O poder precisa controlar o poder
Gilles Lipovetsky, cientista social francês, considerado um dos pensadores mais originais da atualidade, veio ao Brasil para participar do Fórum de Gestão Pública, promovido pelo Conselho Federal de Administração (CFA). Lipovetsky abriu o evento, que aconteceu de 6 a 8 de junho, em Brasília, com a aula magna “Novos papéis nas relações da Sociedade com o Estado”
A análise clara e precisa de Gilles Lipovetsky descortina uma sociedade pós-moderna, palco da 2ª Revolução do individualismo, que institui o individualismo hipermoderno, responsável pela transformação da nossa relação com a moral e a ética. Nesse contexto, um dos pontos cruciais da administração pública brasileira ganha relevo no cenário da democracia nacional: a relação entre deveres coletivos e interesses pessoais.
O resgate do essencial papel do Estado, de garantidor dos direitos fundamentais ao indivíduo, incita pelo óbvio o que nunca deveria ter se perdido por aqui. Lipovetsky é categórico quando diz que o Estado tem que estar à escuta da sociedade civil, mas tem que ser eficaz. Não pode simplesmente ser uma câmera de registro do conjunto da sociedade civil, deve representar o interesse geral e com autonomia.
Em verdade, o pressuposto democrático, no Brasil, foi absorvido pela ganância hiperindividualista do homem público. Ao contrário de prover a sociedade em suas necessidades pétreas, o Estado passou a retirar, reiteradamente, os únicos meios à viabilização de uma administração pública eficiente, com foco, gestão e resultados. A esse fato, Lipovetsky sacramenta que o Estado deve superar os interesses de categorias isoladas para preparar o futuro, os cuidados das urgências atuais precisam estar alinhados com as metas de longo prazo. A ação pública se honra com o trabalho presente em prol do futuro. “É um jogo entre o respeito da sociedade civil e, ao mesmo tempo, da sua autonomia”.
Nessa transformação, o investimento enfático na educação de base, de professores e diretores ganha protagonismo. É o alicerce para a garantia de gerações críticas, aptas ao enfrentamento dos desafios futuros no que tange a competição econômica mundial, as ameaças ao meio ambiente, a relação emprego X desigualdades e os novos tempos da sociedade do conhecimento e inovação.
O caminho?
A indagação nos leva à reflexão sobre a simbiose entre as contínuas práticas de corrupção com as gestões sem projetos políticos de médio e longo prazo, comprometidos efetivamente com a transformação. Nesse sentido, as recentes operações da polícia e da justiça federal brasileira, que marcaram o início do saneamento dessa espúria relação, inauguram um tempo primordial, segundo ratificou Lipovetsky. Ele nos leva à Teoria de Montesquieu para reforçar que não devemos esperar a diminuição da corrupção, mas o fortalecimento das instituições:
“O poder precisa controlar o poder, ou seja, precisamos de instituições sólidas, capazes de frear as tendências que dizem respeito ao mandamento ético. No Brasil, os hábitos de corrupção se continuavam porque o Estado não fazia o seu trabalho e as leis não eram cumpridas. Agora, o país está na direção certa.”
Revisitar Montesquieu, sem dúvida, avigora a nossa vaga ideia de um Estado autônomo, no qual se reconheçam os três poderes atuando de forma independente e relacionada, ao mesmo tempo. O diagnóstico é preciso: a interferência de interesses alheios à responsabilidade pública para com a sociedade distorce o caráter democrático, provoca a ineficácia e cria um Estado travado em si mesmo.
Voltar os olhos ao imprescindível fortalecimento institucional, sem negar que a corrupção não deixará de existir, ainda que tenha a sua endemia controlada, também nos presenteia com a reflexão sobre a observância das leis, da moralidade e da ética.
E qual seria a relação da corrupção com a moral e a ética na sociedade atual?
De acordo com a teoria de Lipovetsky, o que mudou mais profundamente neste domínio é que o hiperindividualismo coincide com a desutopização da modernidade, a evaporação das religiões seculares e das grandes utopias coletivas. Todos os grandes sistemas ideológicos que marcaram estruturalmente a Modernidade política triunfante, depois do século XVIII, perderam o essencial de sua credibilidade. É essa revolução que permeia toda a sociedade e ela se manifesta na relação com a família, com a religião, no consumo, na moda, no lazer, na alimentação e, obviamente, com a política.
