O princípio da afetividade e os direitos poliafetivos: o desejo de legitimação da não-monogamia no Brasil
Será que é possível ser efetivamente livre para viver uma relação poliafetiva se a ela não são atribuídos os mesmos direitos das demais uniões legitimadas pelo ordenamento jurídico?
Se alguém rompe com uma estrutura tradicional de família, se pode ser caracterizado como um perverso, este tem seu lugar garantido na sociedade. Ele é o que não se deve fazer. Ele tem uma função importante e terá suas regalias asseguradas enquanto assumir a condição de errado. Tal condição é particular e toda sociedade tem espaço para um certo número de casos. No entanto, se o rompimento com a estrutura familiar é acompanhado de um desejo de legitimação dessa conduta, esse indivíduo é inaceitável e um bom candidato ao martírio”. O trecho acima se encontra no bojo do livro A alma imoral, do rabino e escritor Nilton Bonder. Com enorme repercussão, tal obra, um tanto quanto disruptiva, foi adaptada para o teatro em 2006, e o espetáculo segue sendo um sucesso, com apresentações periódicas por todo o Brasil, retornando às apresentações em São Paulo no próximo mês de janeiro.
Como bem retratado no livro, a família é uma construção cultural que, assim como as diversas outras instituições sociais e jurídicas, sofreu e ainda sofre alterações em sua concepção e formulação ao longo do tempo e do espaço[1]. Ao questionar a estrutura tradicional da família, o trecho de Bonder pode ser lido à luz de diversas épocas. Seja por meio da conquista dos direitos à igualdade feminina, seja pelos avanços no campo dos direitos homoafetivos, a ideia de família foi se transformando com o passar do tempo.

A transição da ideia de unicidade dos arranjos familiares — representada pela família matrimonializada, patriarcal, hierarquizada e subserviente à religião — para a família democrática, caracterizada pela igualdade entre seus membros e pela promoção do desenvolvimento da personalidade de seus integrantes, demandou diversas modificações jurídico-sociais. Tais modificações foram fundamentadas, primordialmente, em um eixo central: o afeto[2].
A opção do constituinte de 1988 por estabelecer o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento regente de todo o ordenamento jurídico brasileiro conferiu a esse princípio uma dimensão positiva, indicando a necessidade de adoção de medidas promocionais para que ele seja plenamente alcançado. Essa escolha, portanto, reflete-se em todo o ordenamento jurídico, gerando diversas consequências, inclusive no Direito de Família. A partir do século XXI, a afetividade passou a ocupar um lugar central nos vínculos familiares, não em substituição aos critérios biológicos ou matrimoniais, mas ao lado deles, podendo coexistir ou existir de forma autônoma.
Todavia, o afeto, por si só, ainda encontra limitações quando utilizado como elemento suficiente para legitimar juridicamente certas organizações familiares. Famílias cujo núcleo fundante é composto por três ou mais pessoas que se relacionam afetivamente de maneira simultânea ainda enfrentam obstáculos para obter o reconhecimento legal. Dessa forma, é necessário refletir sobre a abrangência do princípio da afetividade como fundamento para o reconhecimento jurídico de uma unidade familiar, bem como sobre sua extensão e aplicabilidade aos trisais e demais uniões poliamorosas.
Em junho de 2018, o plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu que os cartórios brasileiros não poderiam registrar uniões poliafetivas, formadas por três ou mais pessoas, em escrituras públicas. A maioria dos conselheiros (e não todos, é preciso ressaltar) considerou que esse tipo de documento atesta um ato de fé pública e, portanto, implica o reconhecimento de direitos garantidos a casais ligados por casamento ou união estável, tais como aqueles relacionados à herança ou previdência[3]. Tal decisão ocorreu após o pedido da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), que observou que dois cartórios de comarcas paulistas, em São Vicente e em Tupã, teriam lavrado escrituras de união estável poliafetivas.
A argumentação dos conselheiros, no entanto, utilizada para proibir tais registros, pode ser lida à luz do trecho de Bonder: essas organizações familiares poderiam existir enquanto assumissem ‘a condição de erradas’, mas o desejo de legitimação, por meio de um ato de fé pública, que concederia direitos iguais às uniões entre duas pessoas, seria inaceitável.
É importante ressaltar que as competências do CNJ se limitam ao controle administrativo e não jurisdicional, conforme estabelecido na Constituição Federal. Ao argumentar que as escrituras públicas servem para representar as manifestações de vontade consideradas lícitas, a análise se baseou meramente em uma lógica de subsunção acerca da legalidade ou não de tais registros, sem, no entanto, aprofundar a discussão sobre a possibilidade ou não da existência de uma união poliafetiva.
