O que fazer após a orgia neoliberal?
Da reforma da trabalhista à reforma da previdência, as políticas neoliberais conhecem seu êxtase desviando a atenção do que é fundamental para a esquerda: repensar as formas de organização econômica
O sociólogo americano Richard Sennett advertiu recentemente que “o capitalismo global está construindo a mesma cidade em todo o mundo”. Com isso ele se referia ao fato de ver, ao sair de um avião em qualquer lugar, que as cidades estão cada vez mais parecidas, vítimas da padronização formal das construções cujo efeito é a padronização dos comportamentos dos seus habitantes, de suas vidas e da política. Para Sennett a questão é “quebrar esse poder hegemônico”, valorizar as particularidades de cada cidade na busca por cidades mais abertas, interativas e sinérgicas que promovam a igualdade, instaurar instituições políticas responsáveis e democráticas. Se trata de construir novos instrumentos para resistir a dominação do capital.
Algo semelhante ao que ocorre com as cidades, ocorre com a sociedades também. Não apenas a paisagem da cidade está mais parecida, mas as relações políticas e sociais também. Em todo o mundo, as pessoas estão sendo vítimas da ampliação das relações sociais de exploração, do poder exercido pelos detentores de capital sobre os políticos, que tomam decisões cujo efeito é a padronização das relações sociais e piora das condições de vidas das pessoas. Mais neoliberalismo é sempre mais mercado, mais pobreza e mais exploração. Para a esquerda, na aprovação da reforma da previdência, a questão de fundo é a mesma, a de como quebrar o poder hegemônico do capital, pois assim como não há cidade ideal, não há sociedade ideal, mas há melhor sociedade. A melhor sociedade é sempre aquela em que as pessoas podem viver seu futuro dignamente, produto de seu trabalho. Não é o que acontece no Brasil.
A reforma da previdência em andamento é a pior página da história recente do país pois agrava os problemas de desigualdade social, piora as formas de aquisição da aposentadoria e como aponta Sennett, agrava justamente o que é vital para as camadas mais baixas da sociedade, viver o futuro dignamente, pois para estas “o problema não é onde morar, mas como sobreviver”. Enquanto o desafio da esquerda é propor novas saídas econômicas, o neoliberalismo avança no país na produção de uma sociedade cada vez mais marcada pela concentração de renda e riqueza nas mãos de poucos, com a pobreza se distribuindo para o resto do espectro social.
Deu pena até no diabo
Instaura-se o fim das conquistas da Constituição de 1988 em termos de direitos civis, políticos e sociais. É preciso que se repita mais uma vez que a aprovação do projeto da previdência defendido pelo governo Bolsonaro é a maior tragédia brasileira em qualquer sentido em que se olhe. De uma vez só ela destrói o modelo de sociedade, o modelo de previdência pública e prejudica os mais pobres. Por que? Porque destrói a seguridade social, núcleo da cidadania, através do fim do mecanismo de seu financiamento com a mudança do artigo 195, que tira dinheiro do INSS rural, urbano e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para fazer 93% da economia que promete. Diz Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): “ A reforma é uma transferência do INSS para as camadas de alta renda”.

A reforma teve o objetivo de atender o mercado financeiro. Até os azulejos portugueses dos casarões da Rua da Praia, em Porto Alegre, sabem que os 379 deputados foram comprados: Bolsonaro não terminou com a velha política, ele a aperfeiçoou, levou ao seu êxtase. É a questão central formulada pelo sociólogo Jean Baudrillard em sua obra A transparência do mal (São Paulo, Papirus, 199), onde caracteriza o atual estado de coisas como pós-orgia, depois da liberação em todos os domínios, da explosão da economia ultraneoliberal de Paulo Guedes, da reforma trabalhista que reduz trabalho e emprego, vistos como o momento de liberação econômica em todos os sentidos e que promove a capitalização dos setores mais burgueses da sociedade, o que temos é o aumento do capital financeiro às custas da exploração não apenas do trabalho, mas do produto do trabalho (aposentadorias) e também das riquezas naturais.
