O que australianos e brasileiros podem aprender uns com os outros em seus embates com Elon Musk e X?
No caso do bloqueio da plataforma X, o estado de direito triunfou sobre a ‘ditadura’ do dinheiro e dos interesses corporativos
Recentemente, em 30 de agosto, uma decisão judicial do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro chamou a atenção mundial. Por meio da PET 12404, sob responsabilidade do Ministro Alexandre de Moraes (STF), o Brasil pode ter dado algumas lições valiosas sobre como defender a democracia, como impor a soberania do estado de direito, como regular as atividades de uma corporação multibilionária estrangeira e como limitar seu poder de influenciar algo tão crucial para uma sociedade democrática quanto um processo eleitoral. No caso do bloqueio da plataforma X, o estado de direito triunfou sobre a ‘ditadura’ do dinheiro e dos interesses corporativos.
Alguns(mas) brasileiros(as) – infelizmente, nem todos(as) … viva a democracia – estão celebrando as multas impostas a Elon Musk, em razão do não combate à prática de desinformação no X, bem como o fato de ele ter cumprido a obrigação de nomear um representante legal no Brasil. Estamos curiosos para ver o que outras democracias, desafiadas pelo absolutismo irresponsável de Musk, que se baseia numa concepção de liberdade de expressão democraticamente insustentável, podem aprender com o caso brasileiro.
A experiência australiana – de herói na construção de baterias a vilão das redes sociais
Atualmente, há muita discussão na Austrália sobre se e como regular as Big Techs (grandes e poderosas corporações do ramo tecnológico). O magnetismo de Musk sobre a mídia o tornou o ponto central desse debate.
Musk se tornou um herói, na Austrália, em 2017, após construir o que, até então, era a maior bateria do mundo, a fim de enfrentar as graves faltas de energia no estado da Austrália do Sul. Quando a seriedade de Musk foi questionada, em um ato impressionante de bravata bilionária, Musk tuitou: “A Tesla instalará o sistema e o colocará em funcionamento em 100 dias, a partir da assinatura do contrato, ou ele sairá de graça. Isso é sério o suficiente para você?” O prazo foi cumprido por Musk e o governo australiano pagou pelo serviço entregue.
Os ‘dias de glória’ de Musk, o heroico construtor de baterias da Tesla, acabaram. Agora, o Musk do X está ganhando fama da maneira que os brasileiros já conhecem. A primeira faísca de raiva na Austrália veio quando o X se recusou a cumprir os pedidos do comissário de eSafety daquele país para remover vídeos inflamatórios do esfaqueamento de um bispo em Sydney, ocorrido em abril de 2024. Desde então, Musk rejeitou as demandas para remover, do X, desinformação e conteúdo prejudicial para crianças.
Os brasileiros não ficarão surpresos ao saber que Musk escolheu se envolver com políticos e reguladores australianos, trocando insultos. Ele chamou o comissário de eSafety de “comissário de censura da Austrália”. Ele rotulou os políticos australianos de “fascistas”. Ou seja, ele adota uma espécie de ‘procedimento padrão’, repetindo as minhas e inconsistentes afirmações acusatórias, quando um desejo seu não é satisfeito. No fundo, ele não parece preocupado com uma legítima defesa das liberdades individuais dos cidadãos das sociedades democráticas, mas com as suas próprias liberdades ou, melhor, vontades, seus próprios interesses.
Diante das acusações de Musk, os líderes australianos tentaram responder à altura. O ex-líder do Partido Trabalhista, Bill Shorten, disse: “Elon Musk teve mais posições sobre liberdade de expressão do que o Kama Sutra”. Ele apontou que a defesa de Musk pela liberdade de expressão online é, na verdade, uma questão dos interesses comerciais de sua empresa. O atual primeiro-ministro, Anthony Albanese, expressou o sentimento de muitos australianos quando chamou Musk de “bilionário arrogante que pensa que está acima da lei”.
Para enfrentar Musk e suas estratégias, os governos democráticos não podem utilizar suas armas, nem cair nas suas armadilhas. Se a batalha pela soberania for decidida por insultos, Musk vencerá. Ele adora insultos, e o X, com seu acesso irrestrito a milhões de usuários ativos mensais, garante que seus gritos de “fascista” sempre terão mais peso do que o comentário de Albanese sobre “um bilionário arrogante”. A maioria dos políticos democráticos é cautelosa com o que dizem em público. Musk, em contraste, diz o que quer. E é muito provável que ele não se incomode em ser chamado de “bilionário arrogante que acha que está acima da lei”. Na verdade, para ele, isso deve soar como um elogio. Não seria surpreendente se ele verbalizasse o entendimento de que as leis precisam se ajustar a ele.
A Austrália parece estar aprendendo algo que os brasileiros já entendem. Você não pode ferir os sentimentos de Musk com insultos. Mas ele se importa com o lucro. No passado, os insultos eram uma maneira confiável de atrair usuários para a plataforma e, assim, aumentar os lucros. Tornar o X indisponível para os brasileiros prejudicou os negócios de Musk. Isso impacta negativamente os interesses comerciais, ainda que alguns usuários tenham o trabalho de tentar contornar os obstáculos, pois ‘o ponto de venda’ das redes sociais é que o acesso deve ser fácil.
