O que significa tratar os animais com humanidade?
À margem dos combates contra a covardia jornalística, as capitulações da social-democracia e a militarização, o satírico vienense Karl Kraus (1874-1936) desenvolveu uma reflexão sobre o tratamento dos animais na Primeira Guerra Mundial. Um século depois, seu eco ressoa na voz daqueles que denunciam os maus-tratos animais, elevados, em tempos de paz, a uma escala industrial
“No dia 1º de agosto de 1914”, escreve o satírico vienense Karl Kraus em sua revista Die Fackel [A Tocha], “ouvi um grito: ‘Sempre em frente, rumo à glória, marchamos!’. Eu me envergonhava da minha rabugice, pois já naquele momento sabia de maneira muito precisa que chegaria o tempo do: ‘Precisamos sair dessa!’. Mas eu era simultaneamente tão otimista que fixei uma data para a expressão desse desejo, que não poderia deixar de ser sentido já em 1º de agosto de 1915, ou em 1º de agosto de 1916, e não em 1º de agosto de 1917. No entanto, em tais casos não é possível trabalhar com exatidão matemática, apenas com exatidão apocalíptica.”1
Kraus expressa aqui sua convicção de que apenas um esforço imaginativo excepcional, como aquele exemplificado pelo pensamento apocalíptico, seria capaz de compensar a total ausência de imaginação que tornou possível o desastre e de permitir compreender, já que não pudemos impedir, o acontecido e suas decorrências. É a linguagem do apocalipse e às vezes até o próprio texto do Apocalipse que Kraus adota naturalmente para falar não apenas da perda de vidas humanas e do sofrimento inimaginável causado pela guerra, mas também da destruição que a combinação entre o progresso da técnica e o poder desmedido do dinheiro, a busca da rentabilidade e do lucro a qualquer custo começou a infligir ao meio ambiente e à natureza. As duas coisas, a onipotência assassina da técnica e a tirania do dinheiro-rei, estavam, aliás, a seu ver, mais do que nunca ligadas uma à outra, visto que, como ele diz, em um primeiro momento os mercados foram transformados em campos de batalha, e depois os campos de batalha foram transformados em mercados a serem conquistados e explorados por industriais e vendedores de armas. Um vínculo desse tipo pode parecer pouco evidente à primeira vista, mas Kraus não tem nenhuma dúvida a respeito da “existência de um nexo causal entre sangue e lucro”, cuja consequência foi o fato de milhares de seres humanos terem sido condenados a morrer essencialmente em nome do benefício e da prosperidade de uns poucos.
Os atentados à dignidade, aos direitos e à vida humana, cujo valor e preço a guerra conseguiu rebaixar de maneira formidável, não podem, em nenhum caso, ser realmente separados do desprezo com que a humanidade atual se habituou a tratar o meio ambiente em geral e os animais em particular. Dois aspectos diferentes do mesmo processo de desumanização, portanto de autodestruição, no qual a humanidade embarcou.
“Ninguém tem piedade de nós”
Assim, não é por acaso que o último monólogo do Rabugento (Os últimos dias da humanidade, ato V, cena 54) traz uma questão que poderíamos ser tentados a considerar secundária, mas que, para Kraus, pelo contrário, era de crucial importância: a da destruição causada às florestas pelas quantidades cada vez mais consideráveis de papel necessário para a fabricação de jornais. Essa conjunção, de significado sinistro, entre o aumento desproporcional da imprensa, que nada parecia capaz de conter, e a redução da floresta sempre teve para ele um caráter simbólico, altamente representativo do que estava prestes a acontecer, com seu consentimento e até por sua própria culpa, à humanidade.
O episódio evocado no monólogo do Rabugento pertence mais uma vez à categoria do inconcebível, cuja enormidade não impediu, no entanto, de se realizar: “Desejando estabelecer o tempo exato necessário para que uma árvore da floresta se transformasse em jornal, um produtor de papel do Harz teve a ideia de realizar um experimento muito interessante. Às 7h35, mandou cortar três árvores no bosque vizinho e, após serem descascadas, mandou que fossem transportadas para a fábrica de celulose” (Os últimos dias da humanidade). A resposta à sua pergunta foi a seguinte: a sequência de operações necessárias para passar da árvore ao jornal impresso podia realizar-se tão rapidamente que às 11 horas da manhã o jornal já estava à venda na rua. “Foram necessárias, portanto”, conclui o anúncio lido pelo Rabugento, “apenas 3 horas e 25 minutos para que o público pudesse ler as últimas notícias em um material proveniente das árvores em cujos galhos, na mesma manhã, os pássaros ainda cantavam.”
