O processo
O documentário O processo, de Maria Augusta Ramos, com algum tipo de mediação, pode ser comparado ao desfile de 2018 da escola de samba Paraíso do Tuiuti. Em certo sentido, o filme é um grito de: “Pera aí! Não foi bem assim!”
Para uma parte imensa da população brasileira, o debate sobre o golpe de estado de 2016 e o processo de desagregação social aberto como consequência deste está completamente interditado pelo oligopólio midiático. Em alguns raros momentos, seja nas discussões sobre os ataques ao colchão de proteção social construído desde 1930, seja nos debates sobre a resolução da crise política, as vozes dissonantes que se opõem ao modelo de sociedade que vem sendo colocado em prática a toque de caixa desde agosto de 2016 encontram brechas. Sem dúvida alguma o maior desses “chapéus” dados sobre o oligopólio midiático foi o desfile da Paraíso do Tuiuti, quando por cerca de uma hora o desmonte da CLT foi duramente atacado em um dos programas de maior audiência da televisão brasileira. O documentário O processo (2018), dirigido por Maria Augusta Ramos, com algum tipo de mediação, pode ser comparado ao desfile da escola de samba. Em certo sentido, o filme é um grito de “Pera aí! Não foi bem assim!”. Isto se o documentário conseguir romper os curtos circuitos da distribuição comercial (o filme entrou em cartaz no dia 17 de maio).
Montado de maneira simples, sem grandes artifícios e com uma narrativa cronológica, Maria Augusta Ramos aponta sua câmera para os senadores do PT e os acompanha da abertura do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados até o seu desfecho em 31 de agosto de 2016. Em uma das primeiras reuniões filmadas pela documentarista, o grupo admite claramente ser este “um jogo de cartas marcadas”, sendo sua função apenas a de tentar deslegitimar e desgastar politicamente o processo, missão que o documentário assume com muita competência. Extremamente didático em relação às enfadonhas discussões sobre pedaladas fiscais, o filme explica claramente o que ninguém conseguiu ou teve espaço de explicar: não foram as manobras fiscais que derrubaram a presidenta. O processo (o concreto, não o filme) foi um mero ritual, uma mera formalidade para a concreção de algo mais brutal.
E brutais são os personagens. De ambos os lados. Livre das blindagens e maquiagens midiáticas, os perpetradores do impeachment ganham outra dimensão. As performances ao longo das sessões de Antônio Anastasia, Cássio Cunha Lima, Janaína Paschoal, o balbuciante Aloysio Nunes Ferreira e grande elenco, comprovam, como afirmou o professor Marcos Nobre em recente entrevista, um dos aspectos mais nefastos da crise política em que nos enfiamos: a tentativa desesperada de atores irrelevantes se transformarem em relevantes. Sob essa perspectiva, a de “empoderamento dos irrelevantes”, a verdade é que o processo (o filme e o concreto) acabaram quase que por osmose dando relevância a tantos outros irrelevantes. Gleise Hoffman, Lindberg Farias e José Eduardo Cardozo ganham uma grandeza que não têm. É irresistível – e em certos aspectos deprimente, sob qualquer perspectiva – comparar o estado maior petista de O processo com aquele de Entreatos (2004), de João Moreira Salles. Gilberto Carvalho, um dos sobreviventes do Entreatos, tem no novo documentário uma importante participação, ao elaborar uma autocrítica – mais para um mea-culpa – feita sob medida para muitos grupos críticos aos governos do PT, mas que se organizaram nas ruas para tentar influir no processo (concreto). O simpático aceno de Gilberto Carvalho vem tarde. A rua, local onde o PT se construiu, foi negligenciada, quando não combatida pelo partido, desde o Entreatos. E a rua foi conscientemente deixada de lado durante o processo (concreto), apesar dos apelos da senadora Fátima Bezerra. Só restou o “jogo de cartas marcadas”, quando o vaidoso José Eduardo Cardozo se ilude ao acreditar que está expondo a ilusão da legalidade do processo (mais uma vez o concreto). A contradição entre forma e conteúdo é escandalosa para o professor de direito que não passa de um idiot savant.
Segundo Michel Vovelle, a fé cega dos constitucionalistas do regime do Diretório inaugurado no ano III da Revolução Francesa (1795) no equilíbrio entre os diversos poderes da república fez com que estes notáveis burgueses negligenciassem qualquer recurso para o caso de um conflito insolúvel entre os poderes Executivo e Legislativo. Por outro lado, alguns contemporâneos – menos ingênuos que os defensores da versão montesquiana da mão invisível equilibristas – chegaram a se perguntar se o golpe de estado não era a única solução concreta para consecução do ideal equilíbrio dos poderes. O processo (o concreto e o filme) expõe de maneira melancólica o preço pago pela ingenuidade do Partido dos Trabalhadores de acreditar na mão invisível e impessoal que regularia as relações políticas da República. Desdobramento quase óbvio da crença na possibilidade de minorar as desigualdades sociais fundamentais do país sob a égide da mão invisível do mercado.
*Fernando Sarti Ferreira é doutorando do programa de História Econômica da Universidade de São Paulo.