéis, mas até mesmo o nome “Olimpíada”. Em muitos países, o direito exclusivo de uso dessa marca pelo comitê olímpico local está registrado em lei. Um deles é o Brasil.

Interferência do Estado

Outro ponto-chave na estratégia do COI é a autonomia dos comitês olímpicos locais em relação aos governos. O COI proíbe qualquer intervenção governamental e assim mantém os comitês subordinados apenas a ele. Se em algum país os governantes interferem no comitê, este é imediatamente suspenso e o Estado, afastado da comunidade olímpica. Por esse motivo, o Iraque chegou a ser proibido de enviar uma delegação e só conseguiu permissão depois que houve um acordo que satisfez o COI.

A entidade, sediada na Suíça, raciocina que se deixasse o Estado interferir nos comitês locais seu poder ficaria muito ameaçado. Mas, muitas vezes, faz vistas grossas, em troca do cumprimento formal de suas regras. Em diversos países, notadamente em ditaduras de direita ou esquerda, os comitês olímpicos são ligados ao Estado. Se não formalmente, na prática. Em Cuba, por exemplo, o vice-presidente do conselho de ministros, José Ramón Fernández, é presidente do comitê olímpico há mais de 30 anos. No Iraque de Saddam Hussein, o cargo equivalente era ocupado por um de seus filhos, conhecido por ser um assassino sanguinário.

Quando o tema passa da autonomia dos comitês nacionais para a organização dos Jogos Olímpicos, a disputa política fica muito mais pesada. Sediar o evento não é mais um fardo como no começo do século XX. Tampouco traz apenas popularidade a quem o organiza. Os Jogos são rentáveis, movimentam dezenas de bilhões de dólares. E os benefícios não param por aí.

Muitos países, especialmente as ditaduras – como a Alemanha em 1936, a URSS em 1980 e a China neste ano –, usam os Jogos não apenas para mostrar capacidade administrativa como também para provar seu poderio econômico e político. E em certos momentos, a disputa entre países interferiu diretamente nos Jogos. Os de 1980 sofreram boicotes liderados pelos Estados Unidos e os de 1984, pela URSS. A redução no número de participantes e a quebra da atmosfera de ilha da fantasia enfraqueceram a imagem do evento, o que certamente o desvalorizou.

Por causa dessa experiência, o COI reforçou sua estratégia para manter os Jogos publicamente “afastados” da política. Desde então, houve apenas episódios isolados – alguns graves, como o atentado à bomba no Parque Olímpico de Atlanta (EUA), em 1996.

Mas em Pequim a política reapareceu em grande escala. Para tornar-se sede, a China teve de aceitar uma série de exigências que fazem parte do marketing social do COI e podem ser resumidas na expressão “legado olímpico” – que nada mais é do que a contrapartida que os cidadãos de um local terão por ver seu governo gastar bilhões de dólares num evento de duas semanas.

Os legados começaram com as próprias instalações, depois incluíram questões urbanísticas e ambientais e, no caso da China, um compromisso com o respeito aos direitos humanos e à liberdade de expressão, valores muito caros ao Ocidente, onde reside a maior base de pressão sobre os dirigentes olímpicos. A China aceitou todas as exigências, ao menos formalmente.

O objetivo do país com os Jogos Olímpicos era dar uma demonstração de seu poderio político, econômico e administrativo, mais ou menos como os soviéticos em 1980. Os chineses realizaram a edição mais cara da história, conquistaram a maioria das medalhas de ouro (51, o maior número obtido por um país desde 1988) e modernizaram Pequim de forma admirável. Além das instalações esportivas e de outras obras arquitetônicas espetaculares, construíram o maior aeroporto do mundo e dobraram sua rede de metrô. Isso sem falar em ações menos visíveis, como a transferência de dezenas de indústrias para o interior, a fim de melhorar a qualidade do ar na cidade.

Prestígio entre governos

O sucesso político foi ainda mais impressionante. A cerimônia de abertura conseguiu reunir o maior número de chefes de governo da história dos Jogos. Foram 80, incluindo alguns que tinham anunciado que não compareceriam, como George W. Bush e Nicolas Sarkozy. O primeiro-ministro britânico Gordon Brown não apareceu no início, mas esteve no encerramento – afinal, Londres será a sede em 2012.

A grandiosidade dos Jogos de Pequim coroa, enfim, um processo de crescimento econômico fantástico da China, que chegou a uma média de 10% ao ano nas últimas três décadas e alçou seu PIB ao terceiro lugar no mundo – em breve será o segundo.

Mas num ponto os chineses quebraram sua promessa. Não houve evolução, ao contrário, houve até algum retrocesso na questão dos direitos humanos. O governo aumentou a repressão às minorias, reforçou e manteve a estratégia de remoção forçada de comunidades inteiras para atender a planos de desenvolvimento, seja para criar espaço para o Parque Olímpico, seja para a construção de barragens, seja para ocupar províncias.

 

*Marcelo Damato é jornalista.



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