O que esperar do terceiro mandato de Lula
Lula chega para o seu terceiro mandato encontrando um cenário de terra arrasada. Será necessário reerguer instituições, promover a reconstrução nacional a partir de um ambiente de esperança e, sobretudo, de diálogo, e restabelecer espaços democráticos de participação social
Desde o golpe civil-midiático-empresarial que depôs a presidenta Dilma Rousseff em 2016, foram seis anos e meio de governos que significaram um profundo retrocesso na recente e frágil democracia brasileira. Durante esses anos, acumulamos perdas de direitos que resultaram no aumento da pobreza, na volta do Brasil ao mapa da fome, aumento dos casos de feminicídio, desmatamentos descontrolados, queimadas criminosas. A liberação do porte de armas fez aumentar a violência e a militarização do país se concretizou na ocupação de espaços de poder e funções que deveriam ser representados por civis.
Foram anos de um vazio institucional que devastou a sociedade brasileira e afetou, sobretudo, as populações mais vulneráveis. Quatro anos agravados por uma pandemia que poderia ter sido menos letal, se levada a sério; pelo recrudescimento dos fundamentalismos religiosos, políticos e econômicos e por uma polarização que era necessária para a sobrevivência política de Bolsonaro. O obscurantismo foi o modus operandi de Bolsonaro; a pobreza, a fome e a morte foram suas marcas.
O que não podemos perder de vista
Neste novo cenário, será preciso tensionar para não haver retrocessos em relação aos direitos conquistados, e recuperar os que foram perdidos. O teto de gastos é uma afronta à vida da população, sobretudo dos segmentos mais empobrecidos. Ver o Estado limitar seu investimento em saúde e educação para bancar o “humor” do mercado é estarrecedor. Não pode existir dúvida entre agradar os ricos ou alimentar os famintos. Combater a fome é prioridade. O país que já celebrou a saída de milhões desse patamar extremo, hoje vê mais da metade da sua população sem ter certeza se conseguirá se alimentar naquele dia. Atualmente, o Brasil contabiliza quase 33 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, é inaceitável.
Lula chega para o seu terceiro mandato encontrando um cenário de terra arrasada. Será necessário reerguer instituições, promover a reconstrução nacional a partir de um ambiente de esperança e, sobretudo, de diálogo, e restabelecer espaços democráticos de participação social. Não é possível construir um país democrático sem garantir que as maiores vítimas da extrema desigualdade brasileira sejam ouvidas e incidam sobre as tomadas de decisões que guiarão os nossos próximos passos.
Será necessário muito trabalho para reestruturar os conselhos nacionais de gestão de política que Bolsonaro tentou desmantelar, como o da infância, do meio ambiente, da previdência e do trabalho. O novo governo não pode perder de vista que muitos dos decretos que retiraram direitos devem ser imediatamente revogados, bem como projetos de lei que viabilizaram a atividade sangrenta do garimpo e da mineração em terras indígenas, a permissividade para o uso de agrotóxicos que são proibidos no mundo inteiro, envenenando mães de família, crianças e idosos. Novas políticas socioambientais devem ser elaboradas e estabelecidas para proteger a nossa sócio-biodiversidade.
As mudanças climáticas se mostram uma emergência em escala global e não há como reverter o quadro desesperador no qual nos encontramos sem que os povos e comunidades tradicionais estejam à frente do processo, pois são eles quem mantêm as florestas em pé, os rios e suas nascentes cheias, a terra longe do veneno pulverizado por drones do agronegócio.
Sabemos que para esse mandato Lula precisou de uma ampla coalizão de movimentos e partidos para se eleger. Sabemos que o ponto fulcral dessa convergência foi a garantia do estado democrático de direito fortemente ameaçado pelo aparelhamento do Estado pela extrema direita. Todavia, não podemos perder de vista os danos causados pelo agronegócio e o aumento da riqueza dos grandes oligarcas do setor, gente que enriquece em cima do sangue indígena, quilombola e de outras populações tradicionais.
Para além da urgente necessidade de um programa de reforma agrária, é necessário definir políticas que priorizem a produção de alimentos livres de agrotóxicos e acessíveis a toda a população. Nesse sentido, um desafio é retomar e ressignificar no novo contexto o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para as pequenas famílias agricultoras e garantir a compra de alimentos saudáveis para nossas crianças nas escolas de todo Brasil, ao mesmo tempo em que se fomenta a agroecologia nas comunidades tradicionais.
Também se faz urgente retomar a regularização de terras indígenas e quilombolas, totalmente paralisadas no atual governo; reestruturar a Fundação Nacional do Índio, o Ibama, a Fundação Palmares, o Incra. Não podemos permitir que o Ministério dos Povos Originários tenha um papel decorativo no governo Lula. Este é um momento histórico, uma conquista dos movimentos que reúnem povos e comunidade tradicionais e que não poderá ser reduzido à politicagem.
