O “pivô asiático” norte-americano contra a “rota da seda” chinesa
Parceria Transpacífica quer não apenas, como já é clássico, erradicar os direitos aduaneiros que ainda restam, mas também elaborar normas comuns sobre todos os produtos (alimentos, agrotóxicos, artigos industriais…), serviços (bancos, cooperativas de crédito, fundos de pensão etc), propriedade intelectual e letígiosMartine Bulard
Rejeitando o acordo preparado pelos especialistas da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre produtos agrícolas, o novo primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, declarou, em 31 de julho de 2014, a morte da Rodada de Doha, já moribunda.1 Claro que seu objetivo – continuar subvencionando os cereais – é principalmente interno. Mas o barulho provocado pelo caso, quando a Índia está apenas em seu primeiro veto, é porque a oposição às pretensões da OMC torna-se cada vez mais numerosa, com a aliança dos países emergentes em defesa de seus interesses contra os mais poderosos, a começar pelos Estados Unidos. Grande parte da máquina de liberalização está emperrada.
Um após outro, os países ocidentais (e as transnacionais) optaram pelos tratados de livre-comércio bilaterais (União Europeia-Canadá, Estados Unidos-Coreia do Sul etc.) e por áreas geográficas: o Grande Mercado Transatlântico (GMT), entre Estados Unidos e União Europeia;2 a Parceria Transpacífica (TPP, do inglês Trans-Pacific Partnership) entre Estados Unidos e onze países do Pacífico… Com essa divisão do mundo em regiões, Washington espera comandar o baile.
Originalmente, em 2005, a TPP reunia somente quatro anões políticos e comerciais (Brunei, Chile, Nova Zelândia e Cingapura), que tentavam resistir ao rolo compressor dos vizinhos. Quatro anos depois, os Estados Unidos assumiram a ideia, com o desejo de conter a potência chinesa, que se aproximou dos países do Sudeste Asiático por meio de acordos de livre-comércio. Washington temia perder sua hegemonia na região e trouxe consigo Austrália, Malásia, Peru e Vietnã, depois Canadá e México, já ligados pelo Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta). Mas foi preciso aguardar até novembro de 2011 para que o Japão, então principal parceiro da China, viesse reunir-se ao cortejo… na ponta dos pés. Desde então, o primeiro-ministro nacionalista, Abe Shinzo, viu aí uma oportunidade para reforçar seu papel de braço direito asiático da América.
Assim se define o que os especialistas norte-americanos chamam de “pacto comercial do século XXI”. Se bem-sucedido, ele cobriria quase metade da riqueza produzida no mundo, 35% do comércio internacional e 30% da população do planeta, o bastante para consolidar o aspecto econômico do “pivô asiático”, definido por Barack Obama quando chegou ao poder – o aspecto militar desenvolve-se graças à ampliação de acordos estratégicos com as Filipinas, Austrália, Vietnã e, claro, o Japão. Como destaca Arvind Gupta, ex-diretor do Institute for Defence Studies and Analyses, trata-se de um “plano global para intensificar o envolvimento, a influência e o impacto dos Estados Unidos nas questões econômicas, diplomáticas, ideológicas e estratégicas na região”,3 com o objetivo de cortar as asas da China. O século deve ser norte-americano – não chinês, como imaginam alguns.
Há uma distância, porém, entre a realidade e os sonhos de Obama. Sua temporada de primavera com os aliados mais próximos (Japão, Malásia, Filipinas e Coreia do Sul) não fechou nenhum assunto. As negociações não estarão encerradas antes das eleições de meio mandato, em novembro, nos Estados Unidos (ver mais pág. 30), ou mesmo antes do fim do ano.
