O Programa Auxílio Brasil e o encerramento do Bolsa Família
Bolsa Família será gradual e rapidamente descontinuado para dar espaço a um programa que está de acordo com as críticas e estigmas que cercam as famílias de trabalhadores que vivem em condição de pobreza e que são beneficiadas pelo programa
O encerramento do Bolsa Família foi anunciado com a publicação da Medida Provisória (MP) 1.061 de 9 de agosto, que institui o “Programa Auxílio Brasil”. Após meses de idas e vindas, tentativas de trocas de nomes, propostas de rearranjo do programa lançadas na imprensa e negociações em torno de valores que pareciam não ter lastro na realidade, vemos agora mais uma reforma no campo dos programas sociais que, na prática, encerra um dos maiores programas de transferência condicionada de renda do país.
Está em curso um processo de (re)moralização da pobreza. Antes considerado crucial, intocável e mesmo um exemplo mundial de política de combate à pobreza e à extrema pobreza, o Bolsa Família será gradual e rapidamente descontinuado para dar espaço a um programa que está de acordo com as críticas e estigmas que cercam as famílias de trabalhadores que vivem em condição de pobreza e que são beneficiadas pelo programa.
Foram consecutivas tentativas de mudanças no formato do Bolsa Família até chegarmos a este ponto. Vale lembrar a ideia do Renda Brasil, a proposta de um 13º, os processos de “pente fino” – iniciados em 2016, e o anúncio de modificação do funcionamento do CadÚnico, que, por sua vez, se cristaliza na MP.
Mais do que testes em torno de formatos e nomes, essas tentativas minaram e desmoralizaram aos poucos a imagem do Bolsa Família, taxando-o como um programa moroso e ineficiente. Ao fazer esse movimento, a narrativa política que se apresentou foi a de necessidade de enxugamento do “custo social”, mas sempre acompanhada de percepções e julgamentos sobre como os trabalhadores que são atendidos pelo programa vivem, devem se portar e utilizar o dinheiro que lhes é transferido.
Chegar ao “Auxílio Brasil” demandou, portanto, colocar em prática o entendimento de que todo programa social precisa ter legitimidade pública e política para se sustentar, e que argumentos ligados a perspectivas econômicas apenas não funcionam sozinhos.
Houve ainda um outro ponto importante que permitiu a abertura de espaço e legitimidade para o encerramento do Bolsa Família: a forma como o governo implementou o Auxílio Emergencial. A coincidência entre os nomes não parece ser obra do acaso.
O Auxílio se tornou popular e conhecido, teve efeitos reais, permitiu intervir direta e imediatamente em uma situação dramática de empobrecimento generalizado da população frente não só à pandemia; mas aos efeitos da reforma trabalhista, à aprovação do teto de gastos, ao fechamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), à descontinuidade em curso ou já completa de programas de incentivo à agricultura familiar, à desvalorização do salário mínimo e ao apagamento de conselhos gestores, restaurantes populares, dentre tantas outras ações que convertem a estágios iniciais, ou mesmo à inoperância completa, uma gama de políticas que levou anos para ser construída e socialmente legitimada.
Longe das propostas da articulação política que viabilizou um Auxílio diferente do que foi levado a cabo, já em um ponto avançado da execução do Auxílio Emergencial, em julho deste ano, a publicidade em torno do Auxílio Emergencial indicava o que estava por vir. Em post de divulgação do Ministério da Cidadania no Twitter e também em propaganda televisiva, a continuidade do pagamento do Auxílio foi apresentada da seguinte forma: “Auxílio Emergencial 2021. O Governo Federal continua estendendo a mão para milhões de brasileiros. É mais dignidade, esperança e cidadania para quem mais precisa”.
A propaganda governamental fez circular a ideia de que o governo não tem relação com o aumento da pobreza e com o já evidente retorno do país ao Mapa da Fome, e esquecendo-se que o auxílio emergencial não é caridade, nem filantropia. Condições dignas de sobrevivência são um direito a ser garantido pelo Estado, e temos uma rede de proteção social constituída e articulada às ações de transferência condicionada de renda, que se entrecruzam por meio de ações do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Isso tudo em um cenário no qual 58 milhões de brasileiros não sabem se terão acesso a alimentos.
