O que acontece na Nicarágua?
Desde abril, a Nicarágua convive com confrontos de rua. De um lado, manifestantes de origens sociais diversas e ambições frequentemente incompatíveis. De outro, o chefe de Estado, Daniel Ortega, que não se abala com a repressão. Nos anos 1980, o presidente socialista pôde contar com o apoio da esquerda internacionalista. E agora?
Há duas leituras sobre as violências políticas que assolam a Nicarágua desde abril deste ano. De um lado, o presidente Daniel Ortega, ex-dirigente revolucionário sandinista que chegou à presidência pelas urnas em 2006, apresenta-se como vítima de uma tentativa de golpe, ou de uma “conspiração” arquitetada por “terroristas”, “delinquentes” e “narcotraficantes”. De outro, os manifestantes – estudantes, camponeses, aposentados, indígenas etc. –, unidos em mobilizações maciças e heterogêneas que se dizem “autoconvocadas” e proclamam querer derrubar pacificamente a “ditadura orteguista”, “nepotista e corrupta”.
Tanto na Europa como na América do Norte e do Sul, a esquerda internacionalista, que apoiava a revolução da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), dirigida pelo mesmo Ortega nos anos 1980, está dividida. Alguns, próximos à maioria dos comandantes, responsáveis políticos e intelectuais sandinistas que deixaram a FSLN decepcionados com o orteguismo, denunciam o caráter neoliberal, conservador e autocrático de um poder que enganou a opinião internacional ao se declarar socialista; entre eles, o Exército Zapatista de Libertação Nacional no México, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil ou ainda José “Pepe” Mujica, ex-presidente do Uruguai. Outros, como o Foro de São Paulo, que reúne quadros dos partidos progressistas latino-americanos, veem nas violências a mão de Washington e os tentáculos de uma direita local desejosa de se livrar de um governo de esquerda. A prova, argumentam: Ortega sucumbe aos ataques do grande patronato e da hierarquia colonial! – embora omitam que o setor privado e a Igreja estavam entre as linhas de frente de apoio do governo.
Abandono das antigas bandeiras
Depois da derrota eleitoral dos sandinistas em 1990, as escolhas do inamovível secretário-geral do FSLN deixam pouco lugar a dúvidas. Reconquistar o poder, edificar e concretar sua hegemonia, dobrar o PIB em uma década (2007-2017) e receber os parabéns de instituições financeiras internacionais teve um custo: a renúncia dos ideais de outros tempos relativos à partilha do poder, justiça social e soberania nacional.1
O clã presidencial construiu minuciosamente seu controle sobre o conjunto dos poderes. Fez “pactos” com os inimigos de ontem: mecenas da contrarrevolução, ideólogos do liberalismo, dirigentes políticos de direita mais ou menos corruptos, cardeais “fazedores de presidentes”, dirigentes evangélicos. Reformou e contornou a Constituição, multiplicou as cooptações e os monopólios, organizou eleições duvidosas. Cada manobra tinha uma justificativa: consolidar o poder, a qualquer custo, para não se deixar vencer como em 1990. O conselheiro do presidente, Orlando Nuñez, nos confirmou voluntariamente em uma entrevista em fevereiro de 2017: “Como poderíamos recuperar e depois assentar nosso poder sem esses pactos e sem compra de votos? Não há hegemonia possível sem aliança. Como os partidos de direita podem ganhar se a maioria de seus dirigentes está sentada no Parlamento enquanto deputados sandinistas ou similares? Não queremos mais perder o poder pelas urnas”. Em suma, a experiência de 1990 legitimou um oportunismo descomplexado matizado com uma dose de cinismo.
No plano econômico, aproveitando o contexto internacional favorável até 2014 (preços elevados das matérias-primas exportadas, entrada em vigor do acordo de livre-comércio entre Estados Unidos e América Central, generosidade venezuelana), a administração Ortega instaurou seu “modelo de aliança e consenso” com grandes empresas privadas,2 a tal ponto de José Adán Aguerri, presidente da principal federação patronal, endossar o papel de porta-voz de decisões governamentais.
Um tapete vermelho foi estendido aos investidores estrangeiros, por meio de isenções e exonerações fiscais que representam, segundo as estimativas, entre US$ 800 milhões e US$ 1 bilhão, ou 40% do orçamento nacional. As leis ambientais foram desmanteladas; um decreto de 2017, por exemplo, flexibiliza a obrigatoriedade de estudos de impacto para projetos de exploração de recursos naturais. O regime de zonas francas foi estendido notadamente aos cultivos de tabaco e maracujá. Hoje, o setor privado controla 90% da produção anual3 de riquezas, enquanto a agência oficial de promoção do país junto a investidores, a ProNicaragua, gaba-se, em seu site, de o país ter o salário mínimo “mais competitivo em escala regional, o que torna a Nicarágua um país ideal para estabelecer operações que necessitem de mão de obra intensiva”. Ortega fez da Nicarágua um “modelo coroado de sucesso”, considerava o FMI em maio de 2017,4 antes de aconselhar o presidente sandinista a impor uma política de redistribuição de riquezas para as empresas beneficiadas!5
O orteguismo jubila: o crescimento econômico é um dos mais elevados do continente (4% a 5% por ano), os investimentos estrangeiros decolam (16% por ano em média desde 2006), assim como as exportações (8%), e o comércio com os Estados Unidos, de longe o parceiro principal, está crescendo. O governo investe, constrói, moderniza e garante a estabilidade e a paz social. Graças ao auxílio petroleiro da Venezuela chavista – o equivalente a um quarto do orçamento nacional a cada ano, mas gerado fora –, financia vários programas sociais. Mas as grandes ambições de transformação de ontem foram substituídas por projetos de “luta contra a pobreza”, similares aos que acompanharam os ajustes estruturais dez anos antes.