Quando abordamos a questão da estreita relação que, aos olhos do satírico, existe entre a desumanização do ser humano e a redução da natureza ao estatuto de simples instrumento que o homem tem o direito de usar como bem entende, é quase impossível não mencionar também as notáveis afinidades que existiram, sobre esse ponto, entre sua atitude e a de Rosa Luxemburgo. Kraus havia, como ele explica, tropeçado enquanto lia o Arbeiter-Zeitung, em uma das cartas que ela escreveu em 1917 de Breslau, onde estava presa, a Sonia Liebknecht, publicadas três anos depois. Claro que o que ele apreciou e admirou em particular nessa carta não foi apenas a excepcional qualidade literária que ali se revela e cuja importância para ele não tinha nada de surpreendente, mas também o profundo amor pela natureza ali expresso, bem como a compaixão diante do sofrimento que o ser humano é capaz de infligir em sã consciência a alguns dos outros habitantes que nela vivem, em particular aos animais que são obrigados a servi-lo, às vezes reduzidos pura e simplesmente à escravidão.
Para Rosa Luxemburgo, como para Kraus, a ligação entre o que ela descreve em sua carta e o que a guerra engendrou – ou talvez simplesmente revelou – é mais ou menos óbvia. Quando a indignada observadora pergunta ao soldado, que brutaliza ferozmente um animal exausto obrigado a arrastar uma carga claramente pesada demais para suas forças, se ele não tem nenhuma piedade dos animais, a resposta fala por si: “Ninguém tem piedade de nós, humanos”, respondeu ele com um sorriso mau, e começou a bater mais forte.2 O que se expressa aqui é a propensão que facilmente as vítimas podem ter a exercer uma forma de vingança contra outras vítimas ainda mais frágeis do que elas e mais incapazes de se defender.
Sobre os animais tratados dessa forma (búfalos trazidos da Romênia), Rosa Luxemburgo diz em sua carta: “Eles são espancados de forma terrível antes que o ditado ‘Vae victis’ também lhes possa ser aplicado. […] Só em Breslau há uma centena desses animais; além disso, acostumados com os ricos prados romenos, eles passam a receber uma parca e miserável ração. São explorados descaradamente, puxam cargas sem limite e muitas vezes sucumbem a esse trabalho”. Estamos falando aqui dos vencidos da guerra, muito facilmente esquecidos e que certamente receberam, acreditamos, muito menos piedade do seu destino do que outros. O que Rosa Luxemburgo conseguiu enxergar por trás dos acontecimentos e comportamentos que descreve, no pátio de uma prisão, foi simplesmente a própria face da guerra: “Nesse ínterim, os presos azafamavam-se ao redor da charrete, descarregando os fardos pesados a fim de levá-los para dentro; quanto ao soldado, ele andava de um lado para o outro no pátio, com as duas mãos nos bolsos, sorrindo e assobiando uma música da moda. Nessa ocasião, revi toda a magnífica guerra desfilar diante de mim”.
O que a carta evoca de maneira intensa é a espécie de solidariedade espontânea que se estabelece entre a prisioneira, que é também, em certo sentido, uma vítima da guerra – já que ela fora encarcerada em parte graças à sua oposição declarada, radical e militante a esta –, e a vítima representada pelo animal martirizado. Há algo de verdadeiramente comovente na descrição que lhe é dada, de forma que ele se torna, por assim dizer, humano, transformando-se em uma espécie de irmão no sofrimento e na desgraça: “Aquele [em referência aos animais] que sangrava tinha o olhar fixo, com uma tal expressão no rosto – e olhos negros e doces como os de uma criança que acaba de chorar. Era verdadeiramente a expressão de uma criança que foi severamente castigada e não sabe por que, não sabe como escapar desse tormento e dessa violência brutal. […] Eu estava ali parada e o animal olhou para mim, e senti lágrimas escorrerem pelo meu rosto – eram suas lágrimas, e eu não poderia estar mais dolorosamente compadecida por esse irmão querido do que por minha incapacidade de aliviar seu mudo tormento”.
