O PT caminha para perder a sua importância social e política
O golpe e a eleição do Bolsonaro são vitórias impactantes e contundentes de uma camada da população que semeia e dissemina o ódio ao PT
Junho 2013. Há exatos sete anos, uma onda de protestos tomava as principais ruas do Brasil. Após a agressão da Polícia Militar de São Paulo contra os manifestantes, o que fora conclamado para ser um protesto sobre a gratuidade do transporte público na cidade se tornou uma miríade de reivindicações com interpretações variadas e inconclusivas. Neste ensaio, vale a pena destacar que, naquele momento, de maneira desorganizada, já estava presente o sentimento de mal-estar em relação à forma como a política vinha sendo feita no Brasil e à precária efetividade das políticas públicas de saúde, educação e segurança pública. Por forma, entende-se que as coligações multipartidárias de ocasião, não ideológicas e pouco republicanas davam corpo à base aliada dos governos. Naquele cenário, ante um público majoritariamente de classe média ressentida, o principal partido de esquerda da América Latina estava na berlinda. Alguns dirigentes, congressistas e governantes do Partido dos Trabalhadores levaram isso a sério.
PSDB. De forma oportunista e não republicana, o principal partido de oposição à época apostou no quanto pior, melhor. A reeleição da presidenta Dilma Rousseff não só evidenciava que as políticas do governo do PT resultaram em benefícios para a maioria dos eleitores, como a proposta empunhada pelo candidato de oposição não estava à altura do que o país necessitava. O PSDB se prestou a um serviço mesquinho, que a história nunca esquecerá: questionou a legitimidade da eleição, pediu a cassação da presidenta Dilma e a posse de Aécio Neves como presidente. Certamente, esse foi o maior ato contra a democracia brasileira pós-redemocratização do país. O PSDB, sem nenhum pudor, questionou formalmente o pacto democrático que vigorava no Brasil. Observando o cenário se agravar, o PT foi da berlinda para o corner.
Golpistas. Flanando em um cenário de sonhos, toda a oposição, parte do que era a situação e o então vice-presidente da República, Michel Temer, se aproveitaram do clima incendiário proveniente da Operação Lava Jato e da crise econômica e derrubaram o governo. O “grande acordo nacional”, “com o Supremo, com tudo”, se concretizou. Dilma Rousseff, a presidenta mais republicana que este país já elegeu, teve o seu segundo mandato interrompido, a partir de uma nova modalidade de golpe, aquele realizado por mera vontade política, sem crime de responsabilidade, com a conveniência do Supremo Tribunal Federal e dentro dos ritos e da aparência das instituições do Estado. Naquele momento, de forma trágica, o Partido dos Trabalhadores foi golpeado por um oportunismo que, ironicamente, todos no partido sabiam que fazia parte do DNA de setores político, econômico e financeiro do Brasil. É importante destacar que o PT estava ciente de que tal cena seria possível, mas, nem por isso, foi capaz de interromper aquela crônica de uma morte anunciada.

Do ódio à glória. O golpe e a eleição do Bolsonaro são vitórias impactantes e contundentes de uma camada da população que semeia e dissemina o ódio ao PT. A luta de classes dá origem a esse ódio, são os acertos do PT que o derrubam. Embora a mobilidade social promovida pelas políticas dos governos Lula e Dilma explique uma parte majoritária desse sentimento em relação ao PT, ela não explica a sua disseminação. As acusações – e os casos – de desvio de dinheiro público para financiamento de campanha, estas, sim, explicam a forma como o ódio contamina e se mantém latente em parte da população. O diálogo com quem teve a percepção de estar sendo enganado pelo desvio de dinheiro público, o qual, de certa forma, também estava presente em junho de 2013, nunca foi realizado à altura das expectativas criadas. O PT não deveria se ajoelhar no milho, mas para nada serviu dizer que o sistema estava viciado e que agiu de acordo com as regras informais do jogo. O melhor presidente que este país já teve, Luiz Inácio Lula da Silva, disse, em 2004, que na política “nós [o PT] não podemos errar, não temos o direito de errar”. Em 2006, ao ser reeleito, repetiu: “nós não temos o direito moral, ético e político de cometer erros daqui para frente”. De fato, isso era verdade. Ao errar em suas práticas, o peso foi avassalador, a reconstrução de uma narrativa política que pare em pé ainda é esperada pelos seus militantes. O PT errou e não soube dialogar com esse erro. Esse fato, como o espectro do capitalismo, ronda o Partido até os dias de hoje e tem consequências nefastas para a sua sobrevivência moral.