O quê significa a proposta de exploração comercial de nossas reservas naturais como o Arquipélago de Abrolhos senão que estamos vivendo a orgia do capital, a liberação dos impulsos mais destrutivos do dinheiro? “Total orgia de real, de racional, de sexual, de crítica e de anticrítica, de crescimento e de crise de crescimento. Percorremos todos os caminhos da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres. Hoje, tudo está liberado, o jogo está feito e encontramo-nos coletivamente diante da pergunta crucial: O que fazer após a orgia?” É a questão se aplica como uma luva no Brasil e que a esquerda deve responder.
Para Baudrillard, a realização da utopia neoliberal em andamento, essa hiperrelização, reprodução infinita dos ideais do capitalismo de mercado vai terminar produzindo uma indiferença fatal. Se a revolução neoliberal está em andamento, é preciso reconhecer que revolução de esquerda não aconteceu de modo que se esperava. É esse recuo da esquerda que é preciso combater. E nesse sentido, a opção de luta que a esquerda incorporou recentemente, não deve ser descartada: as redes. “Com certo recuo, pode-se dizer que o fim inelutável de toda a liberação é fomentar e alimentar as redes. As coisas liberadas são fadadas à comutação incessante e, portanto, à indeterminação crescente e ao princípio de incerteza” diz Baudrillard.
E as denúncias ao governo vieram através delas, crítica ao pacote completo que levou o trabalhador a ser obrigado a ter 40 anos de contribuição para ter direito a aposentadoria integral, a ter o salário médio reduzido em até 18% porque calculado sobre todos os salários, a receber 60 % e não 85% do valor a que faz jus e ter reduzida a pensão por morte, em certos casos, para abaixo do mínimo, tudo isso fez sucesso nas redes sociais. Mesmo assim, não foi suficiente: o governo liberou cerca de 171,916 milhões em emendas. O governo jura que é coincidência. Não é.
A derrota da esquerda deve-se a incapacidade de organizar manifestações nas ruas e de construir uma frente única, responsável pela direita ter chegado ao poder. Também permitiu que o serviço público fosse tratado como privilegiado: não é possível aceitar a redução de despesas com servidores como equivalente aos milhões dados de renúncia fiscal. Vivemos na Disneylândia da extrema-direita: cadê o povo nas ruas, cadê o povo no Congresso? Para as eleições municipais que estão chegando, a esquerda deve unificar-se com base num programa de reformas locais progressistas, pois até o Diabo está com pena dos brasileiros.
Um governo irresponsável
Por quê o governo age assim? A filósofa italiana Luigina Mortari afirma que a essência da responsabilidade é responder ativamente a necessidade do outro. O termo origina-se da palavra latina respondere, que significa atender a um chamado. Ser responsável significa ser disponível para fazer o que for necessário para garantir ao outro o bem-estar, disponibilidade que deve ser declarada para que o outro saiba que pode contar conosco. A sociedade precisa de ajuda dos políticos: diversos atores comunicam sua vulnerabilidade através de passeatas, manifestações na rua ou na internet. Eles testemunham que a sociedade está doente.
Os políticos de direita e seus aliados são insensíveis a este chamado. Não se tocam pela tragédia, distanciam-se dos trabalhadores, contrariando a máxima “não darás as costas ao teu irmão” (Is 58,7b). Da reforma da previdência do governo Bolsonaro à privatização da Companhia Estadual de Energia Elétrica do governo Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul, nossos governantes mostram que só são capazes de atender a um chamado: o do dinheiro. É só olhar as concessões do governo federal ao setor agrícola e à igreja, a patrola sobre a vontade popular nas privatizações do Estado: o único chamado a que atendem nossos governos liberais é o do capital, o governo só sente-se responsável com os interesses da grande burguesia nacional, voltando suas costas para os trabalhadores.
