O Programa Aproxima, a cidade e o capital
Análise detalhada do programa revela seus reais objetivos e os enormes riscos de que a gentrificação de nossas cidades se torne uma política de governo
O programa Aproxima foi lançado no dia 7 de junho pelo Ministério da Economia (ME) e o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) como uma grande inovação de gestão já no final do governo Bolsonaro.
Apesar das expressas boas intenções, olhando de perto, a história do Aproxima revela mais descaminhos e dificuldades de um governo que se distancia da realidade social de seu povo, além de artifícios que o fazem se aproximar apenas dos interesses corporativos de um capital imobiliário, que assim como o governo, vê nossas cidades como espaços para a melhoria do ambiente de negócio e da produtividade.
O objetivo do governo é facilitar a alienação de imóveis públicos da União, bem localizados e subutilizados, para fins de habitação social, algo já previsto no ordenamento jurídico nacional. Já a análise detalhada do programa, legislação, portarias e declarações do governo federal revela seus reais objetivos e os enormes riscos de que a gentrificação de nossas cidades se torne uma política de governo.
O Aproxima é inspirado nas parcerias público-privadas (PPPs) de habitação de São Paulo, o Casa Paulista, que prevê a destinação de imóveis por prazo determinado. Já no caso do Aproxima está prevista a alienação dos imóveis públicos. Sua idealização e pré-lançamento remontam ao inicio do atual governo, como apontado por veículos de mídia em setembro de 2019 em entrevistas com o então secretário de Desenvolvimento da Infraestrutura (SDI) do ME, Diogo Mac Cord de Faria, seu idealizador.
O aparato legal que viabiliza o Aproxima está desenhado no artigo 7º da Lei no 14.118/2021 que institui o Programa Casa Verde Amarela (CVA), e revê os princípios e as diretrizes da destinação dos imóveis da União. O referido artigo foi inserido pelo relator da Medida Provisória que criou o CVA em 2020, e segue o formato exato do que viria a ser lançado, logo após a edição da Lei, como sendo um novo programa do ME. Sim, estamos falando do segundo, ou terceiro lançamento de um mesmo programa. E, sim, estamos falando de uma tabelinha interessante que cria o poder Executivo-técnico-legislador.
O deputado Isnaldo Bulhões, MDB de AL, relator da MP 966/2019, em total sinergia com o Executivo, criou um novo arcabouço para a destinação de terras públicas da União em substituição ao § 2o do art. 6o da MP enviada pelo Executivo, que autorizava, observada a legislação, a destinação de imóveis para o CVA, tanto para habitação como para intervenções em geral, considerados usos mistos. Esse dispositivo não trazia qualquer efetiva alteração ou novidade, visto que desde 2007 a Lei no 11.481 já havia pacificado e autorizado a destinação de imóveis da União para fins de Moradia com possibilidade de utilização de diversos instrumentos como: concessão de direito real de uso, concessão de uso especial para fins de moradia, aforamento, doação, instrumentos que constam até hoje na legislação patrimonial e permitem que a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) destine imóveis para fins da política de habitação de interesse social (HIS), inclusive para regularização fundiária.
Com o Aproxima, as áreas públicas da União que forem objeto de interesse do mercado imobiliário serão destinadas a projetos privados de requalificação absolutamente e exclusivamente gestados e propostos pelo mercado, sendo que o poder local deve anuir as propostas e adaptar sua legislação para que as modelagens do empreendedor se efetivem. Em troca haverá algum percentual do investimento relacionado à habitação, montante definido pela mesma modelagem econômica-financeira das mesmas empresas.
Vejamos como isso ocorre, mas antes é importante ressaltar quais são as efetivas inovações do Aproxima.
O poder Executivo-técnico-legislador inovou profundamente em cinco pontos: i) ao dispensar a autorização legislativa para alienar o patrimônio da União para entes privados. Sim, ao contrario da legislação dos municípios e estados, a União, agora, pode negociar seus imóveis sem qualquer controle do legislativo; ii) a União está autorizada a destinar esses imóveis para qualquer uso desde que parte esteja gravado como habitação, não necessariamente associada a HIS, mas apenas dentro do CVA, o que contempla todas as faixas do FGTS; iii) a destinação é para qualquer uso, desde que exista contrapartida no projeto relacionada à habitação, o que pode envolver um shopping center ou qualquer outro empreendimento; iv) após as contrapartidas serem entregues, a propriedade plena dos imóveis é repassada ao empreendedor; e, por fim, v) por força da lei, não pode haver qualquer pagamento em pecúnia pelos imóveis, ou seja, apenas contrapartidas ligadas à habitação, não necessariamente unidades habitacionais, podendo ser serviços como de zeladoria ou condomínio.

Os legisladores, e o executivo federal, notadamente os interesses que orientam a desestatização, a simplificação de registros e a flexibilização das regulações ambiental e urbanística imprimiram uma estrutura formalmente legal à destinação corporativa desses imóveis. Por corporativa entenda-se tanto o reforço da lógica expressa por Milton Santos, em sua obra basilar Metrópole corporativa e fragmentada, quanto corporativo no sentido do distanciamento do interesse público e coletivo.
A destinação de imóveis públicos, ainda que previamente autorizada, deve sempre prescindir de procedimentos enquadráveis na ideia de um processo licitatório com regras claras e que visem o interesse público acima de tudo. No caso do Programa Aproxima, por princípio, há fragilidade no processo de destinação, uma vez que não fica claro o interesse público e quais os mecanismos de controle social e transparência pública.
Ainda assim, o governo federal está publicando um edital de chamamento de propostas de empreendedores para que os municípios, em 45 dias, apresentem esses projetos e demais documentos para essas áreas. De onde sairão esses projetos? Quais prefeituras têm carteiras de projetos e articulação com o capital imobiliário para que este produza em beneficio da cidade?
