A desorientação da social-democracia alemã
As eleições legislativas de 24 de setembro não anunciam bons presságios para o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD). Para além das decepções nos últimos escrutínios regionais e das alianças acrobáticas, o núcleo de sua ideologia parece ter se desintegrado. Nas administrações locais, militantes desconcertados procuram em vão por uma linha mais bem definida
Numa manhã chuvosa de primavera, um grupo de estudantes caminha ao longo da Stadthalle, em Bad Godesberg. Nenhum dos adolescentes se dá ao trabalho de dar uma olhada nesse edifício fora de moda pertencente à cidade e que serviu de cenário para um congresso histórico do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD). Em novembro de 1959, o partido marxista fundado em 1875, em Gotha, “aprovou uma economia livre de mercado em todo lugar onde a concorrência se afirma”, reivindicou seu pertencimento ao bloco do oeste e exibiu sua vontade de se abrir para outras categorias sociais além dos trabalhadores. Com dificuldade, ele ainda defendia na época “a instauração de uma nova ordem econômica e social” e admitia que “a propriedade coletiva é uma forma legítima do controle público à qual nenhum Estado moderno pode renunciar”…1
Quase seis décadas depois, esse programa de prestação de contas soa como um insuportável radicalismo para os líderes contemporâneos do partido. Entre 1998 e 2005, o SPD no poder com os Verdes impôs a “Agenda 2010”, uma implosão da proteção social (aposentadorias, desemprego, direito trabalhista). Sócio menor2 da “grande coligação” dirigida por Angela Merkel entre 2005 e 2009, depois entre 2013 e 2017, ele se tornou inaudível: equivocado quando era preciso impedir o ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, de apertar o torniquete que asfixia a Grécia; desconcertado quando a chanceler colocava em prática o salário mínimo, proposta que era um carro-chefe do SPD; desorientado quando ela pedia o acolhimento dos refugiados, em 2015.
Três derrotas sucessivas
Saudada pela imprensa e pelos institutos de pesquisa como uma virada decisiva, a eleição triunfal à frente do partido, em março último, do ex-presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, deveria recolocar o partido nos trilhos e preparar a vitória nas eleições legislativas de 24 de setembro próximo, após doze anos de reinado conservador. Mas três derrotas sucessivas em março e maio nas votações regionais do Sarre, do Schleswig-Holstein e da Renânia do Norte-Vestfália esvaziaram a bolha e jogaram água fria nas esperanças. Ainda que façam parte das especificidades da vida política alemã, as alianças regionais do SPD acentuam o sentimento de inconsistência. Em quatro regiões, o partido governa em conjunto com os conservadores da União Cristã Democrata (CDU).3 Em três outras, divide o poder com o partido Die Linke, a esquerda radical. Dessa forma, é preciso se perguntar: pleno de instituições sólidas e de nomes conhecidos, o SPD existe ainda como partido político capaz de propor um projeto de sociedade? Quer disponha ainda de uma bússola ideológica ou viva apenas para perpetuar suas posições de poder, ele deveria compartilhá-los com a direita?
Se considerarmos as declarações de intenções, a pergunta parece sem fundamento. O partido diz querer refundar a economia social de mercado, fazer do Estado um motor de crescimento e da criação de empregos, taxar mais as altas rendas, regular os mercados financeiros, lutar contra a utilização abusiva dos trabalhadores temporários, expandir os direitos de participação dos assalariados nas comissões de empresa etc. A priori, poucos pontos comuns com os objetivos dos cristãos democratas, advogados de um livre-comércio ainda mais desenfreado e de benefícios fiscais, contrários ao restabelecimento do imposto sobre a fortuna e grandes críticos da dívida pública. As diversas coligações CDU-SPD, tanto nacionais como regionais, revelam, no entanto, uma porosidade programática entre esses dois partidos. Elas passam sobretudo o sentimento de que os sociais-democratas fazem mais concessões políticas a seus adversários que o inverso. Daí um sentimento de abandono entre os militantes e simpatizantes.