Vivemos tempos conturbados. O papel do governo resumiu-se a separar os acomodados das populações desesperadas. A esquerda precisa ver que a ascensão da direita é sistêmica e deve partir para propor reações sistêmicas, em todas as esferas, porque os governos de direita se retroalimentam e não podemos mais apostar em reações unidimensionais. “Até quando permitiremos que o Capital use o Estado até extrair a última gota de sangue do brasileiro? A esquerda precisa reagir logo, construindo novas alternativas para a política na defesa do bem viver, do decrescimento do consumismo, no ecofeminismo, na defesa do comum, no ecossocialismo e na economia solidária, que precisam serem articuladas. Para uma dominação sistêmica é necessário uma reação sistêmica”, diz o ativista boliviano Pablo Solón.
Uma outra economia é possível
As idéias do ativista Pablo Sólon estão na obra Alternativas Sistêmicas (Editora Elefante, 2019). Não é mais possível aceitar a fé desabalada no capitalismo. Suas ideias aproximam-se do pensamento do sociólogo Manuel Castells, presentes na obra Uma outra economia é possível (Zahar, 2019) na qual afirma que mecanismos de mercado e instituições simplesmente param de funcionar: ”instituições financeiras vão a falência, investimentos desaparecem, empregos são destruídos e serviços sociais são cortados justamente no momento em que são mais necessários”. Esta não é a descrição exata do que vivemos neste momento?
As práticas pró-mercado de nossos governantes dizem “as pessoas que se danem” e alteram condições de modos de vida prometidos. A revolta contra a reforma da previdência é contra os efeitos dos fluxos de dominação financeira global sobre o Estado desde a crise de 2008, que mostrou que a capacidade autoregulatória do mercado é um mito e que exige que o Estado retire da população recursos para o mercado sobreviver.
No Brasil o governo salva o capital a todo instante, empresários do setor agrícola, evangélicos, usando o dinheiro do contribuinte, da previdência e do orçamento público numa escala sem precedentes. A esquerda aponta consequências sociais terríveis, políticas de austeridade são impostas às classes baixas enquanto as classes altas aumentam sua riqueza. Convenhamos! O crescimento econômico ultrapassa limites éticos, ambientais e sociais, fazendo com que a população pague pelos erros das grandes corporações como em Brumadinho.
A redução da jornada de trabalho é utópica hoje como o foram no passado as férias remuneradas. É preciso descobrir novas formas para a atividade econômica, para o sistema monetário e questionar a inevitabilidade do regime econômico vigente (Zizek). Limitar o crescimento urbano, o lucro, investir em cooperativas de produção e consumo, redes de escambo, fazendas autogeridas, hortas urbanas, redes de solidariedade, bancos éticos (sim, isso existe!) e comunidades autossustentáveis é fugir do mercado.
Para vencer a economia de direita, é preciso projetos econômicos de esquerda com a participação dos movimentos sociais. Hora de aproveitar o atual enfrentamento como momento de propor culturas econômicas diferentes, autônomas, sustentáveis social e ecologicamente.
O entretenimento como política
Porque estas culturas econômicas não ocupam a agenda política? Uma das razões está na forma como nossos governantes escolhem suas prioridades, constroem a agenda pública. É importante para o próximo ano, quando se iniciam os preparativos para eleições municipais, observarmos o comportamento dos candidatos. É comum candidatos apresentarem um levantamento de suas realizações e nessa hora, esquecem as promessas que fizeram, que os levaram ao poder e que não cumpriram e o que fizeram que vai na contramão do que prometeram. Quando iniciam sua campanha, tudo é belo.
Tornou-se comum apelar para obras de lazer como grandes realizações políticas. A agenda pública sofre uma transformação: saem as propostas de reordenamento da economia e entram as propostas que chamamos substitutivas. O prefeito de Montes Claros, Humberto Souto, comemorou recentemente a criação de novos parques; o prefeito de Itaituba, Valmir Climaco, a construção da Orla de Barreiras e o prefeito de Manaus, Artur Virgílio Neto, a construção de uma pista de skate na cidade. Não é que não sejam obras importantes, mas exatamente o que sua defesa significa? Ora, política é a história da paixão, o bom neoliberal sabe que dominar as paixões é sinônimo de sucesso político. A política do pão e circo foi atualizada: agora, “circo” equivale a “entretenimento”, palavra que já entrou no jargão neoliberal e como diz Byung Chul-Han “o entretenimento se eleva hoje a um novo paradigma, a realidade se apresenta ela mesma como um efeito especial do entretenimento”.
