Outubro de 2019. Cerca de quarenta chefes de Estado lotam as ruazinhas da antiga Vila Olímpica de Sochi, balneário no Mar Negro que sediou os Jogos de Inverno de 2014. Realizada por iniciativa do presidente Vladimir Putin, a primeira Cúpula Rússia-África foi concluída com a proclamação de objetivos ambiciosos – a Rússia pretende duplicar o comércio com o continente em cinco anos – e com a promessa de um novo encontro, provavelmente em Adis-Abeba (Etiópia), sede da União Africana, em 2022.
No Ocidente, o grande evento diplomático foi visto como a consagração do retorno da Rússia ao continente africano, refletindo um novo interesse pela região, sob uma estratégia abrangente. Porém, uma análise mais atenta mostra que esse processo na verdade começou há cerca de quinze anos e, de lá para cá, evoluiu muito, tanto em termos da geografia dos países envolvidos como no que concerne aos vetores de influência utilizados, embora sem que a Rússia tenha constituído uma abordagem coerente em escala continental.
Centenas de diplomatas soviéticos
Durante muito tempo, a topografia da influência russa na África seguiu os contornos da descolonização e da luta contra o apartheid. Embora o continente estivesse presente nas reflexões de Lenin desde o início da década de 1920, foi apenas três décadas depois, com o colapso do Império Francês e do Império Britânico, que a África se tornou uma questão de política externa para o poder soviético. Após sua estrondosa irrupção na crise de Suez, em outubro de 1956, a União Soviética forneceu um apoio econômico e militar maciço ao Egito do presidente Gamal Abdel Nasser, ao mesmo tempo que se interessava cada vez mais ativamente pelos diversos movimentos de libertação nacional. A China maoista, que acusava o irmão mais velho soviético de certa frouxidão revolucionária, empurrou a União Soviética para a esquerda. A partir de 1956, esta estabeleceu importantes vínculos com a Frente de Libertação Nacional (FLN) da Argélia. A base russa em Perevalnoe, na Crimeia, acolheu combatentes antiapartheid do Congresso Nacional Africano (CNA) de Nelson Mandela, da União do Povo Africano do Zimbábue (Zapu) e da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).
Essa ajuda militar foi acompanhada por uma política de influência “suave”. Ilustra essa política a criação da Universidade da Amizade dos Povos Patrice-Lumumba, em Moscou, em 1961, instituição que duas décadas mais tarde receberia 26.500 alunos vindos da Ásia, da América Latina e da África.1 A União Soviética também se distinguiu por enviar grandes contingentes de diplomatas aos países africanos, assim como ao restante do Terceiro Mundo: enquanto os novos Estados independentes enviavam dois ou três diplomatas a Moscou, a União Soviética enviava centenas deles a esses países. Em 1960, no Togo, havia quase um diplomata soviético para cada 18 mil habitantes…2
Nas décadas de 1970 e 1980, o continente africano tornou-se um importante – ainda que periférico – palco do confronto Leste-Oeste. O poder soviético tentou avançar seus peões na Somália, depois na Etiópia, antes de se voltar para o sul da África a fim de colaborar com o desmantelamento do Império Português e com a eclosão da luta contra o apartheid. O envolvimento soviético foi particularmente forte em Angola, para onde mais de 10 mil soldados foram enviados em missão a partir de 1975. Também teve papel decisivo – ao lado das tropas cubanas –, no inverno de 1988, na Batalha de Cuito Cuanavale, que abriu caminho para a independência da Namíbia e enfraqueceu irremediavelmente o regime sul-africano.
No entanto, a África foi a região do mundo que apresentou a mais rápida e visível retirada estratégica soviética, decidida no final da década de 1980 pelo último secretário-geral do Partido Comunista, Mikhail Gorbachev, em nome da normalização com o Ocidente. E ela continuou após o colapso da União Soviética. Para Boris Yeltsin e os líderes russos da época, a África era de fato sinônimo de atraso econômico e de aventuras geopolíticas tão vãs quanto ruinosas. Assim, em 1992 a Rússia iniciou o anúncio do fechamento de nove embaixadas, quatro consulados e treze de seus vinte centros culturais.3 Com a falta de financiamento e de interesse por parte das novas autoridades, a maioria dos escritórios das agências de notícias ex-soviéticas – frequentemente usadas como fachada para serviços de inteligência estrangeiros durante a Guerra Fria – fechou as portas. Em 1993, as trocas comerciais com a África não passavam de 2% do comércio exterior do país. Em alguns meses, a Rússia praticamente desapareceu da paisagem africana, sacrificando décadas de investimentos econômicos e políticos. Paradoxalmente, esse apagamento ocorreu quando a África “decolava” e muitos atores internacionais começavam a se estabelecer ali. O atraso que a Rússia teria de recuperar na década de 2000 só seria maior.