Contudo, os norte-americanos não economizam meios para isso. De acordo com a pesquisadora australiana Patricia Ranald, Washington teria mobilizado nada menos que seiscentos assessores para apoiar os negociadores oficiais. Já o público em geral tem de se conformar em ficar procurando informações sobre o que se anuncia como “o maior livre-mercado do mundo”. O conteúdo das discussões teria permanecido em segredo se não fosse o trabalho e a tenacidade de ONGs como a Electronic Frontier Foundation, a Public Citizen e diversas outras, além de hackers como os do WikiLeaks. O ministro do Comércio Exterior da Malásia reconheceu, após o fracasso das negociações em novembro de 2013: “Vai ser muito difícil [chegar a um acordo]. As recentes revelações do WikiLeaks não vão ajudar no processo”.4
Segundo esses documentos, praticamente nenhuma área da vida está a salvo das transnacionais. A TPP quer não apenas, como já é clássico, erradicar os direitos aduaneiros que ainda restam, mas também elaborar normas comuns sobre todos os produtos (alimentos, agrotóxicos, artigos industriais…), serviços (bancos, cooperativas de crédito, fundos de pensão, seguros etc.), propriedade intelectual e resolução de litígios, com os famosos tribunais de exceção que permitem aos gigantes do mercado privado contestar decisões de governos.5
No que concerne aos direitos de propriedade intelectual, o apetite dos grandes grupos parece não ter limites. Assim, para as patentes “das empresas, os Estados Unidos propõem 95 anos de direitos exclusivos [e até] 120 anos, no caso de trabalhos que não tenham sido publicados”.6 Na medicina, isso significaria o fim dos medicamentos genéricos (a maioria das patentes hoje é válida por vinte anos). Os aiatolás do mercado chegam a exigir que o sistema de patentes seja aplicado aos “métodos de diagnóstico […], tratamento e cirurgias para humanos e animais”. Assim, técnicas de cirurgia cardíaca, por exemplo, ou protocolos inovadores para triagem e tratamento de câncer estariam sujeitos ao pagamento de taxas pelos usuários!
Poderíamos citar ainda o patenteamento de plantas naturais, a supressão das medidas de controle de capitais e da rotulagem de produtos alimentares, incluindo os organismos geneticamente modificados (OGMs). A lista é infinita e variada.
No entanto, mesmo os governos mais liberais estão relutantes, pois a lei do mais forte esmaga os interesses de seus próprios grupos capitalistas. O Canadá rejeita algumas ampliações do direito de propriedade intelectual. A Associação Médica Australiana (AMA), a qual reúne profissionais de saúde, pediu que o governo rejeite qualquer compromisso que “reduza o direito de o governo australiano desenvolver uma política de saúde em consonância com as necessidades nacionais”7 no campo da medicina, da rastreabilidade dos produtos alimentares à luta contra o tabagismo. Até o momento, Sydney não cedeu às exigências norte-americanas. O Vietnã estaria preocupado em proteger seus produtos têxteis e calçados. Cingapura, Malásia e Brunei são contra a introdução de cláusulas relativas à resolução de litígios entre investidores e os Estados.
Mas é no Japão que a resistência parece mais forte. Subsídios, normas, quotas e direitos aduaneiros são sérias barreiras que os japoneses não pretendem suspender assim tão fácil. O primeiro-ministro anunciou a entrada do país nas negociações com entusiasmo e estardalhaço tão grandes quanto sua discrição durante as eleições que o levaram ao poder em 2012. A TPP representa “nossa última chance”, lançou, lírico, em sua coletiva de imprensa: “Perder essa oportunidade seria simplesmente colocar o Japão fora dos lugares de poder do mundo”.8 As negociações, no entanto, emperram nas cinco “vacas sagradas” nipônicas: arroz, trigo, carne bovina e suína, açúcar e laticínios – que somam 586 produtos protegidos por um sistema de quotas. As importações de arroz não podem exceder 5% a 8% do consumo interno ou o governo impõe tarifas aduaneiras que podem chegar a 780%; para o trigo e os laticínios, elas podem chegar a 252%. Nem é preciso dizer que a supressão dessas taxas exigiria uma verdadeira acrobacia política. O Partido Liberal Democrata (PLD), no poder, continua majoritariamente reticente, já que a população rural e suas famílias constituem uma de suas bases eleitorais.
É pouco provável, porém, que Abe renuncie ao acordo. Na verdade, o primeiro-ministro vê aí a oportunidade de o Japão recuperar na Ásia o lugar que Pequim lhe roubou – e é reforçando o discurso nacionalista que ele pretende impor as reformas que nenhum governo conseguiu aprovar até hoje, tanto na agricultura como na indústria. Como as medidas tomadas para revitalizar a máquina econômica – as famosas “abenomics” – não estão funcionando,9 ele aposta na chegada de investimentos estrangeiros diretos para compensar a saída dos grandes grupos japoneses para outros países e modernizar um aparelho produtivo envelhecido: esses investimentos representam apenas 4% do PIB, contra 20% em média nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Mais um milagre esperado da TPP: a abertura de novos mercados para aumentar as exportações, em especial nas áreas nuclear e ferroviária, mas também e sobretudo no setor de equipamento militar, cuja venda no estrangeiro é proibida. Abe negociaria, por exemplo, a redução de tarifas aduaneiras sobre os laticínios e a carne em troca de acesso aos mercados externos de automóveis? O compromisso está no ar. O governo japonês não esconde seu desejo de usar o tratado de livre-comércio que está sendo discutido com a União Europeia para convencer seus agricultores (mais dispostos a aceitar as normas alimentares europeias que as norte-americanas), obter uma abertura europeia para seus carros e, com os resultados alcançados, reclamar uma redução das tarifas aduaneiras norte-americanas sobre os caminhões (25%). Uma estratégia em duas etapas. Obviamente, com essa abordagem, a assinatura da TPP não é para amanhã. E, do lado norte-americano, não há certeza de que o projeto passe facilmente pelo Congresso: os republicanos são majoritariamente contrários, por hostilidade visceral a Obama, e uma parte dos democratas também.
Isso não impede a China de levar as manobras a sério. Christian Edwards, colunista da agência de notícias estatal Xinhua, é bem direto: “Escondidas no pacote da TPP estão as engrenagens de uma máquina feita para impor um quadro regulamentar ao estilo norte-americano, baseada nas necessidades e até nos caprichos das principais indústrias exportadoras dos Estados Unidos, que colocam milhões de dólares em fundos eleitorais, a fim de assegurar rendimentos garantidos”.10 Houve até algumas declarações aqui e ali dando a entender que Pequim poderia juntar-se às negociações. Alguns economistas chineses estão convencidos de que isso permitiria acelerar a onda de reformas e privatizações planejadas pelo presidente Xi Jinping e sua equipe, além de apaziguar as relações com Washington.
Do ponto de vista econômico, o governo chinês não tem nada contra a ampliação dos domínios entregues ao livre-comércio, mas tenta manter o controle do movimento e conservar instrumentos de intervenção, especialmente em tecnologias da informação e controles de capital. Do ponto de vista geopolítico, ele não pretende entrar numa discussão na qual o eixo Washington-Tóquio poderia minar (ou enfraquecer) seu poder.
Assim, desenvolveu seu próprio projeto de Parceria Econômica Abrangente Regional (RCEP, do inglês Regional Comprehensive Economic Partnership), com os dez países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) – Birmânia, Brunei, Camboja, Cingapura, Filipinas, Indonésia, Laos, Malásia, Tailândia e Vietnã –, além de Japão, Austrália, Nova Zelândia, Índia e Coreia do Sul (os dois últimos não envolvidos na TPP). Pequim não deixar de observar que o conjunto abrange metade da população mundial e um terço do comércio do planeta. As negociações já estão em curso, com especial atenção para a Coreia do Sul.
Em más relações com o Japão por causa de uma disputa territorial das ilhas Dokdo/ Takeshima e do revisionismo de Abe, e preocupada com a desaceleração do crescimento, Seul aproximou-se da China, apesar dos desacordos sobre a Coreia do Norte. O presidente chinês pressiona seu vizinho a assinar um novo acordo bilateral de livre-comércio antes do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, que reunirá em Pequim, em novembro, a Asean, todos os países envolvidos na TPP, o México e a Rússia – um acordo com a Coreia do Sul, tradicional aliado norte-americano, seria um bom trunfo para os líderes chineses.
Buscando não se fechar numa relação direta com Washington e ainda dar um brilho a seu projeto, Xi elaborou, para acompanhar suas ambições comerciais, um grande discurso sobre o renascimento da Rota da Seda – em referência às caravanas que, desde o século II a.C., percorriam a Ásia Central e, mais tarde, lançaram-se ao mar, ligando a China à Europa. No mar, as margens de manobra chinesas parecem pequenas. Em terra, o presidente Xi embarcou em uma viagem pelo Cazaquistão, Quirguistão, Turcomenistão e Uzbequistão, no final de 2013. Em março, deu-se ao trabalho de visitar o terminal de uma ferrovia ligando Duisburgo, na Alemanha, a Chongqing, na China (em dezesseis dias, contra um mês de barco), passando pela Rússia, Bielorrússia e Polônia. Ele multiplica os acordos com a Rússia. Seria essa versão moderna da mítica Rota da Seda suficiente para neutralizar o “pivô asiático” dos Estados Unidos?
Martine Bulard é redatora-chefe adjunta de Le Monde Diplomatique (França).