Observador não participante. A história do Brasil, de forma trágica, terá de lidar com o fato de o seu 38º presidente ser Jair Bolsonaro. Um indivíduo sem nenhuma qualificação para ocupar o cargo de chefe de Estado, fruto de uma eleição pautada por uma leitura messiânica sobre o capitão da reserva, aliada ao ódio mortal contra o PT, às preferências de uma classe dominante rentista e à incapacidade das forças políticas de centro e progressistas de viabilizarem nomes alternativos. Se parte significativa dos eleitores arrependidos do Bolsonaro veem com surpresa a tragédia que acomete as políticas públicas que vinham sendo implementadas por governos passados, assim como o fortalecimento da estrutura do Estado que estava sendo realizado; o comportamento errático do presidente, sua visão de mundo torpe e falta de lucidez não podem ser considerados novidades. Estava tudo lá, mesmo antes das eleições. A ironia da história, para não dizer capricho, está em registrar o enfraquecimento de um representante de extrema direita, sem o menor protagonismo do maior partido de esquerda da América Latina. O PT não pauta essa inflexão na análise social e política que está sendo feita sobre o atual presidente. O PT parece estar alijado desse significativo capítulo da história.
O desejo por liderança política. As organizações sociais, alguns setores da sociedade e 70% da população brasileira não suportam as ideias do desgoverno Bolsonaro e delas não partilham. A ausência de perspectiva da classe trabalhadora, a crise econômica internacional, a forma desqualificada como se enfrenta a Covid-19 e o não honrar o principal cargo público de uma República presidencialista levaram o presidente a ser uma persona non grata para a ampla maioria da população. Porém, a conjuntura brasileira está desafiando uma das máximas da política, qual seja, “não há vácuo de poder”. Sim, no Brasil atual, há! A oposição não tem novas lideranças políticas. Não há uma única pessoa de esquerda – exceto o ex-presidente Lula, ainda que a sua capacidade de liderar venha sendo recorrentemente questionada – que coadune desejos políticos de diversos setores sociais, isto é, que tenha legitimidade para expressar conflitos e articular acordos. Essa escassez (ou inexistência) de novas lideranças também é um elemento que intensifica a cobrança sobre o PT. Ao longo de seu percurso, o Partido reuniu dezenas de lideranças políticas; mas, pelas mais diversas circunstâncias, não foi capaz de oferecê-las para a sociedade brasileira. Para os dias de hoje, a questão que se coloca é: o PT não exerce essa liderança por não se sentir à vontade, por não saber como agir ou por não querer se reinventar? Vale lembrar que sua reinvenção deveria dialogar com o que é esperado pelos seus milhares de militantes e milhões de simpatizantes, não apenas por quem pertence a sua estrutura interna.
Partido dos Trabalhadores. Há uma legião de pessoas que valoriza e reconhece os resultados obtidos durante os governos do PT. Segmentos e classes sociais concordam não ser possível que o país mantenha a sua (de)composição social. Jovens, mulheres e ativistas exigem maior equilíbrio de gênero, raça e diversidade sexual. A pauta da equidade social e econômica tende a ganhar cada vez mais aderência nas agendas de ativistas sociais que aprenderam a fazer política não via partidos, mas via coletivos. A importância dos partidos e sindicatos tem sido questionada e isso não é um problema em si. A desconexão social se dá quando os dirigentes políticos desqualificam esses questionamentos e não se colocam em um lugar de parceria e aprendizado mútuo. A presunção do saber é mortal para o conhecimento. Novamente, o PT se esforça mais para defender o seu passado do que para se readequar e pautar o futuro. Em relação a esse aspecto, ironicamente, a máxima do setor financeiro se aplica ao PT: rentabilidade passada não é garantia de rentabilidade futura.