A Austrália não é corajosa o suficiente para banir o X, mas, em setembro, introduziu uma legislação que multaria as empresas de redes sociais em até 5% de sua receita global, caso não parassem a disseminação de desinformação. O absolutismo de Musk sobre a liberdade de expressão funciona como um tuíte, mas pode sair muito caro, mesmo para alguém rico como ele!
Quem é o dono do futuro?
Acreditamos que, por trás da busca pelos dólares australianos e reais brasileiros, está uma batalha pelo controle do futuro. Diante de mudanças aceleradas e inovações socialmente disruptivas, parece que o futuro das sociedades organizadas democraticamente nunca foi tão incerto. Estamos cientes das imperfeições dos diversos sistemas democráticos ao redor do mundo. Não negamos que novas tecnologias ou novos usos da tecnologia possam expandir a participação cidadã e ajudar a melhorar os processos deliberativos democráticos. Nosso ponto não é demonizar a tecnologia e glorificar o estado. Algum tipo de interação ou negociação entre interesses privados das corporações tecnológicas e os interesses público-estatais nos parece incontornável.
Nesse sentido, uma tendência nos preocupa: transformar duelos entre empreendedores de tecnologia e políticos em duelos entre heróis e vilões. Em um canto, estão Musk e outros megaempresários da tecnologia. No outro canto, estão de Moraes, Albanese e outros representantes do estado. Para alguns, aqueles são os heróis, enquanto, para outros, os vilões. A mesma discordância se aplica a estes, sendo que vilania destes pode ser a tendência mais sobressalente, sobretudo diante da justificada insatisfação dos cidadãos com seus representantes eleitos ou com a atuação dos agentes públicos.
Não acreditamos que devemos entregar o papel de nossos líderes eleitos democraticamente ou dos agentes públicos legitimamente estabelecidos nas mãos dos bilionários da tecnologia. Tanto a Austrália quanto o Brasil precisam de instituições democráticas, mesmo que imperfeitas.
A busca por heróis do estado pode nos conduzir pelo caminho do populismo. A importante decisão tomada pelo Ministros Alexandre de Moraes não deve alçá-lo à condição de herói. O ‘heroismo’ dele poderia facilmente ruir, caso um traço problemático da sua ‘identidade secreta’ fosse revelado, levando, com isso, a importância da sua atuação pública e, mais especificamente, da decisão tomada no caso em tela. No mito do herói, a criação da figura heroica é criada na mesma velocidade que pode ser destruída. Nas democracias, não precisamos do ‘culto da personalidade heroica’. Nelas, precisamos de coisas duradouras, como as instituições. O futuro das sociedades democráticas, no nosso entendimento, não pode estar nas mãos de alguns ‘heróis’.
Nesse sentido, depositar nossas esperanças em ‘heróis da tecnologia’, como Elon Musk, revela uma atitude equivocada em uma solução técnica e rápida para os problemas complexos, os quais desafiam nossas sociedades atualmente e desafiarão ainda mais fortemente no futuro. Podemos imaginar suas tecnologias resolvendo todos os problemas de nossas nações, assim como podemos imaginar colônias paradisíacas em Marte até 2050. Consertar democracias problemáticas é muito mais difícil do que construir uma grande bateria no deserto australiano. Musk, como um cidadão que se dedica ao ramo das tecnologias avançadas, até pode contribuir para parte da solução de alguns dos problemas que temos hoje. Mas não podemos ficar à mercê de que ele queira isso, de que mude seu ‘mindset’, assumindo, por motivação própria, uma postura distinta da que manifesta atualmente.
Quando devemos considerar o que acompanha as visões de futuro de Musk
Suponha que transformemos Musk em um super-herói. A recente cobertura da The Economist maravilhou-se com a lucratividade inesperada das empresas de Musk, o que parece apoiar essa percepção. Expressou surpresa que o valor de mercado da SpaceX pudesse, em breve, ultrapassar o da Tesla, Inc. A revista sugeriu que os céticos sobre a “bravura nerd” de Musk olhassem para o céu acima de suas cabeças.
Pode parecer que os conflitos de Musk com os reguladores na Austrália e no Brasil sobre o X e sua queda no valor de mercado são um desafio para seu status de herói. Mas isso não é obstáculo para a imaginação exponencial de Musk.
Podemos ver uma pista do futuro imaginado por Musk nos Termos e Condições de Starlink, outra empresa muito valiosa de Musk. As condições com as quais os usuários dos serviços da Starlink concordam incluem uma “Lei Reguladora”, afirmando que Marte é “um planeta livre”. Nenhum “governo terrestre tem autoridade ou soberania sobre atividades marcianas. Assim, as disputas serão resolvidas por meio de princípios autogovernados, estabelecidos de boa-fé, no momento do assentamento marciano”. Australianos e brasileiros já viram como é difícil fazer com que Musk remova conteúdo prejudicial de uma empresa com sede em San Francisco. Quão difícil poderiam ser as ordens de remoção de conteúdo de redes sociais quando esse conteúdo vier do ‘planeta livre’ de Marte e rejeitar a autoridade do ‘governo terrestre’?
