O pior cego é o que... - Le Monde Diplomatique

ORIENTE MÉDIO O

O pior cego é o que…

por Amira Hass
1 de novembro de 2000
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A organização israelense de direitos humanos Betselem divulgou um relatório que confirma que as informações dos porta-vozes militares e civis, em geral relativamente confiáveis, desta vez se fazem acompanhar por imprecisões, mentiras e omissõesAmira Hass

Desde o começo da intifada “Al-Aqsa”, a mídia israelense baseia-se em afirmações de porta-vozes militares e civis. Embora normalmente essas informações sejam quase exatas e precisas, desta vez fizeram-se acompanhar por imprecisões, mentiras e omissões. Um exemplo: deram a entender aos jornalistas que o excessivo uso de força para dispersar os manifestantes era necessário e justificado, na medida em que soldados e civis israelenses estavam em perigo. Foi esse o caso na sexta-feira, 29 de setembro, por exemplo, no momento da oração em Al-Aqsa, quando — segundo essa versão — jovens superexcitados jogaram pedras em judeus que rezavam diante do Muro das Lamentações.

Ocorre que a organização israelense de direitos humanos Betselem divulgou um relatório que confirma a versão de testemunhas oculares palestinas: as pedras visavam ao exército de policiais israelenses, cuja presença, na Esplanada das Mesquitas constituía uma provocação. Além do mais, as forças da ordem não usaram gás lacrimogêneo, mas atiraram, imediatamente, com balas revestidas de borracha — mortíferas a curta distância, como foi o caso — para por fim aos apedrejamentos. O sangue derramado nesse lugar santo muçulmano desencadeou uma onda de cólera em todo o país e a morte de jovens palestinos alimentou ainda mais o incêndio.

Alguns “erros deploráveis”

A 20 de outubro, contavam-se 115 palestinos mortos e 4.500 feridos nos territórios ocupados, e 12 mortos e 1.650 feridos no território de Israel. Do lado israelense, o número de mortos era de oito. Foram necessárias dezenas de equipes de pesquisa da Betselem para verificar as circunstâncias de cada um dos dramas. Mas todas as testemunhas constataram que, desde o início, o exército quase não utilizou gás lacrimogêneo, considerado muito eficaz para dispersar multidões sem provocar vítimas. Ao contrário, recorreu regularmente a franco-atiradores (snipers), que alvejavam os manifestantes, mirando a parte superior do corpo — nos primeiros dias de confronto, a proporção de mortos e feridos atingidos acima da cintura foi de 70 %, segundo fontes médicas palestinas.

A maioria dos meios de comunicação israelenses engoliu a interpretação de que os soldados só recorreram às armas porque tinham a vida ameaçada. Foi necessário que câmeras filmassem um fuzilamento, provando que não havia motivos para o fazer, para que o exército admitisse alguns “erros deploráveis”. A única conclusão possível é que o Tsahal [1] tivesse dado ordem de atirar para acabar logo com os problemas. Evidentemente, ocorreu o contrário.

“Tiros para o sol”

Em 6 de outubro, o porta-voz do exército explicava que soldados posicionados no posto avançado da colônia de Netzarim, na faixa de Gaza, haviam aberto fogo sobre os palestinos, por duas vezes, em resposta a tiros por parte destes. Nesse dia, nessa encruzilhada, quatro palestinos foram mortos e 24 foram feridos. Eu estava no local. O porta-voz nada disse sobre as dezenas de tiros isolados ou sobre as rajadas de metralhadora que vinham da própria colônia de Netzarim. Também esqueceu-se de precisar que os soldados instalados nas distantes torres de vigilância haviam utilizado pistolas-metralhadoras diante de milhares de manifestantes desarmados. O objetivo era claro: dissuadir os jovens que protestavam contra a ocupação de se aproximarem dos postos avançados fortificados. Nesse caso específico, os soldados não defendiam suas vidas.

Os porta-vozes relataram quase todos os tiros dados por palestinos armados. Mas a mídia israelense ignorou dois fatos. O primeiro é que, em geral, os palestinos armados só atiravam após a multidão ter sido atacada por franco-atiradores com o objetivo de matar. O segundo é que os tiros dos palestinos não eram precisos, como prova o balanço das vítimas de ambas as partes. Os responsáveis palestinos pela segurança, aliás, lamentaram o que qualificaram de “tiros para o sol”.

Ataques às ambulâncias

Relatando meticulosamente cada confronto desse tipo, apresentado como um “pesado bombardeio” contra o posto avançado militar, os meios de comunicação, evidentemente, reforçaram na opinião pública o sentimento de que Israel estava diante de uma guerra empreendida por um exército de poder comparável ao seu.

A rádio de Israel, com base em informações fornecidas pelo Tsahal, também alegou que ambulâncias palestinas transportavam “pneus e munições” para os diversos lugares de confronto. No entanto, para fazê-lo, os palestinos poderiam facilmente usar veículos particulares. Além do que há representantes da Cruz Vermelha, em todos os lugares onde ocorrem situações de confronto, que controlam o uso das ambulâncias. Essa falsa notícia tinha o objetivo de encobrir os escandalosos ataques das forças israelenses contras ambulâncias palestinas e o assassinato do motorista de uma delas.

Sete anos de desinformação

Na rádio-televisão e nos jornais israelenses, o nome das vítimas palestinas jamais é mencionado (exceto no Haaretz): seu anonimato, para o público judeu, apaga a dor e a revolta de seus parentes. Ao mesmo tempo, tornava-se mais fácil apresentar os acontecimentos como o resultado de um complô fomentado pela Autoridade Palestina. Ora, o seu presidente teme, efetivamente, qualquer agitação, qualquer choque de maiores dimensões, porque sabe que, mais dia menos dia, isso se voltará contra o seu regime autoritário e sua incapacidade de manter a promessa de criar um Estado Palestino independente.

Essa desinformação é o apogeu de sete anos de cobertura inverídica do processo de Oslo: de maneira geral, os israelenses ficaram cegos e surdos às queixas de todos os palestinos, para quem essas intermináveis negociações de paz não levaram a um acordo justo, nem a uma vida digna. E, no entanto, como negar que Oslo encerrou os habitantes dos territórios em dezenas de cadeias, reforçou a colonização e ligou o desenvolvimento econômico à aceitação pel



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