Os primeiros sinais da retomada do interesse pela África remontam a 2001. O ex-ministro das Relações Exteriores (1996-1998) e presidente do Governo (1998-1999) Yevgeny Primakov, nomeado por Putin como chefe da Câmara do Comércio e da Indústria da Rússia, fez então uma viagem incluindo Angola, Namíbia, Tanzânia e África do Sul.4 Mais cinco anos se passaram até que se operasse o primeiro avanço russo deste século no continente. Em março de 2006, Putin visitou a Argélia, propondo o perdão de sua dívida – US$ 4,7 bilhões –, em troca da assinatura de contratos de armas de cerca de US$ 6 bilhões. Para o governo russo, era uma forma de mobilizar suas redes da época da Guerra Fria e converter velhas afinidades ideológicas em clássicos fluxos de negócios.
Essa mesma abordagem foi usada na Líbia, outro ex-cliente da União Soviética. Na primavera de 2008, apenas algumas semanas antes de ceder seu lugar no Kremlin a Dmitri Medvedev, Putin reuniu-se com Muamar Kadafi. A Rússia passou uma borracha sobre os US$ 4,6 bilhões de dívida contraídos pela Líbia na época da União Soviética, e a Líbia comprometeu-se a comprar US$ 3 bilhões em equipamentos militares russos, incluindo aviões de combate, tanques e sistemas antiaéreos. Também foi estabelecido um acordo sobre a participação da companhia ferroviária russa (RJD) na construção de uma linha entre Sirte e Bengasi. Mas a visita de Kadafi a Moscou, em outubro de 2008 – a primeira desde 1985 –, destacou a dificuldade, para a Rússia, de concretizar esses avanços diante do desejo do líder líbio em dar continuidade à negociação.
Essa primeira fase do retorno russo à África também foi marcada por grandes investimentos de grupos industriais privados. A Rusal, maior produtor mundial de alumínio, instalou-se na Guiné, outro país que manteve laços estreitos com o “campo socialista”. Na sequência da visita de Putin a Pretória, em setembro de 2006, dois grandes grupos metalúrgicos e de mineração, a Evraz e a Renova – respectivamente controlados pelos oligarcas Roman Abramovich e Viktor Vekselberg –, compraram a Highveld Steel e a Vanadium Ltd, assumindo 49% de participação no capital do United Manganese of Kalahari. O forte componente de mineração dos investimentos russos foi confirmado em 2010, quando a ARMZ, uma filial da Rosatom, a gigante nuclear estatal, adquiriu um grande depósito de urânio na Tanzânia. Já a Alrosa, campeã nacional russa na produção de diamantes, investiu em Angola e, depois, no Zimbábue.
Perto do final do mandato de Medvedev (2008-2012), a política africana da Rússia começou a se institucionalizar. Em março de 2011, o presidente nomeou um representante especial para a cooperação com a África. A escolha recaiu sobre Mikhail Marguelov, fluente em árabe e, na época, presidente da Comissão de Assuntos Internacionais do Conselho da Federação, a câmara alta do Parlamento, o qual exerceu tais funções até outubro de 2014. Em dezembro de 2011 ele organizou o primeiro fórum empresarial russo-africano e ajudou a estruturar a política russa para o continente.
Em 2011 também se deu a única rusga pública observada ao longo dos quatro anos da estranha coabitação entre o presidente russo e seu primeiro-ministro, Putin. Este criticou Medvedev por abster-se de usar seu direito de veto sobre a intervenção militar ocidental contra Kadafi – decisão dele arrancada por seu colega francês Nicolas Sarkozy –, alertando contra uma mudança no regime líbio. Esse episódio – pouco conhecido no Ocidente – marcou uma virada nos jogos de poder em Moscou. Após seu retorno ao Kremlin na primavera de 2012, Putin fez da crítica à ingerência ocidental um elemento central de seu discurso de política externa, o que remetia ao “precedente líbio” e, de maneira mais geral, à Primavera Árabe.
Tradicionalmente, a Rússia faz uma distinção entre a porção da África localizada ao sul do Saara e aquela situada ao norte do continente, de cultura árabe, onde é dispensada a maior parte de seus esforços diplomáticos e econômicos. Essa tendência foi reforçada desde o “reencontro” com o Egito em 2013, após o golpe de Estado militar do marechal Abdel Fattah al-Sisi e graças ao reforço das relações com o Marrocos, observado desde 2014. A venda de armas e a cooperação militar foram as primeiras manifestações da reaproximação entre a Rússia e o Egito. Entre 2013 e 2017, os militares egípcios receberam 46 aviões de combate MiG-29M, sistemas antiaéreos Buk-M1-2 e S-300VM, bem como 46 helicópteros de ataque Ka-52. Inicialmente destinados aos porta-helicópteros Mistral que a França iria vender à Rússia, eles acabaram com o Egito em 2015. O processo deveria continuar com a entrega de caças-bombardeiros Su-35, apesar das ameaças de retaliação dos Estados Unidos contra o Egito. As marinhas de guerra russa e egípcia também realizaram exercícios conjuntos no Mar Negro, em outubro de 2020, e suas tropas aerotransportadas se encontram anualmente para a realização de manobras conjuntas.

Fracasso dos mercenários
Os laços comerciais entre os dois países têm crescido muito, com o volume das trocas comerciais bilaterais tendo passado de US$ 2,8 bilhões em 2011 para quase US$ 8 bilhões em 2018. A Rússia aumentou significativamente suas exportações de grãos para o Egito – maior importador mundial –, que na safra 2017/2018 teve 85% de seu trigo fornecido pela Rússia. Além disso, segundo os termos de um acordo assinado em 2015, a Rosatom construirá a primeira usina nuclear do país, em Al-Dabaa, a oeste de Alexandria. O projeto, estimado em cerca de US$ 25 bilhões, está previsto para ser concluído em 2029. Seu financiamento conta com uma participação de 85% de um empréstimo do Estado russo.
As crescentes tensões com o Ocidente após a crise ucraniana, bem como o envolvimento cada vez maior da Rússia no Oriente Médio, após a eclosão da intervenção militar na Síria, também tornaram possível o desenvolvimento de relações – até agora bastante modestas – com o Marrocos. Em março de 2016, catorze anos após uma primeira visita, o rei Mohammed VI, acompanhado por uma dezena de ministros, foi recebido no Kremlin por Putin. O Marrocos é um dos principais beneficiários das contrassanções instauradas pela Rússia em agosto de 2014 contra os produtos agroalimentares europeus. O país também espera atrair turistas russos com a abertura de uma ligação aérea direta – Casablanca era, antes da pandemia de Covid-19, uma das raras cidades africanas conectadas a Moscou. O volume de comércio bilateral entre os países já não é mais desprezível, tendo chegado a US$ 1,47 bilhão em 2018.
Recentemente, as relações russo-marroquinas passaram a integrar uma importante dimensão de segurança. Em dezembro de 2016, o secretário do Conselho de Segurança Nacional da Rússia, Nikolai Patrushev, fez uma visita de dois dias ao Marrocos, ecoando aquela feita no mesmo ano por Abdellatif Hammouchi, chefe da Direção-Geral de Segurança Nacional (DGSN) e da Direção-Geral de Vigilância Territorial (DGST), a Moscou. As divergências sobre o Saara Ocidental – discretamente caladas em público – não impedem, portanto, que a Rússia e o reino marroquino desenvolvam relações pragmáticas e ambiciosas em todos os campos, ou quase.
De forma mais geral, desde 2014 é preponderante o aspecto securitário da política da Rússia na África. Nos últimos cinco anos, o Estado russo firmou acordos com cerca de vinte países, sendo os mais recentes com o Mali (junho de 2019), com o Congo (maio de 2019) e com Madagascar (outubro de 2018). Esses acordos costumam prever treinamento de oficiais em Moscou, entrega de equipamentos militares novos e/ou a manutenção dos equipamentos já instalados, exercícios conjuntos, combate ao terrorismo e à pirataria marítima – componentes que variam de acordo com a situação do país e suas preocupações. Mas a abertura de bases militares permanentes, muito onerosas e pouco úteis no plano operacional, não está na ordem do dia, apesar das insistentes propostas de alguns dirigentes da região: durante sua visita a Moscou, em novembro de 2017, o presidente sudanês Omar al-Bashir, por exemplo, convidou seus anfitriões a construírem uma base naval no Mar Vermelho. Proposta reiterada em 2018, mas à qual a Rússia não deu continuidade.
