O que ninguém nos conta sobre transição energética
Enquanto o debate das energias renováveis ganha a atenção do mundo e faz ainda mais sentido para determinadas regiões do Brasil, favelas e periferias do Sudeste travam outros enfrentamentos na luta ao acesso à energia elétrica
No final de março de 2023, estive no Amapá a trabalho pela primeira vez. O bate-volta em Macapá, a capital conhecida por ser a única do Brasil localizada exatamente na linha do Equador, durou apenas dois dias. Porém, voltei com a sensação de que precisaria de muitos outros dias, talvez semanas, para desvendar as possibilidades daquele estado. Retornei com a reflexão de que existem várias Amazônias dentro da Amazônia – tanto em biodiversidade e biomas, como em identidades, etnias, raças e percepções conflitantes dos amazônidas em relação à própria região.
Quando perguntei à Hannah Balieiro, bióloga amazônida e diretora executiva do Instituto Mapinguari, sobre os principais entraves socioambientais de Macapá, ela precisou apenas de milissegundos para prontamente me responder: luz e água. Em outras palavras, justiça energética e hídrica são duas emergências em uma capital esquecida, politicamente negligenciada e cercada pela abundância da região amazônica. A escassez de água é uma realidade presente, e a instabilidade do sistema elétrico já resultou em mortes de moradores que tentaram restabelecer a energia.
“A crise energética no Amapá escancara a face do colonialismo do Brasil em relação a Amazônia, exportamos energia e ficamos no escuro. O apagão de 2020 foi um episódio de uma longa história de negligência. Temos quatro hidrelétricas impactando comunidades, pessoas que arriscam suas vidas para fazer a manutenção da rede, causando mortes entre comunitários e mais de 25 mil pessoas estão sem acesso à energia no Amapá”, explica.
O que ninguém nos conta é que, enquanto há relatos de amapaenses que morreram com um choque fatal na tentativa de improvisar um ponto de luz, representantes de diferentes países estão em Berlin, capital da na Alemanha, discutindo a transição energética. Oficialmente conhecida como 2023 Berlin Energy Transition Dialogues (BETD), a conferência reúne lideranças da sociedade civil, governos, empresas e uma minoria de ativistas jovens para discutir caminhos de como reduzir nossa dependência global de combustíveis fósseis por meio das fontes renováveis e sustentáveis. Isso acontece por meio da implementação de políticas e tecnologias que promovem mais eficiência energética e, consequentemente, redução do consumo de energia.
Escrevo diretamente da conferência nesse momento. E a cada painel que presencio ou entrevista que acompanho, me pergunto para quem é a transição energética? E quais são os limites da justiça como pedra angular para endereçar os múltiplos desafios espalhados pelo mundo, em especial, no Brasil?
A experiência de transição energética na Alemanha, também conhecida como Energiewende, é um projeto nacional que visa a transição da economia do país de fontes de energia fósseis para renováveis. A Energiewende iniciou em 2011 e acredita que pode alcançar a neutralidade de carbono até 2050. Fato é que o país é uma das principais referências mundiais no tema e muitos países estão seguindo o exemplo alemão para promover uma economia mais sustentável e com baixas emissões.
Antes, porém, de elencar quais são os desdobramentos da transição energética – e justa – no Brasil, vale resgatar a complexidade do setor elétrico do nosso país. Responsável por ser um dos pilares-chave da economia brasileira, ele tem o poder de jogar contra ou a favor da redução de gases de efeito estufa. A equação é teoricamente descomplicada: se for a favor, a maratona corre no sentido de reduzir o uso de óleo combustível e óleo diesel, carvão e gás natural. Se for contra, vamos para a direção das energias ditas como “limpas”, como eólicas e solares, além das hidrelétricas.
Contudo, nem todo processo é tão simples que a complexidade não custe, ao menos, uma vida. A justiça energética é um conceito que se refere à garantia de acesso à energia limpa e acessível para todas as pessoas, independentemente da sua localização geográfica, renda ou etnia. Trata-se de um movimento social que busca equilibrar a distribuição dos benefícios e custos do sistema energético, garantindo que as pessoas mais vulnerabilizadas não tenham seus direitos violados pelos impactos negativos da produção e uso de energia.