A Exposição de Motivos da Medida Provisória que argumenta em favor do Auxílio Brasil aponta a urgência em lidar com o “contexto do final do Auxílio Emergencial 2021 e os desafios da situação de pós-pandemia”, anunciando que isso será feito com a “implantação do Programa Auxílio Brasil, que substitui o Programa Bolsa Família”.
Está bem claro que não se trata de um “novo” Bolsa Família, mas sim, como a própria Exposição de Motivos indica e como fica claro na MP, da substituição, e na prática, do encerramento deste e da inauguração do Auxílio Brasil. Algo que fica mais claro ainda na instituição do “Benefício Compensatório de Transição” que prevê a “revogação” do Bolsa Família e as formas de migração dos beneficiários entre os programas.
Diferentemente do Bolsa Família que instituiu a “transferência de renda com condicionalidades”, o Auxílio Brasil retoma uma antiga-nova prática para os programas sociais ao incluir, junto da transferência direta de renda, a transferência indireta de renda como uma de suas ações. Nesse ponto temos o exemplo da previsão de pagamento direto a creches pelas matrículas, ou mesmo por propostas setoriais ao programa que já começam a despontar tal como o relançamento do Auxílio Gás, para compra direta ou intermediada – ainda não se sabe – ou ainda a menção específica da MP ao “incentivo à produção e consumo de leite”, “doação” de alimentos, dentre outros. Por sua vez, a previsão de consignação em até 30% dos valores recebidos achata o valor real dos benefícios, gerando endividamento, porém instituindo a necessidade de “participação prévia do beneficiário em curso de educação financeira”.
Esses elementos significam menos gestão social e menos autonomia no uso do dinheiro pelas famílias, assumindo os ares e os problemas dos programas sociais que existiam no início dos anos de 1990. O Controle Social, importante forma de gestão da política social, está transmutado como forma de vigilância socioassistencial e não parece articulado à rede de proteção social existente.
Voltamos ao ponto da moralização conservadora da pobreza que se baseia em pressupostos que impulsionam a narrativa de auto responsabilização daqueles que estão em condição de pobreza: suposta má utilização do dinheiro, suposto não encaminhamento dos filhos para a escola e suposta dependência de programas de transferência de dinheiro. Todos esses pressupostos são amplamente rebatidos por pesquisas que analisam os programas sociais, ou mesmo pela própria experiência daqueles que vivem pressionados pela condição de pobreza e que manejam seus recursos todos os meses para que suas famílias sobrevivam.
Esses pressupostos aparecem agora formalizados institucionalmente no Artigo 1 da MP por meio dos objetivos para as ações do Auxílio Brasil, que serão voltadas para, dentre outros, o “incentivo ao esforço individual” e “à inclusão produtiva rural e urbana, com vistas à emancipação cidadã”.
Trata-se da completa desresponsabilização do Estado pela geração da pobreza que decorre da política econômica, e, portanto, da individualização de questões que são estruturantes da formação social brasileira, reduzindo a esforços individuais o enfrentamento a problemas como, por exemplo, o preço da cesta básica ser equivalente a um salário mínimo.
Há uma mudança significativa no entendimento social que está a ser legitimado pelo Auxílio Brasil sobre as causas da pobreza no país que agora passa a ser lida, em definitivo, como “ausência” de esforço individual e a possibilidade de “inserção produtiva”. Isto, cabe dizer, mediante o desemprego de 14,7% da população e a um mercado de trabalho que oferece a “72,4% das famílias de trabalhadores dificuldades para pagar as contas”, de acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) divulgada recentemente pelo IBGE.
A culpabilização dos trabalhadores empobrecidos por sua própria condição, no Auxílio Brasil, aparece totalmente descolada do contexto de crise econômica, política e sanitária, ou mesmo da ausência de um plano governamental para a geração de empregos formais em um contexto posterior à reforma trabalhista. Mais que uma mudança técnica de um programa para outro, temos não só o encerramento do Bolsa Família, mas o encerramento da coesão social em torno das formas para o combate à pobreza e à extrema pobreza no país.
Não há como medir ainda os impactos dessa MP após o seu chancelamento, ou mesmo como isso será lido pela população, mas é certo que o Bolsa Família e a rede de proteção social ancorada no SUAS, tal como conhecíamos, deixarão de existir e que, tanto os desafios, como a arena de disputa política em torno dos programas sociais e da gestão da pobreza no país foram ampliados.
Denise De Sordi, historiadora, pesquisa políticas sociais, desigualdade e os programas sociais brasileiros.