Além dos representantes do Ministério da Defesa, outro personagem se destaca no campo da cooperação securitária: Patrushev. É por seu intermédio que os serviços de inteligência discutem oficialmente com seus colegas africanos, sobretudo à margem de sua conferência anual sobre questões de segurança, para a qual ele convida representantes de agências de inteligência do mundo inteiro. Na mais recente, realizada em maio de 2019 em Ufa, no oeste da Rússia, houve conversas com o chefe do serviço de inteligência da Namíbia, Philemon Malima, e com representantes das agências de inteligência do Burundi, da Tunísia, de Uganda, do Egito e do Congo.5 A segurança cibernética e a luta contra as “revoluções coloridas” – motivo de preocupação para muitos líderes africanos – são temas recorrentes nessas discussões.
A luta contra o terrorismo e a contrainsurgência são aspectos relativamente recentes dessa cooperação de segurança. Eles são colocados em prática em uma estrutura bilateral oficial, mas às vezes também de forma oficiosa, por atores privados cooptados. O principal objetivo da parceria entre a Rússia e a Nigéria é atualmente o combate ao grupo jihadista Boko Haram. Militares nigerianos foram enviados à Rússia para treinamento, e a agência russa responsável pelas exportações de armas entregou à Nigéria, em 2016 e em 2018, uma dúzia de helicópteros de ataque Mi-35M (até o momento não foram, porém, confirmadas as informações que circularam sobre a possível venda de caças-bombardeiros Su-30). Em maio de 2017, o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, teve longas conversas em Moscou com seu colega nigeriano Mansur Mohammed Dan Ali.
Já na Líbia, na República Centro-Africana, em Moçambique e no Sudão, o Estado russo – que não deseja enviar tropas regulares nem forças especiais a esses países – subcontrata a luta contra a insurgência junto a empresas militares privadas. Embora causem grandes preocupações à França, os “conselheiros militares” privados que vieram reforçar as autoridades oficiais de Bangui não estão em combate. No entanto, mercenários russos teriam participado, no final de 2018, ao lado das forças de segurança locais, da repressão ao levante sudanês que acabaria por derrubar o presidente Al-Bashir.6 Em Moçambique – cujo presidente, Filipe Jacinto Nyusi, visitou a Rússia duas vezes no outono de 2019 –, os subcontratados militares tinham a missão de combater os grupos islamistas na província de Cabo Delgado, região crucial na ambiciosa estratégia de exploração de gás do governo do país.7
Em todos esses cenários, os resultados até o momento são negativos. Os combatentes do grupo Wagner, lutando ao lado do marechal líbio Khalifa Haftar, não conseguiram evitar a derrota deste último na Batalha de Trípoli. Eles sofreram perdas significativas em Moçambique e teriam se retirado das zonas de combate poucas semanas após se instalarem. Seu papel presumido em Cartum quase custou politicamente caro a Moscou, após a mudança de regime em outubro de 2019. Quanto à República Centro-Africana, parece que o poder russo decidiu institucionalizar a cooperação de segurança, abrindo em Bangui um escritório de representação do Ministério da Defesa, o que pode significar, no futuro, um reequilíbrio da presença russa em detrimento das empresas militares privadas.
De maneira mais definitiva, a maior conquista da Rússia na África foi melhorar a percepção de seu papel e de sua influência. Os países do continente voltaram a considerá-la um ator de primeiro plano, que pode ao menos lhes oferecer uma cooperação econômica, eventualmente contribuir para sua segurança interna e externa e até representar uma espécie de “terceira via” diplomática entre os ocidentais – em geral percebidos como intrusivos na questão dos direitos humanos – e os chineses – cujo controle muitos na região gostariam de afrouxar. Do ponto de vista da Rússia, a África também constitui um reservatório de votos na Assembleia Geral das Nações Unidas, para sessões em que são discutidos assuntos sensíveis, como o Donbass e a Crimeia. Assim, na votação da resolução de março de 2014 que denunciava a anexação da península pela Rússia, muitos países africanos votaram contra (Sudão, Zimbábue) ou se abstiveram (Argélia, África do Sul, Mali, Ruanda, Senegal etc.). A recepção cautelosa reservada ao texto foi muito além dos doze países que tradicionalmente votam contra as resoluções ocidentais. E o isolamento diplomático da Rússia buscado pelos Estados Unidos e seus aliados europeus revelou-se menos severo do que se esperava.