Originário de Dülmen, comuna do Ruhr onde antigas fábricas foram transformadas em elegantes pavilhões, André Stinka, candidato do SPD nas últimas eleições regionais da Renânia do Norte-Vestfália, reconhece uma defasagem entre os discursos e a realidade: “No partido, não cessamos de evocar a sorte das mulheres solteiras com filhos. Mas quem entre nós as conhece de fato? Alguns eleitos não falam mais com as pessoas a quem deveriam se dirigir”. Hoje aposentado, Rainer Einenkel, ex-presidente da comissão de empresa da Opel, mostra-se mais categórico. O SPD, lamenta, “abandonou os trabalhadores porque pensava que iam desaparecer por conta própria”. Essa constatação se apoia numa longa experiência de campo, durante a qual ele negociou com os eleitos locais social-democratas várias questões sociais ligadas sobretudo ao fechamento de fábricas: “O problema do SPD”, acrescenta, “é sua propensão a governar com uns e com outros. Esse partido tem um problema com suas próprias raízes. O mesmo se poderia dizer dos cristãos democratas, mas a CDU permanece muito mais ligado a seus fundamentos ideológicos”.
Chanceler de 1998 a 2005, Gerhard Schröder levou esse ruído ideológico ao paroxismo. Em conluio com a “terceira via” neoliberal de Anthony Blair no Reino Unido, o líder social-democrata lançou o “novo centro”: sob a cobertura da corrida pela competitividade, ele reduziu as ajudas do Estado, flexibilizou o trabalho e exigiu que cada um assumisse um maior controle. Em poucos anos, os trabalhadores pobres substituíram os desempregados indenizados – o contrário, em suma, da filosofia política reclamada pelo SPD. O partido foi então privado de sua base militante e perdeu as eleições. Cúmulo da ironia, em sua primeira declaração sobre política geral no final de 2005, a nova chanceler prestou homenagem à audácia de seu predecessor…
Dois anos depois, nascia o Die Linke, movimento de esquerda profundamente hostil a essa deriva socioliberal. Privilegiar as coligações com esse partido poderia ajudar o SPD a reafirmar sua ancoragem à esquerda. Mas no plano nacional a questão suscita debates inflamados: “O SPD não pode fazer aliança com o Die Linke, sobretudo porque este último ameaça deixar a Otan”, aponta o ex-eurodeputado social-democrata Helmut Kuhne. Os dois partidos, no entanto, governam juntos nos Länder de Berlim, Brandemburgo e também da Turíngia, cuja capital, Erfurt, abriga a sede do Parlamento regional. Matthias Hey, presidente do grupo social-democrata dessa região, vê em Bodo Ramelow, chefe do executivo regional (Ministerpräsident) oriundo do Die Linke, um político “realista” com o qual seu partido de bom grado faz frente comum “quando se trata de lutar contra a desigualdade num país com mais de 1 milhão de milionários”. Mas ele reconhece a existência de divergências políticas profundas com seu parceiro. Ano passado, por exemplo, quando a coligação nacional CDU-SPD queria expulsar argelinos, marroquinos e tunisianos que tiveram seu pedido de asilo indeferido, o Die Linke e os Verdes opuseram-se.
Mutação sociológica
Muitos eleitos do SPD encontrados afirmam que seu “aliado natural” no Parlamento poderia ser o Die Linke se esse partido não fosse composto “apenas por pragmáticos”. Aí subentendidos os eleitos do leste habituados a formar coligações com os sociais-democratas, contrariamente àqueles do oeste, mistura de “ex-comunistas, anarquistas, decepcionados de nossas fileiras”, como os qualifica não sem amargura Andreas Bausewein, prefeito de Erfurt filiado ao SPD. Mas, antes disso, acrescenta, “é preciso se perguntar sobre as razões pelas quais o partido está hoje numa situação tão difícil: ele sofreu uma mutação em termos sociológicos. Perdeu seus eleitores tradicionais, os operários”. Outro argumento frequentemente apresentado para explicar a perda de apoio: o partido não traria nenhum contramodelo de sociedade, nem mesmo um projeto político global depois de ter vencido o essencial de seus combates: primeiras convenções coletivas, luta pelo reconhecimento dos sindicatos, jornada de oito horas, criação dos conselhos de empresa, seguro-desemprego, distensão em relação à República Democrática Alemã e ao bloco do leste nos anos 1970 (Ostpolitik) etc.