Edward Timms, em sua biografia de Kraus, destaca com pertinência que “os paralelos entre Kraus e Luxemburgo são notáveis. Ambos os autores invocam uma visão de harmonia original para contestar a ideia de uma natureza com os dentes e as garras sujos de sangue, frequentemente explorada para justificar o conflito militar e a dominação racial. Kraus reforçou ainda mais sua posição quando recebeu uma carta de uma megera da aristocracia que zombava de Luxemburgo como uma dessas ‘mulheres histéricas’ fadadas a ter um triste fim caso persistam em semear confusão”.3 A “megera” em questão era uma aristocrata húngara que se apresentou como ex-assinante do Die Fackel e declarava ter tropeçado no número em que Kraus reproduziu e comentou a carta de Rosa Luxemburgo.
No número 462-471 dessa revista, Kraus questiona-se sobre como os cães vivenciaram “sua” guerra e conseguiram suportar a quase total falta de comida e cuidados imposta pela escassez generalizada e pela indiferença por parte da espécie supostamente “superior” que os condenou à servidão e os privou de todos os tipos de direitos, por assim dizer: “Atualmente, os cães são atacados de diversas forma, especialmente nos jornais de domingo, por ‘roubar’ comida dos homens. Essas críticas são infundadas. Abstraindo completamente o fato de que eu daria com muito mais boa vontade um pouco de comida a um cachorro do que o faria a qualquer jornalista, uma coisa que sei é que a maioria dos homens sempre tem mais comida do que a maioria dos cães, os quais nem por isso guerreiam entre si nem são responsáveis pelo estado de coisas, cuja culpa incumbe aos homens. Pois, embora possa haver casos isolados em que um cachorro roube comida de um homem, há muitos casos em que um homem se vinga devorando o cachorro. O inverso jamais ocorreu. […] Talvez pelo fato de que a carne de uma espécie cujos membros lutam entre si com gases venenosos seja repulsiva para a espécie melhor”.
Kraus era da opinião de que “o testemunho único em seu gênero de humanidade e de poesia” que constitui a carta de Rosa Luxemburgo deveria aparecer em todos os livros escolares, entre Goethe e Claudius, e os jovens leitores deveriam ser informados de que “o corpo que envolveu uma alma de tamanha magnitude foi abatido a coronhadas de fuzil”.4 Seria possível dizer, parece-me, que certas passagens da resposta de Kraus à carta da “Sra. Von X-Y”, como a que segue, também mereceriam ser incluídas nos livros escolares:
“A humanidade que considera o animal um ser amado tem mais valor do que a bestialidade que zomba disso e brinca com a ideia de que um búfalo não fica ‘particularmente’ espantado por ter de puxar uma carroça em Breslau e levar pancadas com o cabo de um chicote. É esse tipo de espírito repugnante que faz esses senhores da Criação e suas damas dizerem, ‘desde a mais tenra idade’, que o animal não sente nada, tão desprovido de sensações quanto seu proprietário, pela simples razão de que ele não foi dotado com a mesma porção de arrogância e não é capaz de expressar seus sofrimentos na mesma linguagem de que este último dispõe”.5
Os protestos de Rosa Luxemburgo e Kraus se opõem diretamente a uma visão do mundo animal que, no que lhe concerne, pouco sabe além de incitar a espécie humana a se inspirar em seu exemplo para reaprender a dureza, a falta de misericórdia e a crueldade que são supostamente as leis básicas da vida. Trata-se de aceitar mais facilmente a ideia de que a natureza impõe a todos os viventes a luta permanente, a subjugação dos inferiores e a eliminação dos inaptos. Como diria Hitler, o mundo animal não tem, como o dos homens, a possibilidade e os meios de tentar impedir a ação das leis da natureza, que de toda forma acabam sempre vencendo, mais cedo ou mais tarde: “Na natureza, o que não tem força vital perece por si mesmo; somente o homem cultiva aquilo que porta fraqueza vital”.6
É, pois, imperativo e urgente, para nossa espécie, concordar finalmente em substituir a humanidade pusilânime e sentimental que se exerce essencialmente na proteção e na promoção artificiais dos fracos por outra forma de humanidade, mais viril e mais conforme à maneira como as coisas se passam no mundo dos seres vivos em geral, que é chamado em Mein Kampf de “a humanidade da natureza”: “O homem pode desafiar por algum tempo as leis eternas da vontade de conservação contínua; porém a vingança chega, mais cedo ou mais tarde. Uma espécie mais forte expulsará as fracas, pois o impulso de vida em sua forma última sempre quebrará os laços ridículos de uma dita humanidade das formas singulares, para substituí-la pela humanidade da natureza, que aniquila a fraqueza para dar lugar à força”.7
Assim se expressa uma transposição para o mundo animal de algumas das características mais detestáveis, porém frequentemente também das mais específicas, do mundo humano em si. Tentar pelo menos não ser mais bestial ou mais celerado do que os animais poderia muito bem, nessas condições, constituir um progresso considerável para o homem. Há talvez algo mais a aprender com eles além de insensibilidade e crueldade. Uma humanidade capaz de se comportar de maneira humana para com os animais e de tratá-los como iguais presta mais serviços a si mesma do que aquela que os trata quase como um material do qual ela se serve.