Ao contrário do que muitos pensam, a Rússia não é mais um “anão” econômico na África. Em 2018, suas trocas comerciais com o continente ultrapassaram a marca de US$ 20 bilhões: uma cifra inferior à da China (US$ 204 bilhões) ou da França (US$ 51,3 bilhões de euros), mas comparável à do Brasil e da Turquia. Ela busca diversificar a estrutura de suas transações, privilegiando os setores de alta tecnologia, posicionando-se no mercado de lançamento de satélites, com Angola, em 2017, e com a Tunísia, em 2020. No campo da energia nuclear civil, a Rosatom multiplicou seus acordos com países que começam a entrar no setor, como o Zâmbia, o Sudão ou Ruanda – nações com os quais os contatos se intensificaram desde a visita do presidente de Ruanda, Paul Kagame, a Moscou, em junho de 2018. A fornecedora de soluções de segurança informacional Kaspersky Lab inaugurou, em maio de 2019, um escritório de representação em Kigali, a partir do qual espera desenvolver sua presença na África Oriental.
Embora a Rússia aposte cada vez mais abertamente no hard power, ela continua a introduzir na África instrumentos de influência de longo prazo sobre as sociedades locais. Alguns meios de comunicação estatais (RT, Sputnik), em francês, inglês e português, destacam-se como fontes significativas de audiência em muitos países.8 Sua linha editorial insiste na ausência de um passado colonial russo na região e na contribuição de Moscou para as lutas anti-imperialistas – um discurso que às vezes assume colorações antifrancesas e encontra certo eco no Mali, por exemplo. A Rússia também é muito ativa no campo da cooperação sanitária. A África do Sul encomendou recentemente o Avifavir, um tratamento para Covid-19 oferecido para exportação.9 Já o Egito preferiu a vacina chinesa à Sputnik-V, apesar da insistência das autoridades russas.10 Há alguns anos, o Ministério da Saúde da Rússia e a Rusal organizaram uma campanha de vacinação contra o vírus ebola na Guiné.
Outro pilar do soft power russo: educação e capacitação. Em 2013, o número de estudantes africanos que frequentaram um curso universitário civil foi estimado em cerca de 8 mil.11 O novo diretor da Agência de Cooperação, Evgueni Primakov – neto do ex-chefe de governo –, quer aumentar a cota de vagas gratuitas reservadas para estudantes africanos, que hoje gira em torno de 1.800, e desenvolver um sistema de bolsas de estudo como parte de uma parceria com empresas russas ativas na África.12 A Rússia ainda é um destino de estudos menos visado do que a Europa e os Estados Unidos, tanto por razões climáticas como por causa dos ataques racistas noticiados nos últimos anos.
Todavia, o “grande retorno” da Rússia à África não se assemelha a uma marcha triunfal, longe disso. Alguns anúncios não foram adiante: em 2017, a Rostec abandonou a construção de uma refinaria em Uganda, enfraquecendo ainda mais as perspectivas econômicas da Rússia na África oriental. Outros, como os projetos de exploração de gás da Rosneft em Moçambique, demoram a se concretizar. O programa nuclear civil sul-africano, no qual a Rosatom tinha grandes esperanças, foi colocado em espera. A saída forçada do presidente Jacob Zuma – que, como encarregado da inteligência do CNA, teve estreitos contatos com a KGB durante os anos de luta contra o apartheid –, revelou a fragilidade de algumas relações russas no continente. A mesma constatação pode ser feita quando se observa o que se seguiu à queda do presidente sudanês Al-Bashir e à renúncia do chefe de Estado argelino, Abdelaziz Bouteflika, embora elas não tenham, a esta altura, realmente enfraquecido as posições da Rússia no Sudão e na Argélia: os russos podem contar com os muitos oficiais do Exército e dos serviços de segurança treinados em academias militares e de inteligência desde os tempos soviéticos.
