O que podemos aprender com os quilombos
É preciso aprender com os quilombos. Precisamos sustentar o mal-estar necessário para suportar o fim desse mundo que já morreu, uma vez que fundado ele mesmo na morte, para dar lugar a mundos que já vivem, há centenas de anos.
Quilombos não são comunidades de escravos fugidos. Insistir no termo “escravo” é permanecer na narrativa de negação de nossa humanidade, de nossa liberdade. Fanon ensina que o processo colonial desumaniza não apenas colonizados, mas também colonizadores. Ensina também que a linguagem desempenha papel fundamental na conformação dessas subjetividades. Logo, para descolonizar, é fundamental abandonar certas linguagens, definições e narrativas. Se quisermos descolonizar não apenas o Estado e os currículos, mas também a nós mesmas/os, temos que estar dispostas/os, conforme aponta Rolnik, a descolonizar nossos imaginários e inconsciente. Assim, é necessário dizer: Palmares não é apenas nosso passado, é nosso presente e futuro. Quilombos são sociedades alternativas ao colonialismo e à colonialidade, fundadas em valores civilizatórios ancestrais africanos, expressos em práticas de resistência cultural negra. Aceitar narrativas contrárias a essas compreensões, que reduzem esses sujeitos e territórios a coisas ou objetos comerciais, significa um apego a um passado que já está morto, mas que insiste em reviver, ainda que notadamente em crise.
É preciso aprender com os quilombos. Precisamos sustentar o mal-estar necessário para suportar o fim desse mundo que já morreu, uma vez que fundado ele mesmo na morte, para dar lugar a mundos que já vivem, há centenas de anos.
Destaco aqui esses territórios porque ainda perdura no imaginário de muitos uma compreensão equivocada, como se não tivéssemos nada para aprender com eles. Porém, seguir negando esses territórios como espaços de aprendizado, e seus membros como sujeitos de conhecimento, é insistir na morte e não na vida. A base fundamental onde estão envolvidas as relações quilombistas é a vida e todos os elementos que a compõe. Por isso, muitos vêm entendendo os quilombos e organizações quilombistas como territórios onde se vivencia e se aprende sobre a filosofia ubuntu.
Com os quilombos, podemos aprender o que é justiça para esses grupos. Trata-se de uma justiça reconciliatória com nosso passado, presente e futuro, baseada na responsabilização de todas as pessoas em reconhecer seus lugares de fala, de escuta e de ação. A demarcação de territórios, a adoção de políticas afirmativas, o respeito à liberdade religiosa especialmente das religiões de matriz africana e o combate ao genocídio são apenas o começo – e o mínimo de reparação que se pode fazer, diante desse crime irreparável que molda a triste história de formação do Brasil.
Aprender o que é diversidade e como respeitá-la. Os quilombos são historicamente formados por um conjunto de pessoas de diferentes origens étnicas, resguardando-se, contudo, em seus princípios organizativos, valores civilizatórios de base africana – tais como a comunidade, a ancestralidade e a energia vital. Além de sua formação interna, os quilombos possuem diferentes formas de organização e essa diversidade constitui uma riqueza de fundamental importância. Segundo Bispo dos Santos, esse é um dos motivos pelos quais os colonialistas nunca conseguiram destruir totalmente esses territórios. Essa diversidade, portanto, expressa um ensinamento ancestral.
Aprender que nossa relação com a natureza deve ser, como sempre foi, uma relação de pertencimento. Nas filosofias ancestrais africanas, desde Kemet, não existe separação entre humano e natureza. Somos natureza e só existimos plenamente como seres a ela integrados, de forma harmônica e responsável.
Aprender e vivenciar o ubuntu, que consiste, como indica Malomalo, na manutenção do equilíbrio e harmonia entre a comunidade do sagrado – ancestral, a comunidade do universo – natureza e a comunidade bantu (de seres humanos). Os quilombos e organizações quilombistas pautam suas ações no respeito à vida em toda a sua pluralidade e complexidade.
Aprender a diferenciar o bem viver do viver bem, tal como nos ensina Bispo dos Santos. De acordo com o mestre quilombola, a noção de bem viver está vinculada a um saber orgânico, circular, que visa ao desenvolvimento do ser. Já a ideia de viver bem, está relacionada a um saber sintético, linear, baseado no ter. Nos quilombos, mais do que ter, é fundamental ser. Ser com o todo, ser coletivamente, ser com a natureza, ser filhe da terra, filhe das águas.
Dialogando com Daniel de Souza, membro do quilombo Jauari, localizado na região do Baixo Amazonas, perguntei a ele o que significa a natureza e o bem viver em sua comunidade, e o que os ensinamentos das/os suas/seus mais velhas/os poderiam ensinar às pessoas que anseiam por um mundo em que a liberdade e a harmonia cósmica sejam uma realidade. Daniel nos ensina.