A questão aqui formulada era, aos olhos de Kraus, suficientemente importante para que ele a retomasse muitas vezes com insistência. Em Hunde, Menschen, Journalisten [Cães, humanos, jornalistas], ele reproduz muitos trechos de diversos autores que se expressaram de maneira positiva e amigável ou, ao contrário, abertamente hostil ou negativa sobre a questão dos direitos dos animais e do dever de humanidade que temos em relação a eles. Como era de esperar, coube a Schopenhauer, a quem deu um lugar bastante privilegiado, a honra de ter dado o exemplo que deveríamos tentar seguir nesse assunto. E é a Spinoza, cuja posição Schopenhauer já havia contestado radicalmente, que cabe o papel de vilão da história.
A concepção defendida pelo autor da Ética é, de fato, que o estatuto dos animais não é de modo algum o de congêneres e mesmo eventualmente de companheiros com os quais possamos eventualmente manter relações de natureza social, e sim de instrumentos que temos o direito de utilizar mais ou menos como quisermos, em função de nossas necessidades e de nossos interesses: “À parte os homens, nada conhecemos de particular na natureza que possa nos conferir algum prazer espiritual ou com o qual possamos ter laços de amizade ou algum tipo de relacionamento social. Logo, o que se encontra na natureza, à parte os homens, a norma de nossa utilidade não exige que o conservemos, mas nos aconselha a conservá-lo para usos diversos, a destruí-lo ou a adaptá-lo por todos os meios ao nosso uso”.8
Não pode haver para nós, portanto, nenhuma obrigação real de garantir o bem-estar e a conservação dos animais e dos seres vivos em geral, na medida em que eles dependem de nós, direta ou indiretamente, para sua existência, pois a questão de saber se devemos ou não tentar conservá-los depende na verdade apenas do uso, vantajoso ou não, que podemos fazer deles se escolhermos mantê-los vivos.