O poder russo frequentemente age ao sabor do momento, e não segundo uma hipotética “grande estratégia” continental. A coordenação entre os diversos atores da política russa não é algo que se dá naturalmente. Shoigu e Patrushev têm um peso político que, em princípio, dispensa-os de entrar em acordo com Mikhail Bogdanov, vice-ministro das Relações Exteriores e o novo “Sr. África” da Rússia. A articulação entre as empresas militares privadas e os serviços de inteligência militar parecem variar de um local para outro: evidente na República Centro-Africana e na Líbia, ela parece mais frouxa no Sudão – isso pode refletir a margem de manobra disponível para aqueles que a cientista política Tatiana Stanovaya chama de “empreendedores geopolíticos”. Trabalhando muitas vezes na esteira de tais empreendedores, os diversos conselheiros russos em imagem e estratégia eleitoral ativos nos últimos anos – por exemplo, em Madagascar – quase não brilharam por seus resultados, principalmente por causa da falta de conhecimento das realidades locais.13
Daqui por diante, a pegada estratégica da Rússia na África não deve aumentar significativamente. O efeito de recuperação após o apagamento da década de 1990 tende a se esgotar. Do ponto de vista de Moscou, o continente africano continua sendo um palco periférico – e aparece por último na ordem das prioridades regionais definidas pelo Conceito de Política Externa aprovado em novembro de 2016. A cúpula de Sochi certamente fez as coisas acontecerem, permitindo mobilizar a máquina do Estado ao mais alto nível. Mas, quando vierem as primeiras dúvidas, e considerando que a crise econômica reduzirá os recursos disponíveis, o desafio dos atores da relação russo-africana será convencer o Kremlin da relevância desse investimento a longo prazo.
*Arnaud Dubien é diretor do Observatório Franco-Russo, em Moscou.
1 Joseph L. Nogee e Robert. H. Donaldson, Soviet Foreign Policy Since World War II [A política externa soviética desde a Segunda Guerra Mundial], Pergamon Press, Nova York, 1981.
2 Ibidem.
3 Arnaud Dubien, “La Russie et l’Afrique: mythes et réalités” [Rússia e África: mitos e realidades], Note de l’Observatoire franco-russe, n.19, Moscou, out. 2019.
4 Arnaud Kalika, “Le ‘grand retour’ de la Russie en Afrique?” [O “grande retorno” da Rússia à África?], Russie.Nei.Visions, n.114, Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri), Paris, abr. 2019.
5 Kommersant, Moscou, 20 jun. 2019 (em russo).
6 “Russian military firm working with Sudan security service: sources” [Empresa militar russa trabalha com serviço de segurança do Sudão: fontes”, Sudan Tribune, Paris, 8 jan. 2019. Disponível em: https://sudantribune.com.
7 Tristan Coloma, “La stratégie économico-sécuritaire russe au Mozambique” [A estratégia econômico-securitária russa em Moçambique], Notes de l’IFRI, maio 2020.
8 Kevin Limonier, “Diffusion de l’information russe en Afrique. Essai de cartographie générale” [Difusão da informação russa na África. Ensaio de cartografia geral], Instituto de Pesquisa Estratégica da Escola Militar, Paris, 13 nov. 2018.
9 “Russia’s coronavirus drug to be sold in 23 countries” [Medicamento russo contra o coronavírus à venda para 23 países], The Moscow Times, 24 set. 2020.
10 “Why Egypt chose Chinese Covid-19 vaccine over Russian one” [Por que o Egito escolheu a vacina chinesa contra a Covid-19 em vez da russa], Al-Monitor, 17 set. 2020. Disponível em: www.al-monitor.com.
11 Alexandra Arkhangelskaya e Vladimir Shubin, “Russia’s Africa Policy” [A política russa na África], Occasional Paper, n.157, Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais, Johannesburgo, set. 2013.
12 Kommersant, 9 set. 2020 (em russo).
13 Michael Schwirtz e Gaelle Borgia, “How Russia meddles abroad for profit: cash, trolls and a cult leader” [Como a Rússia interfere no exterior em busca de lucro: dinheiro, trolls e culto ao líder], The New York Times, 11 nov. 2019.