A natureza para nós… nos alimentou, nos deu vida e nós fizemos dela a nossa casa. Então a natureza, principalmente quando se trata da natureza de modo geral, e especificamente falando da floresta, ela nos alimentou, nos alimenta até hoje, ela é como se fosse a nossa mãe. Mãe Natureza. Há duzentos anos a gente vive nela, dependendo totalmente dela. Ela pra nós significa manter a nossa vida firme, e nessa questão da saúde também, porque é dela que nós tiramos tudo, é da natureza que a gente tira os produtos para a gente vender, principalmente antigamente. Para nós quilombolas ela é tudo: é vida, é saúde, é solidariedade, é amor. É solidariedade porque ela traz, [com] os produtos que a gente tem no quilombo, sempre essa solidariedade uns com os outros. Então a natureza para nós é tudo, significa uma coisa super importante, em especial manter a nossa vida até hoje. Então a gente vive mais de duzentos anos nela e ela nos mantendo até hoje. É o nosso mercado, o nosso açougue, a nossa farmácia, ela é tudo para nós, significa muita coisa.
Os mais velhos nos ensinaram, trouxeram esses ensinamentos e poucas pessoas ligaram para eles. Os ensinamentos dos mais velhos fizeram com que a gente, hoje, seja pessoas admiradas pelos grandes estudiosos que acreditam na natureza sendo mantida. Então eles nos ensinaram isso: cuidar dela para que a gente possa manter aquelas histórias, tudo aquilo que eles falavam para a gente e a gente acreditava. E hoje nós podemos ensinar como eles nos ensinaram; a gente ensina para as pessoas como viver em coletividade. Como viver sem ganância de poder. O que a gente quer? A gente quer simplesmente viver numa boa, tendo saúde, tendo alimento todos os dias, que todos nós tenhamos. Não só nós quilombolas, mas todo mundo, principalmente os mais vulneráveis e nós estamos dentro desse grupo. Nós fazemos parte desse grupo da vulnerabilidade porque você vê a situação que a gente ficou agora ultimamente, com esse problema dessa guerra invisível que a gente está vivendo, mas a gente está se mantendo, e a nossa farmácia nos ajudou a sobreviver através disso. Acho que pra cá graças a Deus está melhorando e a gente se manteve aqui com nossa farmácia ensinada pelos mais velhos. Isso é um ensinamento exemplar. Exemplar é esse ensinamento que os mais velhos deixaram pra gente e que a maioria de nós ainda segue, e que a gente sente falta deles, mas a gente tem eles aqui na nossa memória social, que é o nosso museu. Então isso pra nós é uma coisa: liberdade. Quando falo disso, penso na questão do título que a gente lutou e que recebemos na divisa do Pará com o Maranhão. Ajudei a coordenar essa campanha, fizemos publicação em Belém, em São Paulo e o título da campanha dizia: “terra titulada, liberdade conquistada”. Isso tem muito a ver com essa pergunta, porque se você tem terra titulada, você tem perseguição, mas você tem liberdade, porque você tem o comando dela, (…) você tem essa possibilidade porque aquilo é nosso. É uma coisa que o Brasil não gosta, dessa palavra “nós”. E nós do quilombo vivemos muito essa questão de nós. No quilombo quando estamos todos com saúde, ficamos muito felizes. Quando uma pessoa está doente, todos ficamos afetados também.
A minha comunidade, o Jauari, é relativamente pequena, somos umas duzentas pessoas, mas estamos nesse território há mais de duzentos anos. Cada quilombo tem a sua especificidade. Mas dentro dessa república democrática que dizem que é o Brasil, a nossa convivência é outra. Nossa forma é associativa. Aprendi ouvindo meus avós. Vivemos um modo de vida africano.
Ao mencionar a ocorrência de uma guerra invisível, Daniel faz referência à situação dos quilombos na atual pandemia. Segundo o “Observatório da Covid-19 nos Quilombos”, baseado no monitoramento autônomo desenvolvido pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas (CONAQ), a taxa de letalidade pelo coronavírus nos quilombos é o dobro da média nacional. Em razão disso, a CONAQ entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal, junto com outras instituições, a fim de que o governo brasileiro adote medidas específicas para a proteção da vida nessas comunidades.
Lélia Gonzalez afirma que a negação do racismo é um dos elementos fundamentais da neurose cultural brasileira. Caso a gente deseje curar essa neurose, precisamos nos deslocar desse lugar de negação, romper com o genocídio e com os privilégios da branquitude, e sentar para aprender com e nesses territórios, reconhecendo seus integrantes como sujeitos de conhecimento e mestres de saberes profundos, inclusive filosóficos, sobre o bem viver.
Aline Cristina Oliveira do Carmo é docente-pesquisadora de Filosofia do Colégio Pedro II, pós-doutoranda em Educação (Unirio), graduada em Direito, membro da Rede Carioca de Etnoeducadoras Negras (Recen) e do grupo de estudos Direito e Africanidades (Uneb).
Daniel de Souza tem 62 anos, é nativo do Quilombo Jauari, localizado no Rio Erepecurú, município de Oriximiná, oeste do Pará, filho de Maria de Souza e Francisco Melo, tem em sua trajetória a participação como membro do Conselho Diretor da Malungu – Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará.