Direito ou gentrificação?
A substituição das populações originais por outras de maior renda contribuirá para a radicalização do “modelo” centro versus periferia, que tem por base o preço da localização e pressupõe que os mais pobres devam ocupar dispersamente as margens da cidade, em locais sem infraestrutura e equipamentos sociais Manoel Ribeiro
O Rio de Janeiro é conhecido por ter parte de suas “periferias” nas áreas centrais, em forma de favelas, genuínos focos de resistência à centrifugação dos mais pobres, deflagrada pelos preços da terra e pelas leis de mercado. Desde a década de 1980, uma série de programas de dotação de infraestrutura vem sendo testada e aprimorada, de acordo com o conceito de que as favelas são apenas uma tipologia peculiar de malha urbana, uma expressão urbanística da dívida social brasileira. Infelizmente, a partir de 2014, tais programas foram abandonados e as favelas anteriormente beneficiadas deixaram de ser objeto de uma manutenção regular, caminhando celeremente para a deterioração.
Em contraposição, os programas de regularização fundiária em favelas entraram em moda, numa clara inflexão da política pública, passando a atuar num plano ideológico e dando prioridade à regularização da propriedade em detrimento do saneamento, saúde, educação, esporte, lazer e mobilidade. A “nova” política baseava-se no argumento de que os mais pobres “merecem” o direito à propriedade e que uma certidão do Registro Geral de Imóveis (RGI) lhes garante a não remoção.
A origem dessa onda “bem-intencionada” está no livro O mistério do capital, do economista Hernando de Soto,1 proeminente assessor do ex-presidente do Peru Alberto Fujimori.2 A ideia defendida por De Soto é que a significativa massa de pobres deveria ser incorporada ao mercado, navegando no crédito, viabilizado pela formalização de suas “propriedades informais”, a se constituírem em garantias reais.
Essa modalidade de intervenção privilegia o individualismo, ignorando a possibilidade de regularização do “bem comum”, num esquema de tipo condominial por cotas, de modo a permitir a eventual liberdade de comercializá-las isoladamente, sempre mantendo a unidade do todo. Tal discurso “incorporacionista” é apresentado como panaceia universal para promoção da ascensão social, centrada no acesso ao consumo mediante o endividamento. Essa estratégia lembra muito o recente desastre dos subprimes, que se iniciou nos Estados Unidos e, por meio da securitização de hipotecas de alto risco, abalou a economia mundial.
Especialmente no Rio de Janeiro, os defensores da tese do economista peruano parecem não distinguir as diferenças entre as favelas centrais e bem localizadas e aquelas das periferias urbanas ou dos loteamentos irregulares.3 Essas diferenças se referem não só às tipologias de ocupação do solo e construtivas, mas sobretudo às relações desses assentamentos com seus entornos formais. As favelas centrais, bastante densas, são enclaves precarizados inseridos em áreas formais muito valorizadas, enquanto os assentamentos periféricos (favelas ou loteamentos clandestinos/irregulares) se diferenciam bem menos de seus entornos tanto pela densidade e tipologia de ocupação como por seus valores de mercado. De fato, favelas periféricas ou loteamentos irregulares, quando em sítios seguros, aptos a receber uma infraestrutura condizente, seriam candidatos adequados para os programas de regularização fundiária, focados na individualização dos lotes, sem maiores consequências. Vigário Geral, Parada de Lucas ou os loteamentos clandestinos de Campo Grande são casos aptos a esse tipo de regularização, já que os segmentos de renda mais alta não se interessam por essas localizações.
Já as favelas centrais, bastante densas e com localização privilegiada, muitas vezes com vista deslumbrante, merecem uma observação mais acurada sobre o que pode lhes acontecer diante de um programa generalizado de regularização fundiária, na modalidade “individualização dos lotes”. De partida, é preciso entender por que as populações das favelas centrais conseguem manter-se em parcelas de terra urbana tão bem localizadas e de baixo valor, sem serem alvo de propostas de compra por parte de incorporadores, capazes de reformar inteiramente essas áreas, transformando-as em locais exclusivos de alta renda.
Parte da resposta é que as populações de rendas média e alta não compram terra sem o respectivo RGI. A outra razão é que algumas dessas áreas não contam com um sistema viário que permita o acesso de automóveis. Nesse ponto, a tese de De Soto recebe o apoio de um discurso oficial que traz à baila mais uma panaceia generalizante – a abertura de vias, com o argumento da ameaça de “inviabilizar o combate ao crime organizado”, pelas dificuldades de acesso dos camburões policiais. Tal argumento não se sustenta, pois algumas favelas de periferia ou conjuntos habitacionais “do BNH” ostentam generosos e organizados sistemas viários e permanecem inteiramente dominados pelo tráfico, tais como Cidade Alta, Amarelinho, Antares, Complexo da Maré etc.
Por outro lado, a abertura de vias, nas favelas centrais, pelo alargamento das ruelas e becos poderá destruir uma estrutura de ocupação que dá base física ao exercício do papel que cada favela desempenha no drama urbano carioca. Esses papéis é que dão razão de ser a essas favelas e provêm de uma dinâmica econômico-social peculiar, que as articula com a cidade formal.
Nesse sentido, podem-se citar dois exemplos notáveis: a Rocinha, em pleno São Conrado – bairro de classe média alta da zona sul do Rio –, que funciona como um centro de comércio e serviços 24 horas, com seus bares, restaurantes, mercados, hostels etc.; e o Complexo do Pavão/Pavãozinho, localizado entre Ipanema e Copacabana, que desfruta de uma bela vista das ilhas oceânicas das Cagarras e constitui um extraordinário mecanismo de inserção de migrantes nordestinos na economia urbana, mais eficiente que o Sine,4 com seus sistemas familiares de comunicação e equipamentos de hospedagem. Jovens nordestinos, avisados por familiares, já chegam com emprego garantido, hospedam-se em uma das numerosas pensões da favela e, em pouco tempo, arranjam uma esposa cujos pais dispõem de uma laje para construção de uma casa para a nova família.
Nas localidades exemplificadas, a abertura indiscriminada de vias nos atuais eixos de circulação de pessoas, onde se localizam os pontos de encontro e as lojas comerciais e de serviços, destruiria a base física que dá suporte aos papéis referidos. Na prática, eliminaria a base econômica existente e prejudicaria a convivência social.
Propriedades individuais regularizadas em localizações com vistas deslumbrantes certamente criariam condições favoráveis à chamada “remoção branca”5 de suas populações, abrindo espaço ao processo de gentrificação dessas áreas. Essa situação é ainda facilitada pelo disposto na MP n. 759/2016, que permite que assentamentos urbanos sejam “regularizados” sem a dotação de infraestrutura anteriormente exigida na Lei Federal n. 6.766/1979.
O trágico disso tudo é que a substituição das populações originais por outras de maior renda contribuirá para a radicalização do “modelo” centro versus periferia, que tem por base o preço da localização e pressupõe que os mais pobres devam ocupar dispersamente as margens da cidade, em locais sem infraestrutura e equipamentos sociais. Em São Paulo, esse “modelo” está bastante avançado, fortalecido pela combinação de incêndios acidentais nas poucas favelas centrais com a construção dos grandes conjuntos habitacionais periféricos, de financiamento estatal.6
Já no Rio, à tragédia acrescenta-se a ironia, já que as populações das favelas gentrificadas provavelmente serão atraídas para loteamentos irregulares e sem infraestrutura, o que as colocará na mesma situação jurídico-legal e urbanística que deu base ao início de todo o processo.
*Manoel Ribeiro é arquiteto e urbanista.