Se o hiperindividualismo promove a laicização da moral e esta, por sua vez, enfraquece o sentido moral das ações, perdem-se também o desinteresse e a universalidade, as duas pedras angulares da moral para Kant. Isto posto, a consciência humana passa a funcionar como fator determinante na construção de mundo, a partir de valores distintos e particulares e a vontade moral passa a ter muitos fins, em detrimento do cumprimento do dever propriamente dito.
A perda de confiança no Estado, a erosão da confiança dos cidadãos nos líderes políticos, partidos e nas instituições democráticas concebem o que o cientista social francês chama de “crise da desconfiança nas democracias”. Um entrave grave, já que a democracia pressupõe a adesão dos cidadãos para com as instituições, eleições, iniciativas do Estado. No Brasil, o equilíbrio entre instituições X costumes, primordial à plena construção democrática, se perde nas duas pontas. Vivemos a sinergia da incompetência.
Nesse fluxo, como em um encadeamento lógico de ação e reação, a desconfiança generalizada se reflete na diminuição do engajamento eleitoral. Mais do que isso, surge o abstencionismo de protesto: a relação entre o aumento dos votos de rejeição em detrimento dos votos de adesão é direta: um número crescente de cidadãos, agora, vota mais “contra” do que “por” um candidato e um programa.
Tal realidade, que permeia muitos países, não sendo exclusividade do Brasil, evoca que a maioria dos cidadãos na Espanha, por exemplo, declara não confiar mais nos partidos. Na Europa, nem na União Europeia, eles acreditam mais. A desconfiança nos homens políticos progride em quase todos os partidos populistas e os votos de protesto, antissistema, antielite. Na Europa, como nos Estados Unidos aumentam a rejeição às elites políticas e o sucesso dos discursos demagógicos populistas.
Outro fenômeno que explica esta ampla corrente de desconfiança em relação à política é a corrupção. Uma grande parcela de cidadãos julga que seus representantes políticos são corruptos e que só pensam nos seus próprios interesses. O ponto alto da teoria de Lipovetsky é a analogia direta da cultura individualista com a dissolução da força de obrigação dos mandamentos morais, em benefício primeiramente “de cada um por si, do ganho individual em primeiro lugar”.
Mas, ele vai além: se por um lado, se institui um individualismo irresponsável, favorável à corrupção, por outro, surge também um individualismo responsável.
“Não estamos ao nível zero dos valores. O sentido de indignação moral não está de maneira nenhuma morto, o sentido do bem e do mal não desapareceu”, destaca o francês. Em síntese, o hiperindividualismo abre, sim, caminho ao aumento da prática da corrupção, um fenômeno muito antigo, mas não nos condena a ver a prática se desenvolver sistematicamente.
Nesse contexto, ganham relevo as novas formas de participação, do cidadão que não segue a via eleitoral clássica, as mobilizações e as atividades políticas que se desenvolvem fora dos partidos. Vê-se progredir novas formas de solidariedade coletiva, de questionamento e de denúncia do poder.
Lipovetsky reflete ainda que o que se pronuncia é uma democracia em que os cidadãos possam intervir diretamente, uma democracia de supervisão dos poderes pela sociedade civil e não mais monopolizada pelos partidos. A regressão do espírito público, nesse sentido, é vista com otimismo pelo teórico. Apesar de ser uma questão bastante preocupante, ela dá lugar aos efeitos positivos da revolução individualista, no que diz respeito à consolidação e à paz democrática. A equação é simples: quanto menor a capacidade do exercício de sua soberania, maiores pacificidade e estabilidade terão as democracias da hipermodernidade.
Ao contrário de muitos observadores pessimistas, que temem a queda da democracia com a atual crise que vivemos, Lipovetsky assegura que, apesar de todas as críticas, do descrédito ao sistema político brasileiro e da crise de participação eleitoral, ainda há uma grande adesão aos valores democráticos. “A democracia não está ameaçada. As próprias críticas denotam a vitalidade da vida democrática”.
Wagner Siqueira é Atual presidente do Conselho Federal de Administração, autor de mais de dez livros sobre Administração e de outros quatro sobre política e ação legislativa, entre eles ‘As Organizações são Morais?’. Filho de Belmiro Siqueira, Patrono dos Administradores no Brasil.