Desarmar a população e retomar o enfrentamento a todos os tipos de violência que o armamento generalizado provocou será um grande desafio, sobretudo as violências cometidas contra lideranças de movimentos sociais e pessoas que se opuseram a esta lógica; população LGBTQIA+; mulheres – especialmente as mulheres negras, vítimas preferenciais dos crimes de feminicídio. Temos que resgatar os direitos trabalhistas e previdenciários, bem como os meios de existência das entidades de classe e populares. Cobrar o investimento em políticas públicas de inclusão social estruturantes ao lado de ações afirmativas que ainda são necessárias.
Será necessário e urgente o investimento em educação desde o ensino básica, passando pelo superior e fomento à pesquisa. O Brasil viu as escolas públicas serem sucateadas e os recursos para educação e pesquisa serem cortados e desviados para conchavos políticos eleitoreiros. Sem educação o país não avançará em nenhuma direção.
O governo eleito deverá assumir o compromisso com a laicidade do Estado, ao mesmo passo que precisará buscar meios de enfrentar os fundamentalismos e o racismo religioso tão fortemente estimulados nesse período de governo neofascista. Respeitar a laicidade do Estado é fundamental para a garantia do direito à igualdade em todos os seus aspectos. O estabelecimento de leis laicas e justas evita que a religião seja usada como ferramenta reguladora e jurídica da conduta de cada pessoa, dos costumes, da vida pública do conjunto da sociedade. A laicidade do Estado protege a diversidade: não professando nenhuma verdade ou crença baseada nesta ou naquela tradição religiosa.
Não há espaço para anistia aos crimes cometidos contra o Brasil e ao seu povo nos últimos quatro anos. Pessoas morreram por causa da negligência desse governo, quando não por consequência direta de uma ação orquestrada por ele – visto o que aconteceu em Manaus, no auge da pandemia quando mais de trinta pessoas morreram por falta de oxigênio nos hospitais e o governo federal, sabendo da situação crítica, tardou a enviar ajuda. Os sigilos de cem anos impostos por Bolsonaro precisam cair. Ele, que mergulhou de cabeça na sua missão de destruir as estruturas da democracia brasileira e foi líder desse capítulo obscuro da nossa história, não pode se valer da tão importante Lei de Acesso à Informação para esconder os crimes da sua família e dos seus aliados. Não se trata de vingança, mas sim de justiça.
Apesar de terem perdido força após o resultado do segundo turno das eleições presidenciais, a extrema direita conseguiu eleger uma bancada que ainda acumula um prestígio e poder de aglutinação no cenário político que se desenhou no processo eleitoral de 2022. Não podemos correr o risco de subestimar a ameaça que esses grupos de extrema direita, que incluem células nazistas e extremamente violentas, representam para a sociedade brasileira. Já cometemos esse erro em 2018, portanto, não podemos repeti-lo, de jeito algum, daqui para frente.
Ainda que sejamos minoria, teremos nos próximos quatro anos boas representações do campo progressista ocupando espaços importantes no Congresso Nacional como nunca antes tivemos: são importantes lideranças do movimento indígena atuando diretamente na pauta dos povos originários, dos direitos territoriais e da conservação da sócio-biodiversidade; na luta por moradia digna e pelo pleno direito à cidade; nas questões ambientais e das mudanças climáticas; no enfrentamento à bancada fundamentalista da Bíblia; mulheres trans lutando contra a LGBTfobia diretamente por dentro da legislação. Representações importantíssimas, e que precisarão do nosso apoio.
Temos acenos importantes da chapa Lula-Alckmin, como a manutenção do Bolsa Família no valor de R$ 600, a recriação do Ministério da Cultura, da Igualdade Racial, a promessa de revogação do teto de gastos; apesar de vermos que, no momento, o próprio orçamento secreto já sumiu da pauta da Frente Ampla eleita. Arthur Lira não irá abrir mão facilmente da ferramenta que lhe tornou, talvez, o presidente da Câmara mais poderoso da história do Brasil. O Congresso Nacional não dará vida fácil a Lula e os políticos do Centrão continuam sendo uma grande preocupação, pois seguem fortes como nunca. Precisamos estar ao lado do governo para evitar os retrocessos que, sem dúvida, se apresentarão e serão apoiados por grupos fisiológicos dentro e fora do ambiente legislativo. Ainda assim, não podemos abrir mão de fazer a crítica quando necessário e pressionar o governo eleito.
A retomada do processo democrático enfrentará resistência. Já estamos sentindo esse ambiente com a extrema direita a contestar o resultado da eleição presidencial e a exigir intervenção militar. A democracia continuará sofrendo ataques racistas e misóginos da branquitude patriarcal que, mais uma vez, tentará se valer da violência física, política e religiosa para nos abater; da negação de direitos para manterem seus privilégios nas estruturas de poder. Não existe a mais remota possibilidade de nos acovardarmos. Seguiremos firmes, fortes, atentos e atentas na luta por direitos.
Bianca Daébs é pastora da Igreja Episcopal Anglicana, teóloga feminista e assessora para ecumenismo e diálogo inter-religioso da CESE. Sônia Mota é pastora da Igreja Presbiteriana Unida, teóloga feminista e diretora executiva da CESE. Tarcilo Santana é jornalista e integra a equipe de comunicação da CESE.