Você sabe que alguém é candidato quando sai de seu currículo a defesa de obras básicas de infra-estrutura e economia e entram a defesa dos novos espaços de lazer, apelo hedonista cujo efeito é o esquecimento da cidade degradada que o cidadão tem diante de si: é possível ver em cada cidade citada as ruas esburacadas, as redes de abastecimento de água e esgoto deficitárias, o serviço público desmantelado pela terceirização, fim da construção da cidade propriamente dita…mas qual é o problema? Vamos nos divertir! “O sorriso do tolo se assemelha fantasmagoricamente o rosto distorcido de dor do homo doloris (homem da dor”), diz Han. É verdade. Governantes têm habilidade de penhorar o futuro da cidade nos dando em troca a bem-aventurança dos espaços de entretenimento. Governar é cumprir a palavra empenhada e ter prioridades. O resto é política do pão e circo. Às vezes, mais circo.
A era da desabilidade
Esses exemplos atestam a incapacidade contemporânea dos políticos de exercerem democraticamente seus governos, de estabelecerem agendas comprometidas com o desenvolvimento econômico sem exploração. No cerne é sempre a mesma questão, a da impossibilidade de viver relações sociais com o Outro, com o diferente de nós, agimos sempre em nome de iguais, dos interesses da burguesia e isso tem um nome: desabilidade. O termo foi definido pelo escritor italiano Roberto Parmeggiani para definir o empobrecimento subjetivo, a impossibilidade de se comunicar presente nos discursos de ódio, a incapacidade de reflexão profunda sobre as coisas. A desabilidade se manifesta na assunção dos discursos de direita que vão desde a defesa do retrocesso dos direitos do trabalho, à defesa do trabalho de crianças até defesa da impossibilidade de se conviver com casinhas de cachorro no meio da rua.
Desabilidade ou pensamento débil (Vattimo) de nossos dias se manifesta no discurso político-econômico, efeito da razão neoliberal que transforma tudo em mercadoria, inclusive a nós mesmos, objetos que podem ser negociados à exaustão. Da reforma da previdência à política como entretenimento, o pensamento enfraquece por que o capital uniformiza o mundo, reduz o complexo ao simples na tentativa de defender a liberdade apenas para alcançar o lucro e aumentar o capital, racionalidade que se opõe à mentalidade subjetiva, à paixão, à empatia e a compaixão. A desabilidade emerge quando o poder público abandona à iniciativa privada de times de futebol políticas de assistência, quando parcela o salário de servidores ao infinito, quando propõe uma reforma da previdência sem qualquer compaixão pelos mais pobres. O mundo da direita é o universo da desabilidade em suas explicações hiper simplistas pois é afastado da leitura, das artes, da crítica, pensamento estereotipado muitas vezes baseados em preconceitos aceitos como premissas.
Nele, a esquerda é o novo inimigo porque ela se afasta do pensamento raso – não, a terra não é plana; não, crianças não devem trabalhar; não, o conservadorismo não é natural (Scruton). A direita empobrece a linguagem porque só tem limites em suas próprias convicções. Fim do diálogo: o neoliberal ama seu igual, é avesso a qualquer resistência, a qualquer argumento, o que explica seu ódio ao diferente. A ativista russa Nadya Tolokonnikova concluiu na prisão que estava fisicamente sozinha, mas era parte de uma poderosa comunidade de pessoas que pensavam como ela. Era assim que a esquerda, hoje acuada, deveria se sentir.
Jorge Barcellos é historiador, mestre e doutor em Educação. Autor de O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e “A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homoplásticos, 2018), é colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Zero Hora, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorge barcellos.pro.br.