Nesse sentido, a justiça energética defende que a energia é um direito social da Constituição e reforça que todas as pessoas devem ter acesso a fontes limpas e renováveis, além de serem protegidas de impactos negativos como a poluição, os riscos à saúde e a desvalorização imobiliária. Além disso, o movimento também busca ampliar intencionalmente a participação das comunidades locais no processo decisório sobre a produção e distribuição de energia, tornando-as parceiras no desenvolvimento de soluções mais sustentáveis e justas. E quando isso não acontece?
“Caatinga é colocada como expoente de um país de energia renovável. Qual foi a tecnologia utilizada? Barragem. As barragens construídas para a produção de energia renovável seguiram com o processo de genocídio das terras indígenas e quilombolas. Matou gente, botou memórias ancestrais debaixo da terra e dentro das águas. Pra ter energia renovável no Brasil, se renovou o projeto de extinção das terras dos povos Tumbaioá, do Siriri, dos Pucará, dos Tuxá; se renovou a energia de genocídio dos povos indígenas”, explica Diosmar Filho, geógrafo e pesquisador sênior da Confluência Yaleta, na entrevista para o estudo “Quem Precisa de Justiça Climática no Brasil?“.
As terras mencionadas pertencem a diferentes povos indígenas do Brasil. Enquanto Tumbaioá é uma etnia indígena que vive no estado do Amazonas, na região do rio Tumbao, afluente do rio Japurá, Siriri é uma comunidade indígena que vive no estado de Mato Grosso do Sul, na região do Pantanal. Já os povos do Pucará vivem no estado do Maranhão, próximo ao rio Pindaré, enquanto a etnia Tuxá pode ser localizada no estado da Bahia, na região do rio São Francisco.
“A eólica só foi possível violando os direitos territoriais dessas comunidades. Então, desse ponto de vista, não é fonte renovável. Até porque essas são tecnologias que precisam de minérios. E onde encontramos esses minérios? Nos lugares chamados de pobres do mundo. Lá tem negros, indígenas, africanos, bolivianos…”, denuncia o pesquisador.
Enquanto o debate das energias renováveis ganha a atenção do mundo e faz ainda mais sentido para determinadas regiões do Brasil, favelas e periferias do Sudeste travam outros enfrentamentos na luta ao acesso à energia elétrica. Uma pesquisa recente realizada por 30 jovens e 15 lideranças comunitárias fez um retrato dos desafios de acesso, qualidade e eficiência no Rio de Janeiro. Intitulado Justiça Hídrica e Energética nas Favelas, o estudo levantou dados que evidenciaram as múltiplas desigualdades quando o assunto é água e luz – recursos interdependentes.
A pesquisa mostrou que, entre as negações de direitos básicos, a ausência de luz e os riscos de incêndio devido ao não atendimento da concessionária em determinadas localizações estão entre as principais queixas dos moradores. Em números, 42% das famílias entrevistadas já ficaram, por exemplo, sem água para fazer a higiene mínima durante a pandemia, ou enfrentaram dificuldades para comprar um poste e todas as fiações elétricas para ter acesso a uma fonte de energia.
O retrato do Brasil no mosaico da transição energética ainda apresenta contradições que reforçam desigualdades e opressões. Embora ela tenha, indubitavelmente, o potencial de contribuir para a economia brasileira, ainda há famílias sem luz, hidrelétricas impactando povos e comunidades tradicionais e interferindo em seus modos e vidas. Um dos lemas mais reproduzidos durante a BETD foi o clássico das Nações Unidas: “No Can Be Left Behind” (ninguém pode ser deixado para trás). O clichê que, hoje, não faz sentido no nosso país, tampouco no debate de transição energética. E enquanto houver territorialidade no acesso aos direitos constitucionais, há apartheid. E isso ninguém nos conta.
Andréia Coutinho Louback é jornalista pela PUC-Rio, mestre em Relações Étnico-raciais pelo CEFET/RJ e Fulbright Alumni na University of California, Davis. É especialista em justiça climática e reconhecida como uma das vozes expoentes no debate de raça, gênero e classe na agenda climática no Brasil. É conselheira da Casa Fluminense, do Climate HUB (Columbia Global Centers | Rio de Janeiro), Prefeitura do Rio de Janeiro e ActionAid. Como parte do Humphrey Fellowship, fez uma residência profissional na United Nations Population Fund (UNFPA), localizada em Nova York, como especialista em justiça climática. Instagram: @andreiacoutinho.l