Lula e o “eu não tenho mais idade para ser maria vai com as outras”. Não será trivial para o ex-presidente aderir a uma frente ampla pró-impeachment, uma vez que terá que dialogar com uma vasta parcela de seus carcereiros. Vale lembrar que o presidente Lula ficou 580 dias preso, com a anuência e conveniência de boa parte dos que precisam estar ao lado do PT para derrubar um governo que tem traços, vestes e pensamentos fascistas. O fato de ainda ser o maior líder de massas da América Latina e, quiçá, do mundo, o coloca em uma situação extremamente desafiadora. Há muita expectativa para que ele se comporte como um estadista e ignore as suas marcas pessoais. Porém, a partir de outra perspectiva, em função da privação de liberdade que Lula passou, ele tem o direito de não querer fazer aliança com nenhum setor que o deixou na prisão. Haja síndrome de Estocolmo para ele sair de braços dados com essa corja. O mesmo raciocínio serve para a presidenta Dilma. Não se trata de cultivar o ressentimento, mas, sim, de dar o tempo necessário para que essas figuras de enorme relevância para a história do PT e do Brasil cicatrizem as suas feridas. Faz sentido diferenciar o presidente Lula do Partido dos Trabalhadores. Diga-se de passagem, não fazer essa diferenciação é um dos grandes equívocos do PT.
Frente ampla pró-impeachment. Diferente de Lula e Dilma, o PT tem a obrigação moral e histórica de fazer parte de uma frente ampla. Mais do que isso, de ser um dos protagonistas dessa frente. A instituição PT não deve se melindrar. Não deve usar de discursos supostamente fiéis à classe trabalhadora para se manter alijado da história. Argumentar que estar em uma frente ampla é confundir a classe trabalhadora, dando sinais contraditórios do seu lugar na história, é desqualificar a inteligência de quem ocupa lugares menos privilegiados na dinâmica econômica. Dizer que todos são golpistas é acreditar que não é possível fazer política com autenticidade; em contrapartida, pode-se declarar com todas as letras que tal união tem um objetivo específico e que, nas próximas eleições, o PT estará em campo distinto. Não fazer parte de uma frente ampla é perder a oportunidade que a história volta a dar ao PT de estar em uma posição de coadjuvante num de seus capítulos mais importantes.
O trem da história. Desde junho de 2013, passando pelo golpe político e pela disseminação do ódio, o Partido dos Trabalhadores deixou de escutar o que a população tem trazido com constância e fúria. Há espaço a ser ocupado, há setores sociais que clamam por lideranças que compreendam as suas necessidades. O PT não pode crer que a sua história seja suficiente para lhe assegurar prestígio sociopolítico no momento presente. Se o Partido não conseguir se reinventar, ele tende a entrar para o museu da história. Os principais dirigentes que o PT já teve exerceram um papel fundamental para a história desse país. No entanto, se queremos que o PT reverta a tendência que o tem levado à perda de importância social e política numa velocidade avassaladora, é fundamental que todas as dirigentes tenham uma narrativa coerente sobre os erros do passado, se conectem com o que os novos grupos sociais estão trazendo para a arena política, incorporem de fato a pauta da equidade racial em sua agenda e renovem suas estruturas partidárias. Esse é o único caminho para evitar que o PT passe de um Partido que teve um protagonismo singular na história para ocupar um lugar-comum sem precedentes.
Cassio França é cientista político e doutor em Administração Pública e Governo.