Ainda que as propostas do setor privado sejam apresentadas pelos municípios, fica claro, na legislação e também no lançamento do Aproxima, que o ente público tem a prerrogativa exclusiva de anuir com o interesse privado. A princípio não haveria problemas caso houvesse formas de assegurar o cumprimento da função social da cidade, do patrimônio publico e a produção de fato de habitação de interesse social. Todos esses itens inexistem no programa.
Nos termos colocados no atual lançamento do Aproxima, o governo entende apenas dar incentivos e desburocratizações para que o setor privado inove potencializando ao máximo o uso dos imóveis em beneficio do ambiente de negócios. O governo identifica no programa a solução para a perda de produtividade urbana através da obrigatoriedade dos municípios apresentarem propostas das empresas na mudança de sua legislação urbanística para viabilizar o empreendimento. De fato, como acontece com as inovações em regularização fundiária também no contexto do CVA, o governo federal legaliza mecanismos para que setor privado ordene o território urbano, enquanto o município se resume à posição de despachante.
Para aproximar mais ainda os interesses corporativos do ordenamento das cidades, a total segurança na viabilidade de tais empreendimentos é reforçada por outras três medidas apontadas, respectivamente, nos §§ 2o, 6o e 10o do art. 7o da Lei no 14.118/2021.
A avaliação dos imóveis públicos deve acontecer antes da mudança de uso da legislação municipal. Ou seja, avalia-se o imóvel no momento que ele não cumpre sua função, que não há interesse de mercado, por exemplo, terrenos industriais ou em áreas de ferrovia abandonados. Ao mesmo tempo, são obrigatoriamente realizadas pelo município as necessárias mudanças de uso para que o coeficiente máximo de aproveitamento do imóvel aconteça e a modelagem do mercado se viabilize. E, por fim, não são aceitas contrapartidas pecuniárias, podendo ser as mesmas em unidades habitacionais, serviços ou outros componentes que não necessariamente asseguram a moradia, inclusive parte deles parcialmente pagos pelos moradores. Em resumo, compra-se o mico pelo valor de face na garantia de sua imediata transformação legal em uma mina de ouro, sem desembolsar nenhum tostão.
A segurança do empreendedor é absoluta e o seu poder de barganha extrapola os limites constitucionais ao definir que as mudanças urbanísticas que propõe sejam realizadas pelo município. Essa é uma condicionante para a viabilidade da contrapartida, critério analisado pelo governo federal para efetivar a destinação do imóvel.
Ou seja, o ônus recai no ente local, no município em específico e na sociedade como um todo, pois ao contrário dos preceitos de participação social no planejamento urbano expressos no Estatuto das Cidades, a cidade será obrigada a flexibilizar a regulação do seu território, criando mudanças em seu ordenamento para viabilizar o empreendimento exclusivamente, ou, quando muito, viabilizar os interesses restritos dos beneficiários diretos de contrapartidas estabelecidas pelo ente nacional, via MDR.
Em suma, os terrenos da União entrarão no mercado imobiliário via gabinete único do Executivo nacional, na medida do interesse exclusivo de um capital imobiliário desregulado, flexibilizando a legislação local, a preço muito aquém de seu potencial e das funções sociais que poderiam cumprir, e com segurança total do investimento privado, que só aportará recursos no próprio projeto, a partir do momento que as modelagens (econômicas, financeiras, jurídicas e urbanísticas) e o projeto de intervenção, apresentadas por ele mesmo via edital de licitação, passarem a ser inteiramente reconhecidos e assegurados pelo poder público, inclusive com o compromisso do poder público municipal em mudar sua regulação urbanística para viabilizar o negócio.
Como se tratam de grandes áreas públicas, normalmente em zonas centrais e áreas portuárias hoje extremamente bem localizadas, não é difícil imaginar consórcios entre empresas para a proposição de propostas únicas. Da maneira como a lei foi editada, em especial no que toca o uso e o potencial construtivo, logo a função social dos imóveis e o princípio da concorrência estão absolutamente excluídos do certame.
Preservando a intenção clara do governo federal em disponibilizar da maneira mais célere os imóveis da União, poder-se-ia garantir minimamente esses objetivos com certa transparência e respeito federativo ao instituir, por exemplo, a necessidade de participação social a exemplo dos concursos públicos de projetos ou instrumentos como os planos de bairro, os projetos de intervenção urbana (PIU) e o respeito ao plano diretor participativo e as suas instâncias de controle e monitoramento.
Vale ressaltar que o mecanismo de PPP instalado é deveras simples, dinâmico e, depois do esforço do Executivo-técnico-legislador, totalmente legal. Se é moral ou ético, essa é outra discussão. Há em nosso arcabouço institucional e normativo prerrogativas, inclusive constitucionais, que asseguram e têm produzido intervenções nas cidades no sentido oposto aos riscos e objetivos do programa. O respeito ao princípio da função social e ambiental da propriedade da União, à autonomia municipal, à participação social e aos planos diretores e demais instrumentos urbanísticos, jurídicos e tributários municipais, além do respeito à lei de licitações, afasta esse programa do que os urbanistas chamam de cidade para as pessoas e não para o mercado.
Considerando a dinâmica da urbanização brasileira e latino-americana, o CVA e o Aproxima, um de seus tripés, institui as bases legais e programáticas para que processos históricos de “espoliação e expropriação urbana”, nos termos de Lúcio Kowarick, se tornem o principal motor do desenvolvimento urbano, resultando em dinâmicas de reestruturação, refuncionalização, gentrificação, agora institucionalizadas e legalizadas.
Renato Balbim é doutor em Geografia Humana e membro do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU).