O protagonismo feminino para compreender o passado e agir no presente
Circe se desenrola em vinte e sete capítulos e pouco mais de trezentas e cinquenta páginas, com uma narração em primeira pessoa e através de memórias.
“A primeira opressão de classe coincide com a do sexo feminino pelo sexo masculino”
Engels: A origem da família, da propriedade privada e do Estado, p. 68.
Circe é um livro de Madeline Miller (1978-), originalmente lançado no ano de 2018, que transporta o leitor para a mitologia da Grécia Antiga, mais especificamente a trajetória de Circe, porém assumindo um ponto de vista protagonista de sua própria história e não a narração “heroica” focada em um personagem masculino como em Odisseia, texto clássico de Homero. A edição do romance aqui analisada é da Editora Planeta sob o selo Minotauro, publicada no ano de 2019, com tradução de Isadora Prospero.
O livro é obviamente uma leitura política – dificilmente há alguma que não seja – que descreve a história da bruxa, ou feiticeira, e titã Circe, conhecida pela passagem de Odisseu à sua ilha Eana em Odisseia, desde a sua infância nos salões sombrios de seu pai, o titã Hélio, e sua relação problemática com seus familiares, principalmente com sua mãe Perseis e seus irmãos Aietes, Pasifae e Perses. Então, conforme se acompanha a protagonista em sua individualidade, pode-se entender um processo de conhecimento de mundo a cada experiência vivida, o que para a divindade ocorreu em séculos, e seu consequente amadurecimento. Mostra sua aparente dependência e vivência a sombra de deuses maiores ou mais poderosos, o que pode ser apreendido como a normalização de um sistema de estratificação social baseado em diferenças de gênero, como pode ser percebido na “função” atribuída as ninfas, termo que futuramente viria a ser relacionado com noivas, estando a disposição de um deus, titã ou mortal para se relacionar, como pode ser visto pelo modo como sua mãe foi escolhida por seu pai e oferecida pelo seu avô materno, o Oceano. O livro é permeado de passagens e personagens da mitologia grega como Dédalo, Atena, Jasão e Odisseu, Ariadne e o Minotauro, as relações sociais estabelecidas aparecem com um nível de aprofundamento profano nas relações, isto é, atitudes e motivações caracteristicamente humanas e que demonstra o caráter de dominação entre si e sobre os humanos pelos deuses, e segundo Marx e Engels sobre as condições de análise sobre a opressão de classes: “Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado” (MARX, ENGELS, 1998, p.43, grifo meu), ou seja, nos diversos modos de opressão de classe (gênero, raça, etc.), o sagrado se transforma em profano como consequência e manutenção dessa estratificação. Ao mesmo tempo que os titãs e seus salões festivos parecem hegemônicos e calmos – devido ao seu poder –, os mais velhos traçam planos e ainda sentem o peso da vitória dos olimpianos, nesse cenário de sentimentos humanos de desconfiança, traições e poder, emerge Circe com seu jeito desajustado entre eles, além de possuir um novo tipo de poder, a magia através da vontade, do esforço e da natureza.
A obra se desenrola em vinte e sete capítulos e pouco mais de trezentas e cinquenta páginas, com uma narração em primeira pessoa e através de memórias. A história poderia ser dividida em duas seções, acompanhar uma Circe nos salões divinos e titânicos e uma Circe entre mortais, porém, dessa forma, seria simplório e se perderiam as nuances e o amadurecimento da personagem. Sendo assim, melhor seria analisar em três seções e sempre notando o amadurecimento da protagonista – a cada seção – em cada um dos cenários e em relações criadas com outros seres: uma Circe entre divindades; uma Circe exilada entre mortais e o aperfeiçoamento de seus feitiços; e uma Circe mãe de Telégono e seus desdobramentos.