E se, por força de liderarem com a CDU, os sociais-democratas estivessem condenados a ser apenas a “consciência social” da direita alemã? No Parlamento regional de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, em Schwerin, onde o SPD toma assento como parceiro de uma coligação dirigida pelos cristãos democratas, essas críticas são varridas com um aceno de mão. “Há diferenças de fundo”, assegura Thomas Küger, presidente do grupo social-democrata. “Queremos mais negociações coletivas sobre a igualdade salarial entre o leste e o oeste. Não é o caso da CDU. Sobre a duração do trabalho, nossos colegas e nós não dizemos a mesma coisa. Lutamos também pela gratuidade do ensino. Não é o caso deles. E, além do mais, eles querem privatizar tudo. Já nós reafirmamos a importância do Estado.” Uma presença reduzida, no entanto, segundo um princípio fixado em Bad Godesberg: “A concorrência na medida do possível – o planejamento conforme o necessário”.
Segundo Benjamin Himmler, empregado da Friedrich-Ebert-Stiftung, fundação política próxima do SPD, o Partido Social-Democrata “tornou-se conservador. Ele trabalha pelo status quo. Não é de admirar que tenha se tornado o aliado natural da CDU”. Ele promete: se, por ocasião das próximas eleições, a “grande coligação” for reconduzida a Berlim, ele cancelará seu título. Por enquanto, Himmler se pergunta, assim como outros, sobre as capacidades de Schulz, nome que está no topo da lista do partido após a desistência de Sigmar Gabriel de encarnar uma renovação. O ex-presidente do Parlamento Europeu multiplica sinais contraditórios. Ele reconhece que as reformas de Schröder criaram uma geração de “trabalhadores pobres”, afirma querer indenizar melhor o desemprego, dar um impulso às aposentadorias, lutar contra os abusos dos contratos de duração determinada – muitas posições que agradam a Reiner Hoffmann, presidente da Confederação Alemã dos Sindicatos (DGB). Incontestavelmente, os sindicatos e o SPD mantêm melhores relações que sob o mandato de Schröder.
Schulz, um “produto” midiático
Schulz, porém, também sabe se alinhar com posições mais conservadoras. Por exemplo, quando evoca a hipótese de saída da Grécia da zona do euro se as “reformas necessárias” não forem levadas a efeito. “A concepção da justiça social do candidato oficial do SPD ainda não aparece claramente aos olhos dos eleitores”, considera Martin Koschkar, estudioso de política da Universidade de Schwerin. Isso não escapou a Sahra Wagenknecht. Julgada muito radical por numerosos sociais-democratas, a candidata oficial do Die Linke conclama o SPD a retornar a seus fundamentos, em especial em um extrato específico de seu programa de Berlim, assinado em 1989:4 “As revoluções cidadãs contemporâneas mais prometeram a liberdade, a igualdade e a fraternidade do que as realizaram. É a razão pela qual o movimento dos trabalhadores reclama uma sociedade solidária com liberdade para todos. Uma experiência histórica fundamental deve ser concluída: não basta reparar os estragos do capitalismo. Uma nova ordem econômica e social é necessária”.
Em suas obras sobre o SPD,5 o estudioso de política Franz Walter descreveu a lenta deriva ideológica e sociológica desse partido do proletariado rumo ao “novo centro”. Do ponto de vista por ele defendido no livro, o SPD não teria mais “objetivo socialista”. Por muitas vezes se reprovou em Schulz sua extrema proximidade com seu homólogo da Comissão Europeia, o liberal Jean-Claude Junker. Para as eleições de setembro, ele parece disposto apenas a dar uma leve guinada à esquerda a fim de marcar uma diferença, mas sem afirmar uma ruptura. Seu maior “capital” reside em sua biografia atípica e em sua personalidade simpática, próxima da população. O “produto” agrada aos meios de comunicação, cujos modismos são efêmeros. Ele se vê como um novo Willy Brandt, chanceler de 1969 a 1974. Na época, o SPD contava mais de 1 milhão de militantes, contra pouco menos de 445 mil hoje. Dono de uma mensagem política clara, ele não tinha então nenhum concorrente sério à sua esquerda.
*William Irigoyen é jornalista.