Schopenhauer atribui a concepção que Spinoza defende a esse respeito, a seus olhos incompreensível e aberrante, à persistência da influência da Bíblia em seu espírito, em particular do relato do Gênesis – “Deus disse: ‘Faça-se o homem à nossa imagem e semelhança, e que ele governe os peixes do mar, os pássaros do céu, o animais, todas as feras e todos os insetos que rastejam sobre a terra’” (Gênesis, 1:26) – e da tradição judaica ou judaico-cristã. É precisamente essa a questão sobre a qual se debruçam as últimas páginas de O mundo como vontade e como representação: “Spinoza não podia se afastar do judeu: quo semel est imbuta recens servabit odorem [a argila conservará por muito tempo o perfume de que tenha sido um dia impregnada] (Horácio, Epístolas, I, 2, v. 69). O que há de decisivamente judeu nele e que, junto com o panteísmo, é o mais absurdo e simultaneamente horrível é seu desprezo pelos animais, nos quais vê apenas coisas destinadas ao nosso uso e às quais recusa qualquer direito”.9
Quando a “escória” se agita de despudor
Em um complemento posteriormente adicionado ao que havia escrito em Parerga und Paralipomena sobre o mundo animal e sobre a relação que mantemos com ele, Schopenhauer retornou a essa questão e enfatizou o ponto: “O animal, no essencial e no ponto principal, é o mesmo que nós somos: a diferença reside apenas no acidente, o intelecto, e não na substância, que é a vontade. O mundo não é uma obra de má qualidade e os animais não são um produto fabricado para nosso uso. […] Não é apenas a verdade, mas igualmente a moral que está do nosso lado. […] O maior benefício das ferrovias é que elas poupam a milhões de cavalos de trabalho sua lamentável existência”.10
A última frase relaciona o advento do reino universal da máquina à condição miserável à qual um número considerável de animais se viu reduzido por culpa do homem, mas para apontar precisamente um dos raros aspectos do primeiro que pode ser considerado positivo. Esse também é um ponto sobre o qual Kraus poderia sentir-se relativamente próximo de Schopenhauer, pois ele também está convencido de que a maneira como o ser humano se transformou em adorador e escravo da máquina tem algo a ver com a pouca consideração que passou a nutrir pelas outras espécies e pela vida em geral, e com o tipo de tirania impiedosa que faz reinar sobre uma parte do mundo animal.
Pode parecer um pouco estranho que, no verão de 1916, momento em que a guerra, arrastando-se havia quase dois anos, atingira um grau extremo na intensidade dos combates e na perda desproporcional de vidas humanas, Kraus retorne com tanta insistência sobre a questão do respeito que é devido aos animais e da violência e atrocidades que a guerra os obriga também a suportar. Mas ele empenhava-se em convencer seus leitores de que a humanidade estaria totalmente errada em imaginar que poderia tratar esse problema como quase insignificante.
Quando investigamos o que tornou possível uma catástrofe como a da Primeira Guerra Mundial, não se pode esquecer de considerar certo número de características constitutivas e de fatores essenciais, contra os quais a social-democracia não encontra muito mais razões para se insurgir do que seus oponentes da burguesia e que inclusive ela não considera realmente dignos de preocupação.
Kraus pensa em coisas com as quais seria melhor, justamente, tentar acabar, em vez de se propor a retomá-las, ampliando-as e acelerando-as: tudo aquilo que tenha a ver com o produtivismo e o consumismo desenfreado, a exploração indiscriminada e desmedida dos recursos naturais, a indiferença em relação ao meio ambiente e à degradação que as atividades humanas, sua vontade de poder e sua avidez aparentemente ilimitada impõem-lhe cada vez mais, a falta de consideração pelos animais e a ignorância deliberada e obstinada do risco de que, sob o pretexto de melhorar continuamente as condições de vida de nossa espécie, acabemos por tornar problemática e acabar impossibilitando a preservação da vida das outras e da vida em geral etc. Kraus argumenta que é sobre questões desse tipo que um partido que se diz revolucionário deveria mostrar-se muito mais revolucionário do que a social-democracia. Mas o que o impede de sê-lo é também, infelizmente, em grande parte, o interesse que as próprias pessoas que ela defende têm, compreensivelmente, na continuação do processo que deveria tentar, se possível, reduzir e até interromper.
Não é preciso procurar alhures a razão pela qual mesmo aqueles que em princípio estão mais bem posicionados para desejar a mudança possam ser impedidos simultaneamente de realmente desejá-la e até mesmo determinados a lutar contra aqueles que podem ser tentados a buscar impor tal mudança. Quando refletimos, como já havia feito Kraus, sobre esse tipo de situação, não podemos nos surpreender que, em uma questão como a do aquecimento global, por exemplo, cuja urgência se torna realmente extrema, a humanidade atual esteja provavelmente condenada até o fim, se houver um fim, a tentar fazer coexistir a proclamação de que a catástrofe é quase certa e que mudanças radicais são absolutamente indispensáveis com a busca por todos os meios possíveis e imagináveis de evitá-las e contentar-se com medidas que permanecem, em sua maior parte, quase simbólicas e às vezes francamente irrisórias.