A ministra Cármen Lúcia, que à época também ocupava o cargo de presidente do CNJ, afirmou que não seria atribuição do Conselho Nacional de Justiça tratar das relações entre as pessoas, mas, sim, do dever e do poder dos cartórios de lavrar escrituras. Nas palavras dela: “Nós não temos nada com a vida de ninguém. A liberdade de conviver não está sob a competência do CNJ. Todos somos livres, de acordo com a Constituição.” Será mesmo? Será que é possível ser efetivamente livre para viver uma relação poliafetiva se a ela não são atribuídos os mesmos direitos das demais uniões legitimadas pelo ordenamento jurídico?
É importante ressaltar que não há nenhuma lei que proíba expressamente a união poliafetiva. O que existe no ordenamento jurídico é apenas a vedação de que pessoas casadas contraiam outro casamento (artigo 1.521, VI, do Código Civil). Mas não é disso que se trata. Aqui, não se discute a existência de dois núcleos familiares coexistindo simultaneamente, mas sim um único núcleo familiar composto por mais de duas pessoas que se relacionam afetivamente. A diferença é clara.
Em dezembro de 2023, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o PL 4302/2016, que proíbe o registro civil de uniões poliafetivas no Brasil.[4] Segundo o relator Filipe Martins (PL-TO), “se este tipo de afetividade fosse equiparado à família, seria necessário reescrever a Constituição, o Código Civil e as legislações previdenciárias, entre outras. Além disso, todas as políticas públicas de atenção à família teriam de ser reformuladas”.
Tal argumentação, no entanto, deixa clara a intenção do parlamentar de estancar o pé no passado e impedir que a legislação acompanhe as transformações sociais. É preciso relembrar que também foi necessário reformular as políticas públicas e promover alterações no ordenamento jurídico (seja por meio de mudanças na lei, seja por meio de mudanças hermenêuticas) para que fosse possível alcançar os direitos femininos e homoafetivos em um passado não tão longínquo.
Nessa linha, votou contrariamente ao projeto a deputada Erika Kokay (PT-DF): ‘Você não pode excluir o acesso ao cartório em uniões que são estabelecidas por pessoas adultas, com livre consentimento e pautadas no próprio afeto. Quem acha que pode reger as relações? Ou quem acha que pode reger as famílias ou determinar quais são as famílias que precisam e podem existir?
A justificativa apresentada nas razões deste Projeto de Lei aponta que, supostamente, os registros de uniões poliafetivas feririam de morte a família tradicional[5]. No entanto, ao se utilizar o termo “família tradicional”, percebe-se, por si só, um anacronismo que contraria diretamente o princípio da pluralidade de arranjos familiares — um princípio amplamente reconhecido pela doutrina, pela jurisprudência e com respaldo constitucional.
É importante ressaltar que o mencionado acima se trata meramente de um projeto de lei, que ainda não possui vigência no ordenamento jurídico. Tal PL encontra-se, no momento, em análise pela Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial, devendo, posteriormente, ser aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
Em suma, a ampliação de direitos às famílias não monogâmicas, diferentemente do que o PL maliciosamente alega, não se mostra uma ameaça à existência da família tradicional. Assim como a união estável não deu fim ao casamento e a união homoafetiva não suprimiu a heterossexualidade do mundo, a relação poliamorosa não influenciará de nenhuma maneira as uniões a dois. Reconhecer e tutelar os desdobramentos de uma nova forma de constituição familiar e refletir sobre suas repercussões jurídicas, independentemente de valores morais ou religiosos, mostra-se essencial para que o princípio da afetividade não seja apenas uma abstração jurídica, mas que tenha, de fato, uma aplicabilidade prática no ordenamento brasileiro.
David Igor Rehfeld é pós-graduando em Direito Processual Civil pela Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela FND – UFRJ. Associado ao Instituto Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões – IBDFAM. Sócio do Escritório Pires, Kaufmann e Rehfeld Advogados.
[1] BODIN DE MORAES, Maria Celina. A Família Democrática. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, v. 13-14, p. 47-70, 2005.
[2] FARIAS, Cristiano Chaves de. A família da pós-modernidade: em busca da dignidade perdida da pessoa humana. Revista de Direito Privado, v. 19, p. 56-68, jul./set. 2004.
[3] https://www.cnj.jus.br/cartorios-sao-proibidos-de-fazer-escrituras-publicas-de-relacoes-poliafetivas/#:~:text=O%20Plen%C3%A1rio%20do%20Conselho%20Nacional,mais%20pessoas%2C%20em%20escrituras%20p%C3%BAblicas.
[4] Fonte: Agência Câmara de Notícias: https://www.camara.leg.br/noticias/1031226-comissao-aprova-projeto-que-proibe-uniao-poliafetiva/#:~:text=A%20Comiss%C3%A3o%20de%20Previd%C3%AAncia%2C%20Assist%C3%AAncia,entre%20mais%20de%20duas%20pessoas.
[5] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1434397