A imaginação heroica de Musk também se expressa em seus planos para a IA. Ele tem um modelo de IA chamado Grok, que ele treinando, usando o X. Na verdade, o acesso a esses tuítes deve ter sido uma das razões para a compra do Twitter. Seu comportamento na plataforma assustou muitos anunciantes, levando a uma queda acentuada em seu valor de mercado. Musk reclamou da linguagem respeitosa de IAs, como o ChatGPT. Tanto a Austrália quanto o Brasil têm muitas pessoas irritadas que adorariam a chance de interagir com uma IA influenciada pelos elementos mais irritados do X. E se os usuários do X aprenderem com Musk como se comportar em sua plataforma e Grok aprender com eles como ele e seus descendentes devem nos tratar?
Durante as eleições municipais deste ano no Brasil, muitos de nós ficamos alarmados com as cadeiras jogadas e os insultos proferidos no que deveria ter sido um debate político. Imaginar uma sociedade de ‘políticos Grok’ não soa muito promissor. A ‘cordialidade artificial’ do ChatGPT pode não ser muito atraente, mas a agressividade de Grok soa aterrorizante. O futuro da democracia não precisa de cidadãos artificialmente cordatos, mas estaria em sério risco se a raiva e a agressividade se tornarem as formas dominantes de nossos relacionamentos. A democracia também é um sistema de valores.
Certamente, os valores de Elon Musk não estão alinhados com aqueles que sustentam as sociedades democráticas. Podemos discordar razoavelmente sobre a democracia, sobre sua melhor configuração e seus valores centrais, mas parece irracional, para qualquer defensor da democracia, contestar o valor das instituições e leis. Claro, as instituições e leis podem ser criticadas e devem ser melhoradas. No entanto, tanto a crítica quanto a melhoria devem respeitar os procedimentos democráticos. Ninguém – nem o homem mais rico do mundo, nem o mais sábio (aqui, não nos referimos a Elon Musk) – pode, em um regime democrático, estar acima das instituições e leis. Ninguém pode violar a lei alegando ser um defensor da democracia. Respeitar a lei e cumprir as ordens judiciais é mais do que o preço de usufruir os benefícios da democracia, é um valor.
Chega de heróis!
Há muitas lições que a Austrália e o Brasil podem ensinar ao mundo sobre esses casos. Suspeitamos fortemente que não serão os últimos. Um bilionário não é, e não deveria ser, superior a um estado soberano. O dinheiro não pode ser mais poderoso do que as leis e instituições de um estado democrático. Os interesses individuais e corporativos não podem prevalecer sobre todos os interesses coletivos, mesmo que o poder de mercado pareça permitir isso. Uma liberdade, seja qual for, deve ser entendida como parte de um sistema de liberdades, onde nenhuma é soberana (em nossa opinião, Musk está longe de ser um defensor razoável da liberdade de expressão, nem está interessado em entendê-la dentro de um sistema de liberdades democráticas).
Muitas vezes, precisamos reforçar um ponto para que uma lição seja apreendida. Fazemos isso, então, retomando uma ideia: sempre que um novo ‘herói’ da democracia surge, com sua capa preta, e ‘salva’ a democracia, na verdade, temos um sinal de que ela vai mal. Já vimos esse filme antes no Brasil, e o final (se é que podemos dizer isso) não foi feliz. De fato, sempre que um suposto ‘herói’ surge – seja ele um empresário ou um ministro do Supremo Tribunal – estamos testemunhando um sintoma de que algo está errado numa sociedade. Não devemos construir uma estátua em homenagem a Alexandre de Moraes. Ele simplesmente cumpriu a lei. Isso não é um ato heroico, mas sim o cumprimento de seu dever público, o que, claro, é digno de reconhecimento. Qualquer um, no papel que ele temporariamente ocupa, deveria fazer o mesmo. São as instituições permanentes que devem ser celebradas em um regime político democrático, não os indivíduos.
Não é a coragem de Alexandre de Moraes que devemos destacar. Como os jovens nas redes sociais costumam dizer hoje, “não é sobre isso”. Ele é um (temporário) ministro do (permanente) Supremo Tribunal do Brasil, nada mais. Ele não é um ‘anjo vingador’ que veio nos salvar do ‘grande vilão’. A democracia não é um filme de Hollywood, onde assistimos à batalha final entre o ‘bem’ e o ‘mal’. Nós não somos – ou não deveríamos ser – espectadores que ‘torcem’ para que o ‘herói nos salve do ‘vilão’. O que realmente importa para o futuro da democracia no Brasil, na Austrália e no mundo não é quão destemido é um indivíduo. Precisamos aprender que, na ‘batalha’ pela democracia, todos somos ‘combatentes’. Nossas ações cívicas devem contribuir para a manutenção das instituições. Não devemos ‘terceirizar’ nossas responsabilidades, criando supostas figuras heroicas, nas quais depositaremos passivamente nossa confiança.