“O racismo é uma realidade violenta”
A dinâmica brutal da violência comprova a afirmativa de Grada Kilomba: o racismo é uma realidade violenta. Uma violência que se acelera e se aprofunda em política de morte expressa e executada pelo Estado, incentivada por grupos hegemônicos e atiçada por supremacistas brancos, enraizada de tal modo na sociedade que se tornou naturalizada
Ao escrever sobre racismo e violência no Brasil, sempre tenho algumas dificuldades em iniciar o texto. Não porque a realidade brasileira não seja vasta em ambas as temáticas, mas pela impossibilidade que vejo ao separá-las quando pensamos o país em que vivemos. Em Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano, a escritora e multiartista Grada Kilomba inicia uma de suas discussões sobre as principais conceituações do racismo afirmando que “O racismo é uma realidade violenta”. A expressão não é por acaso, porque explicita o quão amalgamados estão racismo e violência. Não há como falar de um sem falar de outro no Brasil.
A violência e o racismo são, portanto, “emaranhados”, para utilizarmos uma expressão da historiadora e intelectual brasileira Beatriz Nascimento, manifestos de modo explícito ou em diversas sutilezas. A violência, por sua vez, entre os vários debates para sua conceituação, pode ser compreendida como um fenômeno multidimensional, fundacional do país, que perpassa as dimensões físicas, morais, psíquicas e simbólicas, em práticas discriminatórias variadas, além de estar enraizada como meio e como linguagem. A violência também tem sido fundamento das práticas e relações sociais, bem como ferramenta do Estado de forma regular e constante, sendo essa forma a única presença estatal em muitos dos territórios no país.
O racismo, por sua vez, e faço uso da conceituação de Grada Kilomba, é a construção da diferença de forma hierárquica, ou seja, como desigualdade. Um sistema de dominação que se baseia em valores hierárquicos e em poder, sendo este último histórico, político, econômico, social e cultural. Ou seja, o “racismo é supremacia branca”, porque constituído de uma série de mecanismos dispostos a garantir a manutenção de desigualdades baseadas em hierarquias raciais e os privilégios do grupo branco. Assim, quando alguém fala de racismo reverso, é inevitável o questionamento – e minha afirmação da inexistência de tal fenômeno –, tendo em vista que os grupos subalternizados não podem performar o racismo, já que não detêm poder; o que se pode dizer é de uma prática preconceituosa individual, mas que não se constitui como prática discriminatória, que impossibilita que um grupo ascenda e conviva em patamares igualitários e equânimes na sociedade. O racismo, então, engloba manifestações de ordem estrutural (das estruturas sociais e políticas), institucional (transcendendo o viés ideológico, sendo institucionalizado pelos sistemas de justiça criminal e pelo mercado de trabalho, por exemplo) e cotidiana (manifesto em discurso, comportamento, na construção de um “outro” perigoso e expondo sujeitos cotidianamente). O racismo produz e legitima a marginalização de sujeitos, privando-os, inclusive, do direito à autorrepresentação.
Variadas são as dimensões dessa realidade violenta. Para denunciar o discurso corrente e fantasioso de que o Brasil vivia uma democracia racial, ainda presente no senso comum, o intelectual brasileiro Abdias do Nascimento confrontou, em 1977, durante seminário na Nigéria, uma série de problemáticas da sociedade brasileira que comprovavam que, bem distante de harmoniosa, a convivência era baseada em violências de toda ordem e processos de destituição cultural, invisibilidade da contribuição intelectual e marginalização política e econômica da população negra.
A constatação do genocídio foi pensada e realizada não apenas como estratégia política para chamar atenção para o racismo brasileiro, mas baseada nos processos violentos que envolvem todas as dimensões da vida do negro no Brasil. O genocídio perpassa desde a conceituação sobre medidas sistemáticas e intencionais para causar morte de grupos raciais até a recusa constante de sua existência e a destruição política, social e cultural de grupos raciais. Assim, retomo a produção de Grada Kilomba, quando ela estabelece a relação entre a máscara de ferro, usada tanto para prender e tapar a boca de escravizados fisicamente quanto como arma política do processo colonial para destituir o sujeito de uma ação ativa de existência ao lhe impor silenciamento.
Ora, ainda hoje vivenciamos intensos debates quando grupos subalternizados reivindicam seus “lugares de fala”, que nada têm a ver com silenciamento, como desonestamente tentam apregoar, mas com a validação social e o reconhecimento de que todas as perspectivas constituem o debate público e, consequentemente, todas as existências são sujeitas a políticas de direitos, se autorrepresentam e se autoenunciam. Sendo o discurso e a linguagem espaços de disputa e existência, ao lançarem mão da formulação sobre “lugar de fala”, os sujeitos negros estão colocando que suas experiências enquanto grupo constituem também o espaço de humanidade e dignidade e buscando desmantelar a ideia de que apenas a branquitude tem legitimidade social. Ao perguntarmos se o subalterno pode falar e ao afirmarmos que todos os grupos são racializados em uma sociedade racista, estamos caminhando para uma possibilidade de transgressão decolonial e de possível desintegração de hierarquias. Assim, quando a intelectualidade negra afirma o lugar de fala, não silencia, mas apresenta que todos têm perspectivas válidas no todo social. Estamos falando de construções radicalmente democráticas do espaço político.
Essas perspectivas são fundamentais se queremos enfrentar o “racismo como realidade violenta” no Brasil. Infelizmente, é inevitável falar de números para lidar com o genocídio da população negra brasileira. Segundo dados do Atlas da Violência, produzido pelo Instituto de Política Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e divulgado em 2018, somos um dos países mais violentos do mundo, seja para homens, seja para mulheres, principalmente se forem negros. Mais de 75% dos mais de 65 mil homicídios foram de jovens homens negros. A taxa de homicídio a cada 100 mil entre jovens negros é de 43,1, ao passo que entre jovens não negros é de 16. Ou seja, tivemos cerca de um jovem negro assassinado a cada 23 minutos no Brasil em 2017.
