O que é ser vereador
Aprovar os projetos de lei do Executivo e calar diante de desmandos: é este binômio subserviente que faz com que a maior parte dos cidadãos veja as Câmaras Municipais como simples órgãos das Prefeituras. Chegou a hora de rediscutirmos o pacto federativo e a estrutura do Estado brasileiro
A arte de fazer leis guarda curiosa correspondência com a arte do corte e da costura. Se o alfaiate ou estilista partem da idéia que têm da peça de vestuário que querem produzir, o legislador parte da visão de mundo que quer tornar obrigatória nas relações humanas. Nessa ação, tanto os que manejam tesouras como os que produzem regras, podem acertar ou errar. Tendem a acertar os costureiros que medem com exatidão o tamanho dos corpos que vão cobrir com seus panos e sabem captar a personalidade do seu cliente. A boa roupa deve amoldar-se ao corpo, de modo que o usuário queira conservá-la pelo tempo que a vida ou a moda o permitirem. Tendem a errar os que tropeçam nas medidas ou querem vestir seus clientes com o figurino que viram em uma revista cobrindo outro ser, sem considerar o corpo ou o espírito daquele que paga seus serviços. Vestem os gordos como magros, raquíticos como atletas, sorumbáticos como festeiros. Fazem sobrar pano onde o corpo é fino e faltar onde há curvas. É o que ocorre, também, com os fazedores de leis. A trajetória do federalismo e da representação política na história constitucional brasileira bem o demonstra.
Rompendo com a ordem política unitária e centralizada que sufocou as províncias durante o Império, a República brasileira nasceu, no ano de 1889, embalada por um forte sonho autonomista. Inspirada no modelo consagrado na Constituição americana de 1787, a Constituição brasileira de 1891 acolheu o modelo federativo, admitindo a distribuição do poder governamental entre unidades regionais distintas. Com isso, disse Rui Barbosa “a revolução federativa penetrou, pois, nos fatos, como torrente violentamente represada” 1. Contudo, como chegou a observar o representante gaúcho no Congresso Constituinte de 1891, Júlio de Castilhos, “por circunstâncias peculiares, que não se dão no Brasil, na América do Norte o movimento partiu dos Estados para o Centro. Eram os Estados que tinham demasiada força e, portanto, tornava-se necessário proteger a União. Mas aqui se dá o contrário; aqui é preciso proteger os Estados contra a absorção central. Esta diferença é capital, e, a meu ver, tem sido, por assim dizer, a causa pela qual se hão equivocado alguns dos nossos mais distintos colegas, que querem identificar a situação do Brasil com a dos Estados Unidos da América do Norte, quando as condições são inteiramente diversas” 2.
Forjou-se, assim, entre nós, um “pacto federativo” não “pactuado” por unidades regionais, mas imposto a partir de um figurino estrangeiro fragmentador do poder político. Nossas subseqüentes cartas constitucionais, embora pintando a matéria com tintas e tons diferentes, acabaram por perpetuar as vigas mestras desse curioso “pacto”.
Seria, todavia, um erro não perceber que o estilista constitucional, ao tecer a tela principal de nossa Federação a partir do design original, não tenha feito ajustes para cobrir partes que ficariam desnudas no corpo que desejava vestir. Desde o início da colonização, os Municípios, por meio das Câmaras Municipais que os administravam, concentraram importantes competências e desenvolveram intensas atividades políticas. Seria impossível, pois, ignorá-los como um centro de produção de políticas governamentais. Fez-se, então, um remendo sui generis ao “modelito” original: enquanto na quase totalidade das federações o poder governamental é distribuído em duas órbitas de governo (União e Estados Federados), no Brasil, ele foi distribuído em três esferas (União, Estados e Municípios), como reconhece hoje formalmente o artigo inaugural de nossa vigente Constituição.
Naturalmente, os tecidos se amoldam aos corpos e não o contrário. Os fatores reais de poder e nossa cultura política centralizadora fizeram com que o federalismo brasileiro não propiciasse o risco da fragmentação da unidade nacional, mas a tendência de centralização do poder nas mãos da União. Com isso, o Município, apesar de formalmente ser um ente autônomo dotado da capacidade de legislar, de se autogovernar e se auto-organizar, e ser a esfera de poder mais próxima do cotidiano da população, é, ainda hoje visto e considerado politicamente como o “elo mais fraco” da Federação.