O leitor acompanha, primeiramente, o encontro entre Hélio e Oceano, seu pai e seu avô, respectivamente, e a escolha do primeiro sobre uma esposa, a náiade Perseis; então é descrito o nascimento de Circe e a dificuldade em nomear sua natureza, visto que é algo novo naquele meio social; passando a punição de seu tio, o titã Prometeu, condenado por entregar o fogo aos humanos; seu primeiro encontro com um mortal e, logo após, a deificação de um relacionamento e como seus poderes surgem, ou melhor, são revelados. Então, seu sequente exílio em uma ilha como punição. Nessa etapa, enquanto mantém relação com Hermes, o mensageiro dos deuses que lhe traz notícias do mundo, ocorre seu primeiro encontro direto com homens mortais (depois de Glauco, a figura da relação deificada) que aportaram em sua ilha e ocorre, concomitantemente, a virada axiológica da trama, nesse ponto que a personagem ainda esperava gratificação ou agradecimentos pelos seus feitos e até pela sua herança divina, porém não a encontra, pelo contrário, encontra violência e uma normalização da mesma entre os marinheiros, então seus feitiços servem e agem como punições aos mesmos transformando-os em porcos, punições que tornam-se rotineiras. “Vamos, eu dizia a eles, não é tão ruim. Vocês deviam apreciar as vantagens de um porco […] Podem prosperar em qualquer lugar, comendo qualquer coisa, restos e lixo. Parecem estúpidos e embotados, o que desarma seus inimigos, mas são inteligentes. Vão se lembrar do seu rosto. Eles nunca escutavam. A verdade é que homens dão péssimos porcos.” (MILLER, 2019, p.180-181).
Então ocorre seu encontro com Odisseu, o “herói” grego que lutou na Guerra de Tróia e que possui temperamento instável, embora sagaz em suas atitudes. São apresentadas a convivência de poucos meses e os laços que criam, quase como uma estabilidade em uma vida eterna e conturbada da bruxa. Por fim, acompanha-se o amadurecimento de Circe com seu filho Telégono e a ânsia do jovem por aventuras, como visitar o pai em meio a vários contras, como a ameaça constante de Atena em ambientes externos a Eana, por exemplo.
Circe é uma obra feminista, tocando o tempo todo em temas do cotidiano familiar tanto como em relacionamentos externos. No âmbito familiar se inicia com o sistema patriarcal dos seres divinos, como pode-se notar na casa de seu pai, Hélio, que emanava luz e iluminava os salões escuros de obsidiana, refletindo sua luz e sua imagem em todos os lados, expondo claramente sua posição masculina central na família e no universo – talvez o titã sol represente isso, falando de uma visão simbólica ocidental e heliocêntrica –. Então, como fuga introspectiva a uma ilha da infância, conhece Glauco, uma marinheiro por quem se apaixona e o transforma em um deus – momento primeiro de uso de seus poderes –, mais tarde revelando a deificação de um relacionamento idealizado algo nefasto, visto a personalidade “conquistadora”, desleal e a convicção do novo deus masculino entre as ninfas. Seria essa a primeira seção citada anteriormente e a segunda imposição de uma dominação, exaltação e normalização de uma forma de poder tipicamente patriarcal.
A presença da crítica feminista na segunda seção se afasta de figuras fisicamente masculinas e se aproxima das consequências de um sistema como tal. Se inicia ao chegar na casa em sua ilha de exílio, Eana, momento que passa a poder se concentrar e aprimorar seus feitiços, algo possível, principalmente, pelo fato de que a casa em que vive se arruma sozinha, não se empoeira, a louça se lava sozinha, etc., poupando o tempo dos cuidados domésticos, pauta tão atual. Outro fator interessante é seu relacionamento desprendido com Hermes, que, ao estar exilada e afastada do sistema que vivera até então, não deve satisfação ou temer alguma represália por questões de moral familiar ou social. Seu encontro com mortais ocorre também a sua escolha, tanto em com quem irá se deitar como quem irá ser transformado em suíno, revelando uma autonomia e inversão de poder nas decisões que até então eram vedadas a sua pessoa.
A terceira seção enquadra Circe como mãe, sendo claramente capaz de causar a sensação de que o tempo que antes lhe sobrara, agora já não o faz. O tempo de cuidado doméstico, o de seu filho, toma grande parte de seus dias e, mesmo como um ser que não precisa dormir, acaba por cair de sono e exaustão. Isto é, o momento de criação de uma criança acaba por limitar suas atividades e potências, o que retoma a crítica contemporânea do tempo de criação de filhos, ação feita majoritariamente por mulheres.[1] Unindo a crítica da segunda seção com parte da terceira, retomo Krúpskaia, pedagoga, memorialista, crítica literária, militante revolucionária e uma das pioneiras da luta pela emancipação feminina na Rússia Soviética, que diz: “Em essência, não há nada no trabalho doméstico que faça com que ele seja uma ocupação mais adequada para a individualidade da mulher do que para a do homem” (2019). Mais adiante na narrativa quando se aproxima de Telêmaco e Penélope, filho primogênito e esposa de Odisseu, respectivamente, que vêm a sua ilha buscando proteção contra Atena após a morte do guerreiro grego, surge a princípio uma desconfiança entre as duas mulheres, porém de forma natural e através de diálogos, descobrem que ambas buscavam a proteção de sua prole e nota-se uma sororidade crescente entre elas.