As dinâmicas do genocídio brasileiro também avançam sobre as mulheres negras. A taxa de homicídio de mulheres negras é de 5,3 a cada 100 mil, enquanto a taxa de não negras é de 3,1 – uma diferença de 71%. Em dez anos, as taxas de homicídio de mulheres não negras diminuiu 8%, ao passo que entre mulheres negras aumentou 15%. A maioria dessas mulheres foi assassinada depois de passar por outros processos de violência psicológica, patrimonial, sexual ou física, e grande parte estava em casa no momento do feminicídio (40%). A maioria delas foi vitimada por arma de fogo (mais de 50%). Além disso, somos o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Segundo relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 98% das vítimas eram trans de gênero feminino, sendo 80% negras, e 43% foram assassinadas com uso de armas de fogo.
Como dito, o racismo é uma estrutura complexa que afeta todas as esferas da sociedade. Sendo assim, temos percebido também um aumento de jovens negros que se suicidam. Ou seja, a cada dez jovens que se suicidam no país, seis são negros. E essa dimensão, que reflete intenso sofrimento psíquico, também tem sido uma face que evidencia a violência no país entre policiais. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de policiais que se suicidaram superou o número de policiais mortos em confronto. A taxa de suicídio entre policiais é de 23,9 para cada 100 mil, quando essa taxa na população é de 5,8. A maioria esmagadora homens (96,9%), entre 30 e 39 anos (35,3%) e negros(51,7%).
Diferentemente do que muitos, a princípio, acreditavam, a pandemia não produz violências e desigualdades, muito menos racismo. Mas evidencia, explicita essas questões que tanto protelamos em enfrentar. Em um primeiro momento, com a maior atuação das medidas de isolamento, houve redução de operações policiais em favelas no Rio de Janeiro. Com isso, a Rede de Observatórios apresentou uma redução de 60% das mortes nas comunidades cariocas. Contudo, por pouco tempo. Nem a pandemia foi capaz de parar a face violenta do Estado, seja pelo descaso enfrentado em ações emergenciais econômicas e hospitalares, seja pela retomada de ações policiais. Com isso, tivemos o caso emblemático do adolescente João Pedro, assassinado dentro de casa, com um tiro nas costas, em operação violenta da polícia.
Apesar da diminuição de crimes como furto/roubo e maiores dificuldades ao tráfico por causa do fechamento das fronteiras, evidenciando uma mudança na dinâmica da violência, a violência policial não acompanhou a redução da criminalidade. O que os dados têm apontado é o crescimento dos homicídios, o fortalecimento das milícias e o aumento da violência policial. Em abril, o número de mortos pela polícia em supostos confrontos subiu 8%. No estado do Rio de Janeiro, houve aumento de 13% nas mortes por intervenção policial em relação ao mesmo mês em 2019. Em São Paulo, a polícia matou mais no mês de abril desde o início da divulgação dos dados de letalidade policial, em 2001! As mortes por supostos confrontos tiveram aumento de 43,6% em abril, em relação a março de 2020. Foram 373 pessoas assassinadas pela polícia paulista nos quatro primeiros meses de 2020, sendo 320 em supostos confrontos. A falta de ação das ouvidorias em cobrar ações e respostas efetivas diante dessa violência é aviltante. E uma das explicações apontadas por especialistas está pautada em um cenário político de acirramento e radicalização do discurso de morte por parte de governantes. Ou seja, a sensação de impunidade e respaldo diante das violências cometidas.
A quem tem interessado a guerra às drogas, que vitima jovens negros e homens policiais e civis todos os dias? A quem têm interessado as dinâmicas violentas que apresentam taxas alarmantes e seguem focadas em um grupo sociorracial da sociedade? A dinâmica brutal da violência comprova a afirmativa de Grada Kilomba, que repito novamente: o racismo é uma realidade violenta. Uma violência que se acelera e se aprofunda em política de morte expressa e executada pelo Estado brasileiro, incentivada por grupos hegemônicos e atiçada por supremacistas brancos, enraizada de tal modo na sociedade brasileira que se tornou naturalizada, infelizmente.
Uma das questões principais a serem enfrentadas é a quebra de silêncio. Em um cenário desolador, pode tornar-se cansativo fazê-lo. Mas é preciso falar. Se uma das ferramentas do racismo é o silêncio, uma prática antirracista é o grito. A busca de uma linguagem que desnaturalize essas dinâmicas é fundamental, a quebra da lógica de mecanismos de defesa pautados em negação, recusa e culpa e que se consolidem como reconhecimento e ação cotidiana em todos os âmbitos. E a busca incessante do desmantelamento dessas estruturas. A violência é um termo que aniquila o outro – portanto, uma negação do exercício do diálogo e da política. Assim, acredito que insistir na via da mediação pela linguagem, pelo discurso, pela escuta (ativa), do exercício político, da esfera da fala e da existência de todas as perspectivas é fundamental. Ademais, essa ação, que é primeiro passo, deve pautar a demanda por políticas públicas de moradia, educação, saúde (fortalecimento do SUS), cultura, lazer e muitas outras dimensões. E, por fim, que enfrentemos, acatemos e construamos reconhecimento e processos reparatórios que repactuem as dignidades e as humanidades.
Juliana Borges é escritora e pesquisadora de Política Criminal. Autora de Encarceramento em massa (col. Feminismos Plurais, Selo Sueli Carneiro/Pólen Livros). É conselheira da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e consultora do Núcleo de Enfrentamento, Monitoramento e Memória de Combate à Violência da OAB-SP.