Não sem registrar certo sucesso, em geral exagerado nos anúncios oficiais. De acordo com o governo, a parcela da população que vive sob a linha da pobreza teria reduzido drasticamente, passando de 42,5% para 29,6% em 2014. Se essa conta for feita sob a metodologia utilizada pelo Banco Mundial, a redução se revela menos impactante: de 44,7% de pobres em 2009 a 40,5% em 2014, enquanto a pobreza extrema permaneceria estagnada (de 9,7% a 9,5%, no mesmo período). Contudo, ao mesmo tempo, as desigualdades aumentam, o que se confirma com as estimativas oficiais.6 “O número de multimilionários (com pelo menos US$ 30 milhões cada um) cresceu de forma contínua nos últimos quatro anos, e hoje são 210”, escreve o economista Enrique Sáenz.7
Mais da metade dos nicaraguenses, por outro lado, não pode pagar a cesta básica, e o salário real médio cobre apenas 70% de seu custo. De acordo com o Banco Central, 80% da população ativa vivia do setor informal em 2017, contra 60% em 2009. E, apesar da duplicação das riquezas produzidas no interior de suas fronteiras em dez anos, a Nicarágua permanece o país mais pobre do continente depois do Haiti.
A partir de 2015-2016, o auxílio venezuelano caiu, assim como o preço das matérias-primas. Além disso, o clima dos negócios com os Estados Unidos se deteriorou. Essa reviravolta da conjuntura complicou o cenário para o governo, que se vê privado de recursos que permitiram tornar sua gestão do poder tolerável sob os olhos da população. E mais: a crise ameaça a aliança articulada por Ortega – e sua esposa, vice-presidente, figura-chave do poder – com dois aliados fundamentais, os grandes grupos privados (inquietos com a desaceleração da economia e os protestos sociais) e os Estados Unidos. A hostilidade latente desses dois últimos tem sido moderada pela capacidade de Manágua de garantir a estabilidade política, o livre-comércio e a mais fiel colaboração em relação à imigração.
Em abril último, a negligência do poder diante dos incêndios de florestas na reserva natural Indio Maíz e, na sequência, o projeto de reforma da previdência levaram às ruas algumas centenas de militantes ecologistas, a quem logo em seguida se uniram milhares de estudantes e aposentados. Atiçada pela violência e desproporção da repressão, a opinião pública se mobilizou maciçamente contra o casal presidencial e seus símbolos. Dezenas de barricadas se espalharam pelo país, em particular por estudantes, jovens de comunidades e camponeses. Várias manifestações, que reuniram centenas de milhares de nicaraguenses, sitiaram as cidades e enfrentaram tiros da polícia e dos esquadrões de “policiais voluntários” (termo usado pelo presidente na CNN, no dia 28 de julho) munidos de equipamentos do Exército.
Oposição na oposição
Entre trezentos e quatrocentos mortos, milhares de feridos, diversos detidos e uma tentativa de “diálogo pela paz” abortada, o país ficou livre das barricadas. Alguns dirigentes, estudantes ou camponeses, assim como dissidentes sandinistas, calaram-se, se não fugiram do país. De seu lado, o chefe de Estado celebrou o retorno à “normalidade”. Enquanto isso, Ortega perdeu o apoio da Igreja Católica – mediadora antiorteguista nesse conflito – e do grande patronato. Depois de seis semanas de repressão, os três principais grupos financeiros (Pellas, Lafise e Banpro) retiraram o apoio ao governo, até então incondicional. O Conselho Superior das Empresas Privadas (Cosep), a Câmara de Comércio e da Indústria (AmCham) em Manágua e a Fundação para o Desenvolvimento Econômico e Social (Funides) figuram na linha de frente da Aliança Cívica pela Democracia e pela Justiça, convidada pela Conferência Episcopal para negociar com o governo. “Eles reivindicam o fim da violência e a convocação de eleições antecipadas em 2019, mas não a greve geral nem a partida imediata do casal presidencial, como querem outros setores – mais populares ou mais à esquerda – da oposição”, lamenta a líder estudantil Claudia H.
“A revolta é composta, de um lado, pelos ‘Miami Boys’, que voltaram para o país após a derrota da revolução sandinista em 1990, com um programa de empreendedorismo próximo aos interesses norte-americanos. E, de outro, por sandinistas históricos e uma série de organizações sociais, estudantis, feministas, indígenas e camponesas que se opõem ao extrativismo e à concentração de terras”, explica René Rodríguez, militante universitária do grupo SOS Nicarágua. Os primeiros esperam que Washington eleve o tom das condenações e ative o Nica Act. Esse texto, tramitando há um ano para aprovação no Senado, condiciona o aval dos Estados Unidos para empréstimos de instituições multilaterais mirando o “restabelecimento da democracia e a luta contra a corrupção”. Os segundos constituíram uma Articulação de Movimentos Sociais que propõe, na ausência de bases políticas confiáveis, um “caminho para a democratização”: a destituição do regime Ortega, a formação de um governo de transição e a eleição de uma assembleia constituinte.
Agora, enquanto no interior do país a situação socioeconômica se deteriora, o governo nicaraguense sofre a pressão dos “golpistas”. No exterior, tenta conciliar as recomendações e as ameaças de sanção de uma “comunidade internacional” que apoiou, aplaudiu e até financiou Manágua nos últimos anos pela ortodoxia de sua política…
*Bernard Duterme é diretor do Centro Tricontinental (Cetri) em Louvain-la-Neuve (Bélgica) e autor de Toujours sandiniste, le Nicaragua? [A Nicarágua ainda é sandinista?] (Cetri, 2017).