A obra possui a capacidade de causar estranhamento, quase uma náusea, nos momentos que Circe passa por dificuldades, injustiças e situações horríveis, ao passo que possui a capacidade de passar e fazer sentir uma alegria, quase uma paz, quando percebe-se a felicidade espontânea na protagonista. Entre as muitas camadas e pontos de vistas possíveis para interpretar e compreender o livro destacam-se três objetos permeados e marcados pelo patriarcado que buscam a reprodução do sistema e do status quo mencionados acima: relacionamentos, relações (familiares ou externas) e violência (tanto física quanto psíquica); o uso do tempo em trabalhos domésticos; e a maternidade. O maior impacto da obra é fazer conseguir localizar e compreender didaticamente os efeitos da desigualdade de gênero na sociedade e todos os elementos que causam a opressão da figura do feminino através da personagem e perceber que não se trata de uma ficção de deuses, titãs ou guerras históricas e ações do passado, mas que todos são terrivelmente humanos e o quanto persistem na atualidade, com isso, urge o sentimento de uma transformação social. Circe é uma visão introspectiva da protagonista que questiona e critica o mundo externo e real, seja ele habitado por deuses ou homens.
A leitura é para todos, principalmente para a faixa etária de adolescentes para cima – visto que teriam uma maior absorção do conteúdo –, tangendo adultos e idosos, estudantes da área ou leitores por hobbie, que gostam de histórias clássicas ou experimentar algo novo, ou mesmo a mescla desses dois elementos, sendo, na realidade, uma leitura obrigatória para todos que pretendem se inserir ou adquirir uma carga de conhecimento sobre a temática. É uma leitura que flui com naturalidade e possui uma linguagem fácil, a narração descreve intensamente os momentos, sejam os de ação, sejam os de calmaria, pois há certa intensidade nos momentos de calmaria de Circe – não só de Circe, mas de todos.
Circe é uma obra oriunda de uma passagem de Odisseia, mas não se pode deixar enganar como se fosse algo complementar ou um apêndice do épico de Homero, Circe é uma obra emancipatória e completa em si, se sustenta como única e envolve o leitor de forma sublime – talvez mágica? –. Mostra como a presença do patriarcado é forte e atinge de diferentes maneiras as mais diversas esferas da sociedade, como tão forte na família da personagem que ela não possui espaço para agir e ser autônoma, ou mesmo ser, mas encontra correspondência em outros aspectos da vida, como a compreensão mútua com Penélope, buscando manter o relacionamento e atitudes positivas entre si, por exemplo. O feminismo colocado por Madeline revela o engajamento da autora com as causas atuais e em como é possível resgatar esse elemento dos clássicos, é compreender o passado não resolvido, porém normalizado, para agir no presente e mudar o futuro, para isso, a autora estrutura e destrói os estereótipos femininos. A principal característica e força de Circe não é possuir descendência divina, seus feitiços e bruxarias, mas ser mulher e protagonista.
Madeline Miller é uma escritora estadunidense e estudou na Brown University, pela qual cursou o bacharelado e mestrado em estudos clássicos. É autora de A canção de Aquiles, pelo qual ganhou o Orange Prize de ficção e que já foi traduzido para mais de vinte e cinco idiomas. Com Circe chegou ao primeiro lugar do ranking de mais vendidos do The New York Times em sua semana de estreia, pelo qual ganhou o prêmio de melhor fantasia de 2018 pelo Gooddread Awards.
Maurício Brugnaro Júnior, acadêmico do curso de Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Referências
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Boitempo, 2019.
KRÚPSKAIA, Nadiéjda Konstant Ínovna. Krúpskaia versus Damares: Deve-se ensinar ‘coisas de mulher’ aos meninos?. 2019. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2019/02/26/krupskaia-versus-damares-deve-se-ensinar-coisas-de-mulher-aos-meninos/. Acesso em: 01/09/2020.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.
MILLER, Madeline. Circe. São Paulo: Planeta, 2019.
[1] O tema dos cuidados domésticos e do uso do tempo na obra causa essa sensação de desconforto mesmo sem inserir o caráter do trabalho como o entendemos no ocidente contemporâneo.