Análise semelhante poderá ser feita em relação à adoção do princípio da separação dos poderes em nosso país. Esboçado a partir dos alicerces teóricos propostos por Montesquieu para evitar o abuso de poder, esse princípio afirma a necessidade de que o poder estatal não esteja concentrado nas mãos de uma única pessoa ou de um único grupo de pessoas. Com isso, a idéia de um Poder que produz leis (Legislativo), de um Poder que as executa (Executivo) e de um Poder que julga os que as transgridem (Judiciário), todos autônomos e independentes, constituiu-se num dos alicerces dos Estados modernos.
A estrutura do nosso Estado acolhe esse princípio. Contudo, a realidade autoritária de nossa história, ao forjar os fatos da vida e a dimensão ideológica que permeia a cultura política, sempre demonstrou que a teoria acolhida nas normas constitucionais pode ficar muito distante da realidade. Para grande parte dos brasileiros, o Executivo e o Judiciário são vistos como imprescindíveis. O primeiro governa, o segundo repara injustiças. E o Legislativo? Aprova as leis que o governo quer ou as rejeita sempre que a maioria dos seus membros não consegue os “favores” que solicita. Quando age de acordo com o desejo da maioria da população, é visto apenas como uma correia de transmissão da vontade popular vitoriosa. É tido, portanto, como um “poder-apêndice”, um satélite que gravita em torno do “poder-sol”, o Executivo. Seus representantes são eleitos em processos eleitorais tidos como de menor importância em relação aos que escolhem os chefes do Executivo. E, na sua grande maioria, os próprios parlamentares incorporam essa visão, assumindo um papel distante do que seria esperado dos membros de um Poder. Adotam ações clientelistas; alienam sua independência, indicando pessoas para a estrutura do Executivo; subordinam a agenda política do Parlamento às imposições daquele Poder; apresentam propostas que sabem inexeqüíveis, apenas para agradar suas bases eleitorais, revelando um total descompromisso com a condução republicana do Estado.
Sendo assim, o binômio “centralização-autoritarismo”, que nega, em nossa história, a existência de um federalismo substantivo e de um Parlamento como verdadeiro Poder de Estado, nos fornecerá a compreensão da atuação de nossas Câmaras Municipais. Situados no elo mais fraco da Federaç&
atilde;o (o Município) e representando o Poder mais fragilizado aos olhos do cidadão (o Legislativo), estes órgãos recebem a carga histórica e de realidade que os coloca numa dimensão de fragilização política de segundo grau. Seus membros, os vereadores, são escolhidos não para serem membros de um Poder local, mas para serem “despachantes” de demandas junto ao Prefeito. Para serem bem avaliados por seus eleitores, necessitam estar sempre de bem com o “rei”. Aprovar os projetos de lei do Executivo e calar diante de desmandos é o que propiciará o seu êxito na solução das pequenas demandas junto a quem de fato exerce o poder na cidade.
Isso explica o fato de que, segundo pesquisas, a maior parte dos cidadãos não enxerga as Câmaras Municipais como um Poder, mas como um órgão da Prefeitura (Executivo). Há só um Poder, de fato, na cidade 3. Assim, quando vereadores se insurgem contra o Prefeito, fazendo com que a Câmara deixe de ser um mero cartório de homologação das políticas ditadas pela Prefeitura, quase sempre a governabilidade fica afetada. Com isso, a expressão maior e mais rica da vida política local, que deveria estar aberta ao pluralismo, à pactuação republicana de políticas públicas, à participação ampla da comunidade, acaba sujeita ao mandonismo castrador de uma única pessoa. O Poder Local, dividido de direito, mas concentrado de fato, perde então sua virtuosidade e sua maior razão de ser.
Definido o diagnóstico, o que fazer? Em primeiro lugar, devemos ter claro que não é simples mudar uma cultura. A práxis política negadora dessa realidade deve, antes de tudo, ter clara a dimensão pedagógica de sua ação, jamais cedendo espaço a tentações pragmáticas e oportunistas, características de nossa vida política, tanto à direita como à esquerda. Em segundo lugar, ter a coragem de rediscutir a estrutura do Estado brasileiro, evitando os dogmas e “modelitos” pré-concebidos. É chegada a hora de rediscutirmos, à luz de nossa realidade e de nossa história, o “pacto federativo” brasileiro e a estrutura de nosso Estado, buscando a ampliação da participação direta e o fortalecimento do Poder Local. Não será fácil, porém, a execução dessa tarefa.
*José Eduardo Cardozo é professor de Direito Administrativo, deputado federal em seu segundo mandato e secretário-geral do Partido dos Trabalhadores (PT). Presidiu a Câmara Municipal de São Paulo em 2001 e 2002, e integra o Conselho Editorial de Le Monde Diplomatique Brasil.