Isso não pode, é claro, ser motivo para considerar que, em comparação com um problema como esse, as questões de justiça social e igualdade não sejam primordiais ou estejam até se tornando mais ou menos secundárias. Obviamente, não é o que Kraus pensava; e o que ele teria desejado e esperado em vão da social-democracia era que ela se mostrasse, a respeito dos dois tipos de questão – que não podem ser tratadas de forma completamente independente uma da outra –, menos conciliadora e muito mais revolucionária. A ameaça bem real que representa para a humanidade o preocupante aprofundamento da injustiça e da desigualdade é mais um assunto de grande atualidade sobre o qual Kraus enxergou muito mais longe do que a maioria de seus contemporâneos.
Em sua resposta à Sra. Von X-Y, Kraus estabelece uma conexão direta entre a maneira como ela se expressa a respeito de Rosa Luxemburgo e a aprovação fundamental que pessoas como ela deram à guerra. Seria preciso que ao lado da carta de Rosa Luxemburgo fosse publicada também, nos livros didáticos, “a carta dessa megera, a fim de inculcar na juventude não só o respeito pela grandeza da natureza humana, mas também o repúdio diante de sua baixeza”. Essa é uma das razões pelas quais Kraus expressa abertamente o desejo de que o comunismo ainda tenha uma vida suficientemente longa, para ao menos impedir a corja de que ele fala de desfrutar serenamente dos benefícios conquistados e dormir tranquilamente: “Que Deus o conserve como uma ameaça constante acima daqueles que possuem bens e que, para protegê-los, gostariam de enviar todos os outros para o front da fome e da honra patriótica, embalados pelo consolo de que os bens materiais não são os bens supremos. Que Deus o guarde para que essa escória já agitada de despudor não se torne ainda mais despudorada, para que aqueles que são os únicos a ter acesso ao prazer e pensam que a humanidade que lhes serve já teve bastante amor após a terem infectado com sífilis tenham pelo menos seu sono perturbado por um bom pesadelo”.11
A “escória” de que ele fala tem hoje motivos melhores do que nunca para acreditar que ganhou a guerra contra os pobres, e realmente o fez quase por W.O. Ela pode, como ele disse, agitar-se mais uma vez de despudor e manifestar a mesma propensão a pregar sermões a suas vítimas, dar-lhes lições de serenidade e sabedoria e explicar-lhes que elas não têm nenhuma razão para sentir ódio ou revoltar-se contra os supostos responsáveis por seu infortúnio.
Jacques Bouveresse é filósofo.
1 “Verwandlungen”, Die Fackel, Viena, n.462-471, out. 1917, p.171.
2 “Lettre de Rosa Luxemburg à Sonia Liebknecht” [Carta de Rosa Luxemburgo a Sonia Liebknecht]. In: “Les Guerres de Karl Kraus” [As guerras de Karl Kraus], Agone, n.35/36, 2006, p.258.
3 Edward Timms, Karl Kraus Apocalyptic Satirist, Culture and Catastrophe in Habsburg Vienna [A sátira apocalíptica de Karl Kraus, cultura e catástrofe na Viena dos Habsburgos], Yale University Press, New Haven e Londres, 1986.
4 “Vorlesungen (mit dem Brief Rosa Luxemburgs)” [Leituras (com a carta de Rosa Luxemburgo)], Die Fackel, n.546-550, jul. 1920, p.5.
5 “As guerras de Karl Kraus”, op. cit.
6 Adolf Hitler, Monologe im Führerhauptquartier 1941-1942, notas de Heinrich Heim, editado por Werner Jochmann.
7 Adolf Hitler, Mein Kampf, publicado por Christian Hartmann, Thomas Vordermayer, Othmar Plöckinger, Roman Töppel, Instituto de História Contemporânea, Munique-Berlim, 2016.
8 Ética, Parte IV, apêndice, cap. XXVI. In: Spinoza, Œuvres complètes [Obras completas], Paris, Gallimard, 1954.
9 Arthur Schopenhauer, Le Monde comme volonté et comme représentation [O mundo como vontade e como representação], Presses Universitaires de France, Paris, 1966.
10 Arthur Schopenhauer, Senilia, Gedanken im Alter [Senilia, pensamentos de um homem idoso], editado por Franco Volpi e Ernst Ziegler, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 2011.
11 “As guerras de Karl Kraus”, op. cit.